Começa a ser penoso dar conta nesta coluna de cineastas que nos vão deixando. Tomando de empréstimo os versos de Giuseppe Ungaretti, Soldados: Estão como / no outono / nas árvores / as folhas. Agora foi António-Pedro Vasconcelos, doravante A-PV, cidadão de múltiplos interesses, homem de causas, foi crítico, realizador, produtor, professor, adepto benfiquista, destacou-se mesmo como comentador do futebol, mas o cinema foi sempre a sua causa maior. Faleceu no passado dia 6.
Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1961, quando a instituição, à semelhança do que fazia com outras artes decidiu apoiar o cinema, o cineasta foi um dos eleitos, tendo ido para Paris onde frequentou a Sorbonne no curso de Filmologia, ministrado por Foi um período enriquecedor. Até 1973, principalmente como espectador, viu milhares de filmes nos anos que foi bolseiro, a sua grande escola, como não se cansou de destacar ao longo da sua extensa carreira.
Iniciou-se no cinema em publicidade, tendo realizado alguns documentários como A Indústria Cervejeira em Portugal,1967 ou 27 minutos com Fernando Lopes-Graça, 1971, sendo que na ficção se estreia com Perdido por Cem, de 1973, sendo também autor do argumento, filme produzido pelo Centro Português de Cinema (CPC) de que foi fundador, entidade cooperativa , que contou com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e que foi fundamental para a renovação do cinema que se fazia no país e o aparecimento do Novo cinema português, bem como no apoio que deu a cineastas como Manoel de Oliveira que com O Passado e o Presente, 1972, a catapulta para uma carreira ímpar. Curiosamente, ou não, seria outro filme de Manoel de Oliveira, Amor de Perdição, que por insistência de A-PV, depois de uma produção difícil e da passagem da obra como série na RTP, levou ao fim do CPC, apesar dos muitos filmes que produziu depois do 25 de Abril de 1974 até 1976.
Apesar deste contratempo A-PV a par de várias actividades ligadas directa ou indirectamente ao cinema, foi chefe de redação da revista reaparecida revista Cinéfilo, de que Fernando Lopes era director, e de colaboração noutros filmes em diversas funções, voltou à realização em 1974 com Adeus até ao Meu Regresso, para a RTP, uma abordagem da Guerra Colonial recuperando a memória do conflito através das mensagens de Natal de soldados que combateram nas colónias.
António-Pedro de Vasconcelos e José Fonseca Costa são, em termos comerciais, os mais bem-sucedidos cineastas portugueses da década de 80. Conseguido fazer chegar o seu cinema a um público alargado, atingindo recordes de bilheteira até então pouco vistos no cinema português, sem abdicar da sua independência ética, artística e estilística. Kilas, o mau da fita, de 1981, tornou-se o filme mais visto do cinema nacional, sendo ultrapassado apenas em 1984 por O Lugar do Morto, 1986, de António-Pedro de Vasconcelos (este sim, um assumido cineasta do cinema novo), protagonizado por Ana Zanatti e Pedro Oliveira, , mas que, tal como Fonseca e Costa, concluiu que se podia fazer bom cinema e ter êxito na bilheteira. Será esta aposta num cinema para o público, que muitos insistem que não se coaduna com o cinema chamado de autor, que marcará uma das clivagens com muitos cineastas da sua geração e até de gerações que lhe seguiram, ou seja, para um filme ter êxito tem que ser feito no quadro de uma indústria dotada de meios técnicos e humanos, sem que tenha que beliscar o que quer que seja com o filme como obra de arte, que é, e sem necessidade de ser um mero produto comercial. O lugar do Morto, com quase 272 mil espectadores, só ´será suplantado mais tarde por Tentação (Joaquim Leitão, 1977) e O Crime do Padre Amaro (Carlos Coelho da Silva, 2005).
No documentário Um Índio em Pé de Guerra, o cineasta confessa que os seus filmes são reflexões sobre coisas que à sua volta o chocam em Portugal, desde logo títulos como Jaime,1999, um melodrama amargo sobre um rapaz que perante a degradação familiar vai trabalhar para conseguir dinheiro para recuperar a motocicleta que roubaram ao pai, um toque neorrealista numa filmografia que começou com evidentes referência da Nouvelle Vague, Os Imortais, 2003, de novo a Guerra Colonial ou melhor, as cicatrizes em quatro ex combatentes, contado em flashbacks, Call Girl, 2007, abordagem crua dos meandros da corrupção, do poder das multinacionais e do vale tudo para obter resultados, aqui por interposta call girl, Soraia Chaves, ao lado de Joaquim de Almeida e de Nicolau Breyner, ela que voltaria a actuar sob as ordens de A-PV em A Bela e o Paparazzo, 2010, e Amor Impossível, 2015, baseado em factos reais, que acabou por trazer alguns contratempos ao realizador, mas qualquer deles com aceitação do público, o que revela o prestígio que lhe era reconhecido.
Filmes como Oxalá,1981, sobre a vida de um português exilado em Paris, que depois do 25 de Abril protagoniza o desencanto de muitos pelo caminho trilhado depois de Abril, ou o menos conseguido Aqui d’El Rei!, 1992, uma grande produção sobre os últimos tempos da monarquia, que deveriam ter sido também os últimos do Império Colonial português, Mouzinho contra Gungunhana, longa-metragem e mini-série de televisão, povoada por nomes sonantes do cinema europeu.
Nos seus últimos filmes, Os Gatos Não Têm Vertigens, 2014, com Maria do Céu Guerra e João Jesus, aborda com mestria o tema do envelhecimento e do isolamento dos velhos nas grandes cidades, de que Lisboa é exemplo e em Parque Mayer, 2018, leva-nos a uma viagem nostálgica a um icónico espaço e meio teatral peculiar da “sua” Lisboa, apesar de ter nascido em Leiria, mas isso foi um acaso, para que era filho de um juiz em 1939. O seu último filme, Km 224, 2022, aborda outro tema transversal a qualquer sociedade, a separação e, em muitos casos, a utilização dos filhos como arma de arremesso. Tinha vários projectos, como sempre teve, um dos quais sobre o 25 de Abril de 1974, para além da permanente intervenção cívica que marcou fortemente a sua vida.
Até sempre, António-Pedro de Vasconcelos.
Para nós, até à próxima e bons filmes!
Este texto não segue o novo Acordo Ortográfico