Este website utiliza cookies que facilitam a navegação, o registo e a recolha de dados estatísticos.
A informação armazenada nos cookies é utilizada exclusivamente pelo nosso website. Ao navegar com os cookies ativos consente a sua utilização.

Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVIII

Bocas do Galinheiro Jafar Panahi, Palma de Ouro em Cannes

23-06-2025

O regime teocrático iraniano, tem sido uma máquina compressora para a cultura, numa civilização que se pautou como uma das mais avançadas no Mundo Antigo. A Pérsia foi um exemplo dessa elevação, mas não resistiu à polícia política do xá Reza Pahlavi, muito menos à República Islâmica do ayatollah Khomeini, o clérigo xiita que em 1979 foi a cara da Revolução que derrubou o regime autocrático e despótico do xá Mohammad Reza Pahlavi. O povo rejubilou, mas por pouco tempo. A esperança de mudança depressa se desvaneceu e com o homem que lhe sucedeu em 1989 como guia supremo, Ali Khamenei, tudo piorou. A repressão sobre os intelectuais e, sobretudo sobre as mulheres, é um traço deste poder de que todos estão fartos. Os recentes ataques de Israel, mais uma vez ao arrepio do Direito Internacional, ao Irão são por agora uma incógnita sobre o que daí poderá resultar. É esperar para ver.

Porém, e no que ao cinema diz respeito, houve quem teimasse em resistir e um dos rostos maiores dessa resistência é, sem dúvida, Jafar Panahi, cineasta recentemente galardoado com a Palma de Ouro na 78º edição do Festival de Cannes com o seu último filme, Un Simple Accident que, como todas as suas obras recentes, foi rodado à revelia das autoridades do seu país. No caso concreto deste último, sem submeter o argumento à censura prévia. Sim, ali há censura prévia, como havia no Portugal de antes do 25 de Abril de 1974. Tal como cá, há muito para derrubar no Irão! Mas voltemos a Panahi.

Discípulo do realizador tutelar do cinema iraniano, Abbas Kiarostami, de que foi assistente de realização em Através das Oliveiras, 1994, sendo que a sua primeira longa, O Balão Branco, 1995, tem Kiarostami como co-autor do argumento (anos mais tarde assinaria o de Sangue e Ouro). Proposto pelo Irão para Melhor Filme Estrangeiro nos Óscares de 1996, não foi nomeado, apesar de o governo iraniano ter pedido à Academia que retirasse o filme, o que foi recusado, na sequência da deterioração das relações entre o Irão e os Estados Unidos. Jafar Panahi foi proibido pelo seu governo de participar no Festival de Cinema de Sundance, bem como de dar entrevistas telefónicas com repórteres norte-americanos para promover o filme. Foi um primeiro prenúncio do que viria a ser a já longa história de perseguição e repressão sobre o realizador que ainda dura.

Assim, os seus filmes seguintes, O Espelho, 1997, vencedor do Leopardo de Ouro do Festival de Locarno desse ano,  O Círculo, 2000, Leão de Ouro do Festival de Veneza, e o já referido Sangue e Ouro, 2003, prémio do júri no Festival de Cannes e  Offside- Fora-de-jogo, 2006, supostamente filmado durante um jogo de futebol em que as mulheres são banidas dos estádios, mas que desafiam os homens a responderem ao porquê de tal proibição, oficialmente porque eles jogam com as pernas à mostra e usam linguagem imprópria. Como nestes regimes o ridículo não mata, a comédia responde, criticando. Grande prémio do júri no Festival de Berlim, tal como os seus outros filmes, não é exibido no Irão. Um realizador cuja obra terá sido seminal de uma Nova Vaga iraniana do princípio deste século, mas que, fruto dessa repressão férrea o tem levado a consecutivos períodos de reclusão e de proibição de filmar.

Preso em casa em Março de 2020 e condenado a 6 anos de prisão em Dezembro, impossibilitado de filmar e de viajar, juntamente com o sem compatriota Mojtaba Mirtahmasb na realização, contam um filme em vez de o fazerem em Isto não é um filme, 2010, onde perpassa o poder do cinema, a pressão da censura e a consequente liberdade de expressão (a falta dela). Ao mostrarem um dia da sua vida, os dois cineastas descrevem também as dificuldades com que se deparam para exercerem a sua arte no seu país, estratégia que repete em Táxi, 2015, quando percorre as ruas de Teerão ao volante de um táxi e com a câmara colocada no veículo captura o sentir dos seus compatriotas e os esquemas que usam, tal como ele, para darem a volta ao regime. Por meios imaginativos as cópias saem do Irão e aparecem do Ocidente, os filmes prontos para serem divulgados, conhecidos e exibidos em festivais internacionais, tendo este Táxi arrebatado o Urso d’ Ouro no Festival de Berlim.

Tal como a do seu mentor, a sua obra reflecte a vivência do seu Irão natal, com algum radicalismo, mas sem artificialismos. Também seguiu Kiarostami no uso de elementos dramáticos reduzidos ao mínimo, mas, fortemente apoiados por uma sensibilidade narrativa ímpar, a que se alia um realismo, muito próximo do cinema italiano do pós guerra.

Os filmes de Panahi, assentes na observação da realidade quotidiana, apontam cruamente as inquietações da sociedade iraniana contemporânea, do domínio da religião que leva ao menosprezo pela  condição feminina, a igualdade entre homens e mulheres é, por ora, uma miragem, e as dificuldades que a população enfrenta para manifestar o seu descontentamento e exercer um legítimo direito de oposição que simplesmente não existe nas sucessivas farsas eleitorais dominadas pelos revolucionários teocráticos e na repressão exercida sobre quem ousa fazer-lhes frente, entre os quais se inclui o próprio, com limitações ao seu trabalho, que não se cansa de denunciar nos seus filmes, ao mesmo tempo que insiste em viver no Irão

Neste seu ganhador último filme Un Simple Accident, este simples acidente, o atropelamento de um cão, leva a que um antigo algoz seja reconhecido pelo homem que torturou na prisão, um tema que no regime iraniano é sentido por milhares, nos quais eventualmente, também aqui, estará o próprio realizador. Com a intensificação das restrições à criação, exponencial na era Ahmadinejad, Kiarostami faz os seus últimos filmes em Itália e no Japão. Panahi, depois da Palma de Ouro, voltou ao Irão onde foi recebido apoteoticamente. Até quando?

Até à próxima, e nos filmes!

Facebook Festival de Cannes | Valery HACHE/AFP
Voltar