Na sequência do golpe militar conduzido pelos militares entre 31 de março e 2 de abril de 1964 e que levou à destituição do presidente João Goulart, conspiração que contou com cumplicidade parlamentar e com o usual envolvimento dos Estados Unidos no apoio a intentonas que levassem ao derrube de governos democráticos, o Brasil mergulhou numa ditadura bárbara e impiedosa que durou até 1985. Foram 21 anos em que a ditadura militar institui um regime assente na repressão, na perseguição a cidadãos conotados com a democracia, censura sobre a produção cultural e intelectual, o que levou ao exílio nomes maiores das artes brasileiras, casos de Gilberto Gil e outros músicos, bem como do cineasta Glauber Rocha, que viveu em Portugal e foi um dos intervenientes de As Armas e o Povo, filme realizado e produzido pelo Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica, por iniciativa do Sindicato Nacional de Profissionais de Cinema que retrata o período vivido entre o dia 25 de Abril de 1974 e o 1º de Maio desse ano (nenhum dos realizadores é identificado nos créditos, mas é fácil reconhecer a presença do director brasileiro porque é ele que entrevista os populares na rua).
Como todas as ditaduras da América Latina, a brasileira também primou pelas violações dos direitos humanos, prisões arbitrárias, acções violentas que culminavam em execuções sumárias, tortura e desaparecimento de activistas políticos. Foram os “anos de chumbo”.”
É, pois, neste período que se situa o mais recente filme de Walter Salles, Ainda Estou Aqui, que é um sério candidato aos prémios da Academia de Hollywood nas categorias de Melhor Filme e de Melhor Filme Estrangeiro, enquanto Fernanda Torres é candidata ao Oscar de Melhor Actriz, mas já vencedor do Melhor argumento no Festival de Veneza (baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, mas a ele chegaremos), com a protagonista, Fernanda Torres, a arrebatar o Globo de Ouro deste ano na categoria de Melhor Atriz Dramática, a primeira brasileira a receber tal prémio, depois de a sua mãe, a também actriz Fernanda Montenegro ter sido nomeada em 1999 para igual galardão pela sua interpretação em Central do Brasil, realizado igualmente por Walter Salles!
Em vez de relatar esses anos de chumbo e fazer do filme um libelo contra a ditadura, o realizador assenta a sua narrativa na família Paiva e na luta da matriarca da família, Eunice, depois que o seu marido, Rubens Paiva, um engenheiro e antigo deputado do tempo da democracia, foi levado de casa por mandantes dos militares para interrogatório e nunca mais regressou. Corria o ano de 1971.Seria mais um dos incógnitos desaparecidos e assassinados pela ditadura militar não fosse a luta sem tréguas que a mulher encetou para saber o que se passou com o marido. Apesar da certidão de óbito que conseguiu arrancar depois dessa luta titânica, e da satisfação da família em finalmente saber o que se passou com o marido e pai, o corpo de Rubens Paiva nunca apareceu.
Amigo da família Paiva e assíduo da sua casa no Rio de Janeiro, da mesma geração dos filhos do casal, cinco, principalmente de Marcelo, o filho mais novo, o realizador pega no livro deste, onde conta a luta da mãe nessa procura sem fim e do reflexo que o desaparecimento do pai teve na família. Eunice volta a estudar, licencia-se em Direito aos 48 anos e torna-se advogada especialista em diretos humanos e na defesa dos indígenas brasileiros, ao mesmo tempo que não abre mão do esforço de obter respostas para o que aconteceu ao marido. Sem ser panfletário, Walter Salles leva-nos a acompanhar a resiliência dessa mulher e do resto da família numa luta desigual contra a ditadura, que chegou a prender Eunice e uma das filhas para obter delas uma qualquer confissão, enquanto os torcionários se instalaram na sua casa. A desfaçatez e a barbárie não conhecem limites.
Walter Salles que iniciou a sua carreira no cinema com uma mão cheia de documentários para televisão sobre grandes músicos brasileiros, de Chico Buarque a António Carlos Jobim e João Gilberto, em 1998 dirige um dos maiores êxitos do moderno cinema brasileiro, o já referido Central do Brasil, para em 2004 voltar a fazer história com Os Diários de Che Guevara, com Gael García Bernal e Rodrigo de la Serna, um roadmovie sobre o mais conhecido e icónico guerrilheiro da História. Pelo meio outros filmes não menos importantes como Terra Estrangeira (1995), também com Fernanda Torres na protagonista.
Com este novo filme, cujo êxito global já ultrapassou Central do Brasil, assistimos a uma lição de representação de Fernanda Montenegro, na pele de uma mulher que nunca quis encarnar o papel de vítima, nunca se foi abaixo diante dos filhos perante a tragédia que caiu sobre a família, uma representação contida, sem gritos, antes com sorrisos, numa casa viva e com luz no início da película, talvez a casa que o realizador conheceu já adolescente, Walter Salles nasceu em 1956, que de repente é escurecida pela presença e acção dos capangas que a invadiram para levar Rubens e se acomodam de guarda, antes de se instalarem, carro estacionado na rua, de vigia, numa notória pose intimidatória.
Pelos filmes super 8 vamos ficar a conhecer o rotina daquela família, sempre rodeada de amigos, um viver intenso e comprometido com a luta de que não vemos muitos reflexos até à prisão e desaparecimento do patriarca. A ausência vai tomando conta de todos, até aquela altura em que o tempo (quase) tudo cura. Os filhos seguiram a sua vida, Marcelo é um escritor reconhecido, e Eunice Paiva, sofrendo de Alzheimer, nesta fase cabe a Fernanda Montenegro interpretar o personagem. É figura silenciosa, testemunha ausente, o contrário daquilo que foi a sua vida de lutadora. Aí voltamos aos super 8 para recordar a perda, mas também a transmissão do testemunho para as novas gerações. Viver com intensidade era uma forma de resistência, como referiu o realizador numa entrevista a um periódico espanhol.
Um filme que encheu o Cine-Teatro Avenida, feito que nos apraz registar. O marketing tem destas coisas. Ainda bem.
Até à próxima e bons filmes!
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico