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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Bocas do Galinheiro O universo feminino de João Canijo

23-05-2023

No passado dia16 foi exibido no Cine Teatro Viver Mal, de João Canijo, um dos filmes do díptico que se completa com Mal Viver. Como aconteceu em Castelo Branco, os dois filmes devem ser vistos em separado, sendo que Mal Viver que poderemos ver no próximo dia 6 de Junho, valeu ao realizador o Urso de Prata, Prémio do Júri, no Festival de Berlim deste ano, galardão que coloca João Canijo num lugar bem alto do cinema europeu. Vamos esperar pelo segundo. Apesar de ter levado os dois filmes a Berlim, Viver Mal não passou na competição principal, mas sim nos Encounters.
Viver Mal, que conta as histórias de três grupos de hóspedes do hotel onde tem lugar a acção, em Ofir, no qual o cineasta passava as férias de verão com a família, é inspirado em peças de August Strindberg, o dramaturgo sueco cuja obra foi adaptada por realizadores vários, com destaque para Ingmar Bergman, ou Liv Ulman, uma das actrizes de eleição do realizador sueco, com Miss Julie (1994), bem como João César Monteiro que em Le Bassin de J.W. (1997), foi buscar textos de Strindberg. Neste seu filme, Canijo não adaptou Strindberg, inspirou-se em peças do dramaturgo para construir as três partes em que o dividiu: “Brincar com o Fogo”, “O Pelicano” e “Amor de Mãe”. Em comum têm os dramas familiares vivenciados por mães e filhas/filho. E mais não queremos adiantar. Para quem não viu o filme, tente ver, para quem viu, não perca o segundo.
Como nos seus filmes anteriores, virados para o realismo social português, de que Fátima é o fecho desse ciclo, João Canijo apoia-se em elencos femininos fortes, naquele a que se pode chamar o seu núcleo duro de actrizes onde pontificam Rita Blanco, Anabela Moreira, Beatriz Batarda e Cleia Almeida, todas presentes neste díptico, tendo trabalhado também com alguma frequência com Teresa Madruga, Márcia Breia ou Ana Bustorff. Em Viver Mal, as mulheres, as mães, apesar de um dos capítulos se chamar “Amor de Mãe”, estamos perante relações disfuncionais, tóxicas, mesmo, a que vamos assistindo, vendo, passando de uma família para outra sem que qualquer delas deixe de estar presente, daí a importância do som neste filme, para além da fotografia, excelente, diga-se, de Leonor Teles, uma cineasta, também ela premiada em Berlim com uma curta-metragem, Balada de um Batráquio (2016). Porque, mesmo quando não acompanhamos cada grupo, é-nos dado um plano da fachada do hotel, onde, em cada quarto iluminado, decorre uma acção a que não podemos escapar. Com a escolha desta directora de fotografia, a sua soul mate, reconhece o realizador, deu um passo em frente. Uma palavra para a montagem, edição, como dizem os americanos, de João Braz, professor na UBI, e para os personagens masculinos, interpretados por Nuno Lopes, também ele um habituée nos filmes de João Canijo, e Rafael Morais, dois papéis difíceis, mas conseguidos. Foram acompanhar as mulheres, com intenções diferentes, se bem que Nuno Lopes tenha a mãe sempre à perna (via telemóvel), mas que se aguentam bem (ou não) às broncas.
Com uma carreira iniciada em 1984 com a curta-metragem A Meio Amor, João Canijo estreia-se nas longas em 1988 com Três Menos Eu, com Rita Blanco, a empregada de uma discoteca de um centro comercial que precisa desabafar, ela que também entrara na curta, volta a acompanhar o director em “Filha da Mãe”, onde contracena com José Wilker, uma estrela das novelas brasileiras que invadiram Portugal a seguir a Abril de 1974. O filme seguinte, catapultou o realizador para outro patamar, pela intensidade da história, baseada num acontecimento real, quase um “O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes” à portuguesa. Uma mulher que com a ajuda do amante mata o marido, numa pacata vila alentejana, partindo depois para uma espécie de road movie, suportado numa interpretação poderosa de Ana Bustorff. Um autêntico furacão que invadiu o grande écran. Mas, ainda estaria longe do reconhecimento que hoje granjeia.
A sua associação com o produtor Paulo Branco leva a que o seu filme seguinte Ganhar a Vida (2001), apareça a concurso na secção Un Certain Regard no Festival de Cannes. Um filme que mergulha no Portugal dos emigrantes portugueses em França e no drama de uma inconformada Rita Blanco que perde o filho e que não se conforma com o silêncio que levaria essa morte à banalidade e ao esquecimento. E estas mulheres continuam no cinema de Canijo, quer quando faz uma incursão nas casas de alterne (alguém de lembra das Mães de Bragança?), em Noite Escura (2004), a que se segue outra tragédia grega em Mal Nascida (2007), em que esta filha mal nascida, inconformada com a morte do pai, que o mesmo para a mãe e para o padrasto.
Sangue do Meu Sangue (2011) e Fátima (2017), apesar de serem diametralmente opostos, mostram duas realidades de um Portugal em crise, de valores, económicos, com os problemas transversais aos bairros pobres de Lisboa, no caso Padre Cruz, e o refúgio na fé em Fátima, mesmo que até neste particular a natureza humana nem sempre seja confiável.
À laia de conclusão, um realizador e, importante não esquecer, encenador, daí as referências teatrais, mais ou menos explícitas e não negadas, que tem nestes dois filmes, apesar de ainda só termos visto um, o ponto mais alto de uma carreira que se pretende em crescendo.
Até à próxima e bons filmes!

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