O balanço da experiência de dois anos como governante é o mote para uma conversa com António Costa Silva. A «lógica transacional» do presidente norte-americano, que considera uma «mistura de “cowboy” e ovni político», a crescente «irrelevância» da Europa e a transformação em curso no tecido empresarial português são alguns dos tópicos abordados com o autor da visão estratégica do PRR.
Ao longo da sua vida teve experiências em várias dimensões: empresarial, académica e governativa. Que balanço faz da sua recente passagem pelo governo?
Em qualquer dimensão da minha vida nunca me poupei à aventura de viver e à capacidade de pensar sobre vários domínios. A experiência governativa foi uma honra e um privilégio, e achei que devia, sob a forma de livro, prestar contas sobre os dois anos que estive no Ministério da Economia e do Mar. É também mais uma forma de adicionar contributos para o debate público sobre a mudança tanto da economia como da administração pública, nomeadamente com o programa de digitalização previsto, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
No livro que agora editou, «Governar no século XXI – desafios, soluções, liderança», aborda o que foi feito em muitas áreas por si tuteladas. Na experiência de dois anos que teve como ministro sentiu que a economia está subjugada a uma lógica e à narrativa das contas certas?
Isso tem sido evidente, tanto na orgânica e funcionamento do governo em que estive, como nos outros executivos. Só que esta lógica condiciona muito o desenvolvimento do país. A economia não pode continuar a estar espartilhada. Por isso, defendo que deve haver um Ministério da Economia e das Finanças, como acontece em certos países europeus.
Fala do que diz ser «a submissão à tirania mediática e ao curto prazo». Sente que esse é um permanente obstáculo a uma governação efetiva nos dias que correm?
Esse ponto é crucial. O escrutínio da imprensa é fundamental, mas a corrida frenética pelas “breaking news” e a própria pressão que a internet trouxe acaba por condicionar muito o papel e a ação dos governos. E é a partir daqui que as medidas tomadas são apenas a pensar no imediato, no curto prazo. Com frequência, os governos vão atrás da pressão mediática, resolvem o que é urgente, mas nem sempre o que é urgente é o mais importante. Defendo que a nossa Assembleia da República devia ter um comité para o médio e longo prazo, para se procurar escapar a esta lógica em que impera o imediato.
A convite do então primeiro-ministro António Costa foi o autor da visão estratégica do PRR. Mesmo sabendo que não há reformas sem dor, quais são as que considera prioritárias?
Wolfgang Münchau, jornalista do “Financial Times”, escreveu um livro chamado “Kaput”, em que põe em causa o modelo industrial arcaico alemão, baseado nas indústrias pesadas. Nesse livro ele defende que a Alemanha cristalizou, não tendo prestado atenção à digitalização, ao “software” ou às biotecnologias. No caso português temos avançado na reformulação do nosso sistema económico. Existiu no PRR a preocupação de dotar ferramentas para a modernização de áreas determinantes como a metalomecânica, a indústria têxtil ou o calçado. Acredito que vamos no caminho da reorganização das cadeias de produção. E essa realidade já é visível em chão de fábrica ou linha de produção, onde existem cada vez menos pessoas e as empresas estão concentradas na criação de produtos, serviços, “design” e na interação com o cliente. É uma nova geração de serviços que necessita de ser generalizada ao tecido empresarial.
Depreendo das suas palavras que está otimista com a transformação da nossa economia?
Na base da transformação da economia está um hexágono de fatores: a capacidade exportadora, a diversificação, a capacidade de inovação, a atração de investimento direto estrangeiro, a mudança colossal na força de trabalho e, finalmente, a aposta nas “startups”. A nossa indústria de “software” e telecomunicaçoes está a crescer, em termos das exportações, a um ritmo de 18 por cento ao ano, o que dá bem a ideia de que está a ser seguido o caminho certo. Em 2022 a exportação de bens tecnológicos (produtos eletrónicos, “drones”, produtos farmacêuticos, instrumentos e máquinas elétricas, etc) superou os 4 mil milhões de euros. Atualmente dispomos de 4700 “startups” no país. E as que têm sucesso convertem-se em empresas tecnológicas, trazendo dinamismo e cosmopolitismo à economia. No que à força de trabalho diz respeito, 34 por cento dessa força já tem formação superior, o que é fruto do sistema educativo. Isto é a prova de que estamos a diversificar a economia e explica, em alguma medida, a forma resiliente como resistimos ao impacto da crise provocada pela guerra na Ucrânia.
Apesar da melhoria na qualificação o contexto empresarial é suficientemente atrativo para captar e reter talento? Estamos a fazer tudo nesse sentido?
