Roubando o título de uma canção dos UHF, “David Lynch morreu”. Apesar de o realizador no ano passado ter anunciado que já não saia de casa devido ao enfisema pulmonar de que sofria, ver partir mais uma das nossas referência, dói.
Desde o primeiro momento que me senti atraído pelo universo de David Lynch, não só como cineasta, mas também como artista, compositor e músico. Adiante chegaremos aos filmes, mas no que à música diz respeito é conhecido pelas suas colaborações com diferentes artistas e grupos musicais, nomeadamente na criação de videoclipes com Donovan, Interpol ou Chrystabell (que tivemos oportunidade de ver e ouvir num concerto inesquecível no Cine-Teatro Avenida há uns anos), marcantes na sua estética visual, agregando os universos musical e cinematográfico numa exímia combinação de som e imagem. Arrisco que no âmbito musical a sua parceria com Chrystabell será a mais profícua e duradoura desta sua faceta, tendo editado em 2024 o álbum "Cellophane Memories", de que saíram igualmente videoclipes realizados por Lynch. Por seu lado Chrystabell também é actriz na série Twin Peaks (2017), dirigida pelo cineasta.
Nascido em Missoula, no Montana, a 20 de Janeiro de 1946, David Lynch passou por várias cidades americanas e umas tantas escolas até a família se fixar em Filadélfia, onde realizou a sua primeira curta, sendo que com Alphabet e The Grand-Mother, respectivamente de 1968 e 1969, ganhou uma bolsa do Centro de Estudos Fílmicos do American Film Institut. A sua primeira longa-metragem Eraserhead, estreou em 1977, depois de vários anos de tentativas para encontrar financiamento. Sem grande aceitação, o filme acabou por ser um êxito nas então conhecidas sessões a meia-noite depois de Ben Barenholtz ter comprado os direitos do filme. Um filme que podemos catalogar como surrealista, cuja banda sonora se destaca (aliás os diálogos são parcos), como veio a ser marca do realizador, como se disse também músico e compositor (não há coincidências!). Para não irmos mais longe basta lembrar o início do Twin Peaks, ou para mim, a banda sonora de Dune, com a mestria de Brian Eno e dos Toto. Quem diria.
Só reconhecido e aplaudido mais tarde, Eraserhead granjeou vários admiradores de peso, sendo que o mais relevante terá sido Mel Brooks que o convidou para realizar O Homem Elefante (1980), um dos grandes êxitos da carreira do, daí para a frente, aclamado realizador. Esta sua segunda longa-metragem, e que vai significar a consagração do realizador e a nomeação do filme e de Lynch para os óscares. Não ganhou nenhum, como haveria de acontecer com futuras nomeações, mas nem só de Hollywood vive o Cinema.
Segue-se, para mim, o filme mais injustiçado de Lynch: Dune (1984), adaptação da obra de Frank Herbert, depois de algumas tentativas de a levar ao grande écran, a que gerou mais expectativas terá sido a de Alejandro Jodorowski, com direcção artística de Salvador Dali, décors de Moebius e música de Mick Jagger, um luxo e um orçamento avultado que deitou tudo a perder. Com produção de Dino de Laurentis, o mítico produtor italiano, e da filha Raffaella, com guião de Lynch, aprovadíssimo por Herbert, estavam lançados os dados para uma entrada em grande do director no universo da Ficção Científica. Só que tudo correu mal. As interferência do produtor puseram os cabelos em pé a David, qual Henry de Erserhead, e do bruto inicial de mais de quatro horas, chegou-se à versão final com cenas não incluídas que no entender do realizador eram imprescindíveis. A crítica também não ajudou, tal como as receitas, e o cineasta nunca mais quis ouvir falar do filme, ao ponto de não assumir a paternidade de uma versão mais longa composta mais tarde. Apesar de não comungar destas opiniões, ainda há pouco revi e filme e continuo a gostar.
A carreira de David Lynch depressa é retomada na senda do êxito, desde logo com Veludo Azul (1986), um thriller sombrio, ambientado nas tais cidades pequenas que o realizador conheceu na sua infância e adolescência, merecendo de novo ser nomeado para os prémios da Academia. Com Coração Selvagem (1990) vem a consagração em Cannes, com a Palma de Ouro, reforçada com o êxito de Twin Peaks, o filme, mas principalmente a série. De uma trivial investigação policial o realizador cria um ambiente de suspense e conspiração pouco usual nas séries televisivas. Foram milhões os espectadores agarrados pelo mistério Laura Palmer. Em 1992, com Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer, os acontecimentos são revistos numa prequela. Depois do assassinato da jovem Teresa Banks em Deer Meadow, no estado de Washington, a investigação chega a Twin Peaks onde são revistos os últimos dias de Laura Palmer.
Com Estrada Perdida (1997), antes do inesperado Uma História Simples (1999), exactamente pela simplicidade desta história real de um velho que montado num cortador de relva que vai visitar no irmão doente e há muito afastados, e com Mulholland Drive (2000), a tal estrada de Santa Mónica, sombria e enigmática, como as personagens que consagraram Naomi Watts e Laura Harring, a loira e a morena, volta à sua qualidade de cineasta de culto, que tem em Inland Empire (2006) a sua última longa-metragem. Sempre activo até ao seu desaparecimento, filmou sobretudo videoclipes, fez exposições de fotografia, compôs, interpretou e ainda teve tempo para receber o Leão de Ouro à Carreira em Veneza em 2006 e um Óscar honorário em 2020.
A Parca veio buscá-lo no passado dia 16 de Janeiro aos 78 anos.
Até à próxima e bons filmes, já agora, para ver ou rever David Lynch!
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico