Inoã, 11 de março de 2044
Num encontro de educadores realizado no final da tarde do dia 25 de abril de 74, perante algumas dezenas de “operacionais da revolução”, o vosso avô assim falou:
“Ontem, os portugueses adormeceram num regime fascista. Hoje, certamente, não acordaram democratas. A Democracia se ensina e se aprende. Uma grande missão nos espera, a de criar a Escola da Democracia.”
Cinquenta anos decorridos, no mês de março de há vinte anos, um comentador de serviço assim se manifestava:
“Nunca tivemos uma noite eleitoral tão instável como esta, é um ambiente terrível e saio desta noite profundamente preocupado.”
Tarde demais para arrependimentos! O espectro de tendências autoritárias renascia. Um partido de extrema-direita, democraticamente, capturara um quinto do total de votos (não nos esqueçamos de que Hitler foi democraticamente eleito).
Há vinte anos, ainda sofríamos as tribulações da proto-história da política. Rastreei velhas memórias, para buscar as causas de desumanizadores paradoxos. E fui cair em recordações da primeira infância.
Na minha sala de aula de uma escola do Portugal de Salazar, os dias começavam com “salve rainhas, ave-marias, pais-nossos”, entoados em alta voz, à mistura com uns socos dados na cabeça de quem rezasse em surdina. Seguia-se o estridente cantar de hinos fascistas. E, como é bom de ver, no aquecimento para a ensinagem, que se seguiria, também não faltavam as reguadas assentadas nas mãos daqueles que não tivessem feito devidamente o trabalho de casa.
O meu colega de mesa era filho de um exilado político. O seu pai era “protestante”, mas o Jorge fingia ser católico. Descoberto, foi rudemente segregado pelos fundamentalistas da época. O professor não perdia uma oportunidade de o humilhar e de, sem pretexto aparente, o agredir verbal e fisicamente. Era raro o dia em que não o “chamasse ao quadro”. Mais raro ainda, era não o agarrar pelos cabelos e lhe bater a cabeça no quadro negro, no final da “chamada”.
“Vai-te lá sentar, meu increuzinho! Vai! E não chora! Ouviu?
O Jorge engolia o choro e lambia furtivas lágrimas. A turma, hirta e muda, desviava o olhar da repulsiva cena. E baixava a cabeça, na esperança de não ser, também, um “bombo da festa”.
O Jorge expiava pecados que não cometera. Era a vítima perfeita de um sádico, que a ditadura fizera “professor”. Sentado na mesma carteira, sentindo o seu oculto soluçar, eu me condoía, chorando por dentro e aprendendo a odiar.
Nos regimes fascistas, as corporações modernas, herdeiras das análogas da Idade Média, eram quem ditava o que fazer em sala de aula. O mesmo acontecia na ditadura de Salazar.
No tempo da “Revolução dos Cravos”, os alunos tinham na ponta da língua a tabuada, sabiam de cor as estações de caminho-de-ferro e o sistema galaico-duriense e entoar a música (já só a música!) dos hinos fascistas.
A democracia não lograra alterar hábitos escolares. A Escola de Salazar não tinha sido desmantelada, apesar da ordem expressa dos novos poderes.
Um povo não adormece fascista e acorda democrata. Dispusemos de 50 anos para cumprir uma Lei de Bases e ela não foi cumprida. “Centros de estudo” cresciam, exponencialmente. Também cresciam os índices de suicídio juvenil, do “bournout” e do analfabetismo funcional.
Os resultados do ato eleitoral de 10 de março de 24 nos diziam que perdêramos cinquenta anos de oportunidades de concretizar uma educação cidadã. Para que não perdêssemos mais oportunidades de mudança, iríamos reunir-nos no abril de 24, promover o debate público em torno de um projeto exequível e urgente. Nem tudo estava perdido.