Não estamos a fazer tudo o que é possivel. Estamos a fazer alguma coisa. O pensador Yuval Noah Harari afirmou que «a espécie humana tende a pensar com base em narrativas e não com base em números, em factos e equações.» Inspirando-me no que disse o filósofo israelita, vou focar-me nos números. E se assim for, vemos que estamos a incorporar bastantes jovens na nossa força de trabalho. É incontornável que muitos vão para o exterior e desenvolvem as suas carreiras no estrangeiro. De qualquer forma eles ficam sempre ligados ao nosso país. O principal problema é que não se muda a mentalidade de um país e de um povo de um dia para o outro. E nós somos muito individualistas. As pessoas refugiam-se em feudos, “capelinhas”, em egos e não falam, não colaboram uns com os outros. Isso pode ser letal. A Bélgica é um país de pequena dimensão e tem o dobro do nosso PIB per capita. Acredito que podemos vir a ser uma Bélgica do sul da Europa se mantivermos o rumo e formos suficientemente ambiciosos. Acontece é que a Bélgica tem 15 associações empresariais e Portugal tem mais de...100. Quando estive no Ministério da Economia procurei mobilizar grandes plataformas colaborativas, que chamei de “task force”, afetas a vários setores no sentido de superarmos, enquanto país, a incapacidade de ação coletiva demonstrada. Dizia a filósofa política alemã Hannah Arendt, que «não há nenhum país que consiga grandes realizações com uma mentalidade coletiva fraca.»
O debate sobre o impacto da Inteligência Artificial (IA) no mundo do trabalho, no ensino e nas relações sociais está na ordem do dia. O que lhe diz a sua sensibilidade? A questão ética em torno desta grande transformação tecnológica deixa-o inquieto?
Por um lado fico inquieto, por outro esperançado no desenvolvimento desta e de outras tecnologias. Nao é possível esquecer que sempre que emerge uma nova tecnologia, surge um movimento de contestação. Ficou célebre, aquando da revolução industrial, a reação destruidora das máquinas por parte dos luditas, argumentado que estas iriam tirar emprego e eram o demónio. Contudo, o que a história nos tem ensinado é que grandes transformações tecnológicas levaram a espécie humana para um ciclo de enorme prosperidade. Só espero é que estas tecnologias tenham a regulação adequada, visto que não precisamos de excesso de regulação, e impedir que sejam usadas por agentes com intenções criminosas ou poderes totalitários – apesar de neste caso, a China, como líder mundial em IA, já fazer o uso massivo desta tecnologia. No nosso país temos duas agendas mobilizadores dedicadas à AI – uma da Babel e outra da DefinedCrowd da Daniela Braga. Estas empresas estão a trabalhar nos modelos de linguagem de grande escala/Large language model (LLM). E isto impacta, diretamente, no treino e calibrar do modelo tendo em vista a reforma completa do funcionamento da nossa administração pública e a interação com os utentes, esperando-se uma resposta muito mais célere e qualificada, no contexto do programa de digitalização. Acredito que isto vai contribuir para acentuar uma lógica de proximidade entre os cidadãos, os serviços e as empresas, desburocratizando e simplificando procedimentos.
O “velho continente” vive uma instabilidade sem paralelo nos anos mais recentes. O impacto da guerra e a provável recessão na Zona Euro são foco de preocupação. O que foi chamado um gigante económico e um anão político, pode, em breve, ser irrelevante em ambas as dimensões?
A irrelevância da Europa é um risco sério. Aliás, um dos economistas mais brilhantes da Europa, o Jean Tirole, da Universidade de Toulouse, e que também foi prémio Nobel da economia, em recente entrevista referiu que os europeus se arriscam a ser «figurantes». Assumo-me como profundamente europeísta e o projeto europeu contribuiu para evitar guerras durante sete décadas, só que este projeto ficou a meio da ponte. A união bancária continua por terminar, a união do mercado de capitais não foi feita, o mercado energético não saiu do papel,etc. E também em termos económicos temos perdido terreno, nomeadamente para os Estados Unidos. Noutros domínios, a Europa investe, por exemplo, muito em ciência e tecnologia, só que o “velho continente” sabe usar o dinheiro para fazer ciência, mas não sabe usar a ciência para fazer dinheiro. Ou seja, não consegue converter toda a investigação que produz e desenvolve em projetos empresariais com relevância ou dimensão. Se olhar para as 20 maiores empresas tecnológicas do mundo só uma é europeia. Se olhar para a IA, que vai formatar o funcionamento da economia e da sociedade, só 7 por cento das patentes mundiais novas têm origem na Europa. Dantes produzíamos mais de 20 por cento dos “chips” mundiais, hoje produzimos cerca de 8 por cento. Estamos, por isso, a ficar para trás. E ainda há a economia dos dados: só 1/10 dos dados que são gerados na Europa é que cá ficam, os restantes são trabalhados no resto do mundo. São muitos exemplos que explicam, cabalmente, a debilidade do crescimento europeu.
