Para além das circunstâncias trágicas da sua morte, aos 95 anos, e da mulher, os corpos foram encontrados em casa no dia 26 de Fevereiro último, o desaparecimento de Gene Hackman, significa acima de tudo a perda dum actor que soube atravessar várias épocas, numa carreira de e encarnar personagens em vários géneros cinematográficos, sem concessões.
Como se pode ler numa citação sua no site da MUBI, “I was trained to be an actor, not a star. I was trained to play roles, not to deal with fame and agents and lawyers and the press”, dá para perceber a visão e a maneira genuína deste actor de excelência em relação ao que achava ser a sua profissão, quer no cinema, quer nos palcos.
Vencedor de diversos prémios e de muitas mais nomeações, desde logo temos de recordar os dois Óscares que arrebatou, o de Melhor Actor em Os Incorruptíveis contra a Droga (William Friedkin, 1971), quiçá o seu primeiro grande papel na tela, em que encarna um polícia de Nova Iorque, Jimmy “Popeye” Doyle, longe de ter uma imagem imaculada, numa operação para apreensão de um carregamento de heroína vindo de Marselha, o título original do filme é French Connection, e da captura do traficante, um insuspeito Fernando Rey. O filme também ganhou o Óscar para melhor filme e Friedkin de melhor realizador. Na altura marcou-me aquela espectacular perseguição de carros nas ruas de NY, quase ao nível de Bullit. O filme ainda teve uma sequela realizado por John Frankenheimer em 1975, agora filmado em França, mas muito longe do êxito do original. O outro prémio da Academia, o de Melhor Actor Secundário veio com o papel de um implacável e pouco sério xerife em Imperdoável (Clint Eastwood, 1992).
Com um início da carreira em que actuou em várias séries e filmes para televisão, a estreia em longas-metragens aconteceu em Lilith e o seu Destino (Robert Rossen, 1964), protagonizado por Warren Beatty e Jean Seberg e, seria ao lado do primeiro e de Faye Dunaway, em Bonnie e Clyde (Arthur Penn,1967), um biopic sobre a afamada dupla de assaltantes de bancos, que seria nomeado para o Óscar, de Melhor Actor Secundário, em que interpreta o irmão mais velho de Clyde, e com o qual definitivamente foi catapultado para uma longa e brilhante carreira, nem sempre pautada pelas melhores escolhas, mas que é coerente com a linha que, ao que tudo parece indicar, de se mover à vontade em qualquer género. Na sequência destes trabalhos com Warren Beatty, levou-o a aceitar um pequeno papel em Reds, filme realizado por este em 1991, uma narrativa sobre John Reed, interpretado por Beatty, o jornalista americano que acompanhou a revolução bolchevique e que deu origem à sua novela “Dez Dias Que Abalaram o Mundo”.
Não sendo este filme uma adaptação literária, Hackman veio a interpretar papéis em adaptações de romances de John Grisham, sendo os mais conhecidos A Firma (Sydney Pollack, 1993), em que interpreta o mentor de um jovem advogado da firma, Tom Cruise, e O Júri (Gary Fleder, 2003) aqui um juiz que não aprecia muito as opiniões do júri, ao lado de Dustin Hoffman, eles que foram colegas na Pasadena Playhouse, sendo-lhes prognosticada uma carreira de pouco sucesso! Foi o penúltimo trabalho de Gene Hackman no cinema, antes de se despedir em 2004 com um não muito acertado Alce Daí, Senhor Presidente (Welcome to Mooseport), dirigido por Donald Petrie, que conta a estória de um ex-presidente dos EUA que de volta à sua terra natal e decide candidatar-se a presidente da câmara. Não foi aquilo a que se pode chamar de um fecho com chave de ouro.
Porém, isso pouco importa quando se entrou em filmes como Mississipi em Chamas (Alan Parker, 1988), uma incursão no Sul segregacionista os anos de 1960, em que dois agentes do FBI vão investigar a morte de activistas dos direitos civis e têm de enfrentar a barreira de silêncio da cidade e a acção dos racistas da KKK, responsáveis pelos crimes, ou a sua participação em comédias como a hilariante Frankenstein Júnior (Mel Brooks, 1974), em que faz de um cego que se “cruza” com a criatura ou Os Tenenbaums - Uma Comédia Genial (Wes Anderson, 2001), onde é Royal Tenenbaum, o patriarca de uma família muito peculiar, bem como a suas interpretações do vilão Lex Luthor em quatro Superman, quando o super-herói foi vestido pelo saudoso Christopher Reeve, ou, noutros registos, nova colaboração com Clint Eastwood em Poder Absoluto (1997), em que um presidente dos EUA se vê envolvido num crime e nas manobras dos serviços secretos para o camuflarem ao mesmo tempo que tentam silenciar a única testemunha, bem como muitos actores da sua geração não pôde escapar aos filmes catástrofe, como A Aventura do Poseidon (Ronald Neame, 1972).
Apesar de afastado das telas há mais de vinte anos, Gene Hackman nunca deixou de ser uma referência e merecia uma morte menos sofrida.
Até à próxima e bons filmes!
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico