Há alguns anos, em 2006, dediquei um texto Roberto Rossellini por ocasião centenário do seu nascimento Roberto Rossellini. Hoje volto a ele, para lembrar os 75 anos da estreia de Stromboli, um dos seus filmes mais icónicos, não pelo seu valor cinematográfico, que é inquestionável, mas pelo protagonismo de Ingrid Bergman, no filme e na vida do cineasta.
Foi notícia a vinda de Rossellini a Portugal em Novembro de 1973 e os jornais que naquela época, antes do 25 de Abril de 1974, não tinham grande margem de manobra para determinado tipo de notícias, nomeadamente da âmbito cultural sem o beneplácito de sua excelência a Censura, ou como mais hipocritamente se dizia, do exame prévio, a presença desta vulto do cinema não podia passar despercebida.
Com a ajuda de Henri Langlois, o mítico fundador da Cinemateca Francesa, Bénard da Costa, que anos mais tarde veio a assumir a direcção da Cinemateca Portuguesa, organizou um ciclo com a obra integral de Rossellini, na Fundação Calouste Gulbenkian, o primeiro de muitos, com a presença do realizador e também de Langlois. O filme de abertura da retrospectiva seria Roma, città aperta. E aqui começaram as primeiras peripécias. Apesar de ter estreado em Portugal em 1947, o filme era de 1945, estava proibido. Coisa que era normal naquele tempo. Segundo Bénard “em 1956 um distribuidor tinha-o querido repor e esbarrara com um niet redondo da Censura, farta de dores de cabeça com esse filme. Tivera de o engolir no pós-guerra, para que não parecesse o que era. Livre dele, pela lei fatal da vida comercial de um filme, proibira regressos, nesses anos 50 em que, graças à Guerra Fria, já não precisava de parecer nada”. Isto na antevéspera de Rossellini chegar a Lisboa. Como conta o organizador, “nalgumas horas de altíssima tensão e de conversações bilaterais ao mais alto nível, o mais alto nível do lado de lá acabou por ser sensível à bronca que seria ter de contar a Rossellini da proibição. O alibi de que a cópia seria projectada uma única vez e sem legendas funcionou como moeda negocial.”.
“Roma. Cidade Aberta”, é seguramente a primeira obra-prima do cinema europeu no pós-guerra e o filme que marca o que se veio a definir como o neo-realismo italiano. Filmado com poucos meios, os estúdios estavam praticamente destruídos, socorrendo-se de cenários reais, a cidade de Roma, e de uma fusão entre personagens e actores, o filme é um hino ao renascimento da cultura democrática italiana, a poucos dias do triunfo dos aliados sobre o fascismo dos camisas negras de Mussolini. Naquela sessão de 17 de Novembro de 1973 o sentimento antifascista que se vivia em Portugal explodiu numa ovação de 10 minutos “em que os bravo deram lugar a distintíssimos brados do género: Abaixo o fascismo ou Liberdade, liberdade”. Segundo conta o autor da crónica, João Bénard da Costa “Gulbenkian, Cidade Aberta”, Rossellini ficou espantadíssimo com o acolhimento do filme, normal em 45 ou 46, no fim da guerra e do fascismo em Itália. Vinte e oito anos depois que aquilo ainda funcionasse assim, parecia-lhe da ordem do inexplicável. Ou, a concluir “quem não esteve lá nunca imaginará”. Como muitos dos que lá estiveram não imaginariam que menos de seis meses depois podíamos estar a ver o filme com legendas.
Nascido em Roma a 8 de Maio de 1906, Rossellini iniciou-se no cinema em 1936 no campo da curta-metragem documental, aliás Roma, Cidade Aberta originariamente destinava-se a ser um documentário, sendo que o seu primeiro filme é La Nave Bianca, de 1941, a que se seguem Un Pilota Retorna, com a colaboração de Michelangelo Antonioni no argumento. Porém o verdadeiro Rossellini surge a partir de Paisà (Libertação), 1946, sobre o avanço das tropas aliadas em Itália, Alemanha, Ano Zero, 1948, uma incursão pelas ruínas quase apocalípticas de Berlim após a queda do nazismo, e depois Stromboli, 1950, o primeiro dos cinco filmes que fez com Ingrid Bergman e que neste ano passam 75 anos da sua estreia. Karen está num campo de refugiados e a saída que vê é casar com Antonio um pescador da ilha vulcânica de Stromboli, na Sicília. Rapidamente, os conflitos entre o casal e a animosidade dos habitantes da ilha levam a que a mulher queira sair da ilha, procurando forças para sobreviver apelando a uma força superior. Uma soberba interpretação de Ingrid, acompanhada por actores italianos mais que medianos e figuração dos habitantes locais.
Apesar e ser um dos melhores filmes do cineasta é, isso sim, lembrado como o momento em que realizador e actriz se envolveram durante a rodagem. Um outro romance, este da vida real, entre Rossellini e Ingrid que tanta tinta fez correr naqueles puritanos anos 50, pois eram ambos casados, apesar de ser pública a tórrida ligação do cineasta a outra grande actriz italiana, Anna Magnani. Os estúdios americanos proscreveram a actriz, em Itália o realizador teve de enfrentar a anulação do seu casamento com Marcella de Marchis. O enlace com Bergman durou sete anos e três filhos, sendo que um deles, Isabella, também singrou como actriz.
Desiludido com o cinema, Rossellini dedicou os últimos anos da sua vida à televisão, com curtas incursões pelo cinema. Morreu em Junho de 1977, alguns dias depois do encerramento do Festival de Cannes a cujo júri presidira.
Até à próxima e bons filmes!