Sucedem-se os apelos para que os países da União Europeia gastem mais em Defesa, inclusive, cerca de 5 por cento do PIB. É inevitável a mobilização para esta espécie de economia de guerra?
Estou muito preocupado com a onda belicista que se instalou na UE. Ao mesmo tempo que as democracias ocidentais estão em erosão com o crescimento da extrema-direita e o nacionalismo agressivo volta a despertar. A invasão da Ucrânia por parte da Rússia foi bárbara e inaceitável, mas creio que se devia ter jogado, desde o início, em todos os tabuleiros e privilegiado a solução diplomática. A diplomacia parece ter desaparecido do mundo e agora surge um presidente americano com uma agenda e um nacionalismo agressivo, que assume, ele próprio a diplomacia, mas da pior maneira, começando por falar diretamente com o agressor, ao mesmo tempo que despreza a UE. Trump é especialista em comunicar factos consumados e os dirigentes europeus não acautelaram isso. Dito isto, acho que a Europa tem de se defender, não com 27 sistemas diferentes, mas deve ter um projeto unificado, alinhado com as tendências do nosso tempo. Enquanto isso não acontecer, a fragmentação continua a ser uma grande debilidade europeia e só com uma união política ou parcerias reforçadas conseguiremos progredir de forma mais segura. No atual contexto, a Europa deve assumir-se como líder na constituição de uma plataforma para defender a paz e promover o comércio internacional, procurando reforçar sua segurança na medida em que seja necessario.
Disse que Trump «está a demolir os alicerces do comércio internacional». Quão destrutiva pode ser esta guerra comercial à escala mundial?
Trump está, todos os dias, a minar aquilo que são as regras da ordem internacional e a contribuir para espalhar a anarquia. O comércio é uma das grandes invenções da espécie humana e um fator fundamental para o bem-estar das populações. E na atualidade, com Trump, o comércio é a imposição do poder, das coerções, das sanções e das tarifas. Acredito que os Estados Unidos enquanto nação vão reagir. É preciso não esquecer que no século passado uma prática semelhante conduziu ao colapso do comércio internacional, os Estados Unidos entraram em sérias dificuldades e em 1929 tivemos a maior depressão da história, com sérias implicações na economia americana.
Neste seu segundo mandato o novo inquilino da Casa Branca voltou a introduzir uma era utilitarista e transacional. Para ele os valores, as alianças e os princípios são coisa do passado e dos livros de história?
Sem dúvida. Trump é uma mistura de “cowboy” e ovni político, marcando todos os dias a agenda. Ele tem uma lógica transacional e quer transformar a geopolítica internacional numa arena de negócios. Quem paga mais é quem tem direito, subvertendo toda a ordem internacional. É o «quero, posso e mando» em toda a sua magnitude, e isso vê-se nas intenções que já demonstrou, por exemplo, com a Gronelândia e o Panamá. E a última tropelia foi começar a hostilizar Taiwan, país que os chineses há muito reclamam e que tem uma empresa crucial na produção de “chips” da inteligencia artificial generativa.
A CARA DA NOTÍCIA
O «senhor PRR»
António Costa Silva nasceu em 23 de novembro de 1952 em Catabola, Angola. Licencia-se em Engenharia de Minas no Instituto Superior Técnico, concluindo o mestrado em Engenharia de Petróleos na Imperial College de Londres. Obtém o doutoramento pelas duas faculdades.
Na vida profissional, passa pela Companhia Portuguesa de Serviços, pela multinacional francesa CGG, pelo Instituto Francês do Petróleo e, a partir de 2004, pela Partex, empresa da Fundação
Calouste Gulbenkian. Em 2021, a convite do então primeiro-ministro, António Costa definiu a visão estratégica do PRR, ficando conhecido como «senhor PRR». Foi ministro da Economia e do Mar do XXIII Governo Constitucional da República Portuguesa. Para além de gestor, é professor aposentado do Instituto Superior Técnico. «Governar no século XXI – desafios, soluções, liderança», é o livro que acaba de editar com a chancela da Bertrand. Em 2021 editara «Portugal e o mundo numa encruzilhada – para onde vamos no século XXI», da mesma editora.