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Carlos Cortes, bastonário da Ordem dos Médicos ‘Portugal tem médicos em número suficiente, eles não estão é no SNS’

17-11-2025

Carlos Cortes afirma que «podemos ter mais 10 ou 20 universidades de Medicina, mas de pouco ou nada serve, se os médicos formados não saírem para o SNS.» O bastonário da Ordem dos Médicos refere que estes profissionais são «muito pressionados para produzirem e mostrarem números», o que lhes retira tempo para a «humanização» do seu trabalho.

A Ordem dos Médicos (OM) organiza, a 28 e 29 de novembro, em Coimbra, o seu 28.º Congresso, subordinado ao tema «Um rumo para a Saúde». O tema escolhido significa que, enquanto associação profissional, a OM rejeita o rumo em curso ou é uma forma de alertar para a inexistência de um caminho no setor?

Nós entendemos que tem de haver um rumo para a saúde. Há uma espécie de sensação de navegação à vista e resolução de problemas à custa de pensos rápidos. Mas continua a faltar um caminho para a saúde. Estamos permanentemente em contingência e a tomar decisões nesse contexto. Como ordem profissional entendemos que queríamos contribuir com o nosso papel para encontrar esse rumo. O Congresso será o pontapé de saída mais visível deste nosso contributo, mas continuaremos a debater a saúde ao longo de todo o ano de 2026, em particular na avaliação das suas principais dificuldades e obstáculos, envolvendo a participação de toda a sociedade civil, onde se incluem, naturalmente, os médicos, os utentes e os próprios políticos. Quando tivermos todos os dados em nosso poder, a OM apresentará uma proposta concreta para um verdadeiro rumo para o setor. Queremos com isto que a OM esteja do lado da solução e não do lado do problema.

No dia em que falamos o primeiro-ministro prometeu na Assembleia da República «manter o esforço de transformação estrutural, com humildade e com consciência das dificuldades.» Os sucessivos problemas que afetam o setor devem-se mais às políticas ou à incompetência dos titulares de cargos políticos?

Tem mais a ver com políticas de saúde do que com pessoas. Não é possível esquecer que as políticas de saúde são definidas pelo governo, sempre com o respaldo do Ministério das Finanças. Os problemas que foram surgindo ao longo dos anos mereciam uma resposta diferente. Nomeadamente ao nível da evolução da ciência, da tecnologia, a exigência e o envelhecimento da população, que também está mais informada, mas que padece de mais doenças, muitas delas crónicas. Isto coloca muita pressão sobre a capacidade dos cuidados de saúde. O mundo e a sociedade mudaram, mas as políticas de saúde não foram convenientemente adaptadas a estas realidades. E isso gerou desfasamentos em vários sistemas de saúde, um pouco por toda a Europa, levando a que alguns estejam mesmo em risco de implodir, como é o caso do português.

Ouvimos falar em planos para a saúde, mas os problemas multiplicam-se. O último plano anunciado foi para as urgências regionais de obstetrícia, a primeira em Setúbal. A OM já afirmou não se opor à concentração de serviços, mas contesta que os médicos sejam voluntários à força…

Neste como em todos os processos é preciso haver diálogo. Incomoda-me, sobretudo, que quando se fala da concentração de urgências na Península de Setúbal os últimos a saber foram os médicos do Hospital do Barreiro que teriam de se deslocar para o Hospital de Almada. Não estou com isto a defender que para se avançar com soluções tenha de haver consensos. Mas os intervenientes têm de previamente ser informados e ouvidos, para poderem participar no processo. Isto evitaria qualquer foco de conflito. No âmbito das suas competências técnicas, a OM defende que as equipas e a capacidade que é dada à urgência de maternidades tem de ser a adequada para oferecer segurança e qualidade às grávidas. Aproveito a oportunidade para revelar que a OM já solicitou aos três hospitais da Península de Setubal visitas para verificar as realidades concretas nessas unidades.

Aproxima-se o inverno e os problemas respiratórios vão, naturalmente, aumentar. Ainda este fim de semana ouvimos o apelo de médicos de vários hospitais da Grande Lisboa a denunciar que as falsas urgências persistem, com muitos deles em sérias dificuldades para dar resposta a cerca de 400 utentes diários. Sabendo que cada caso é um caso, os cuidados primários ainda estão longe de ser uma alternativa aos chamados hospitais de final de linha?

Portugal tem, sensivelmente, sete milhões de episódios de urgências, anualmente. Não há nenhum outro país da OCDE com este impacto de episódios de urgências por habitante. E deixe-me dizer-lhe que acredito que não haveria muitos países a aguentar aquilo que o nosso SNS aguenta. Cerca de 47 por cento desses episódios são situações que, à partida, não se deviam ter dirigido à urgência hospitalar. São menos de 10 por cento as idas à urgência que requerem internamento. Esta é a imagem de um SNS que tem urgências com portas demasiado abertas, face à sua capacidade de resposta. E isto deve-se a motivos identificados: cerca de 1,6 milhões de portugueses não têm médico de família atribuído. Mas, paradoxalmente, mesmo em áreas onde a cobertura de médicos de família é muito boa, continuamos a ter números de recurso às urgências hospitalares absolutamente proibitivos. Ir ao serviço de urgência é um hábito que está enraizado na população portuguesa. Há uma cultura da urgência em Portugal, que tem de ser corrigida, sob pena de acabar por prejudicar as pessoas que realmente precisam de ser atendidas com a maior rapidez. Esta lógica apenas se pode compreender por, mesmo esperando longas horas, os utentes conseguirem realizar exames complementares de diagnóstico de várias especialidades, o que não acontece nos cuidados de saúde primários.

Mas admite possível uma melhoria no Serviço Nacional de Saúde (SNS) sem a resposta dos cuidados de saúde primários?
Não era previsível a situação que está hoje a acontecer nos cuidados de saúde primários. Ponderando as aposentações e os novos especialistas que estavam em formação, estimava-se que os portugueses teriam, todos, em 2026 ou 2027, um médico de família. Mas houve um dado que não estava a ser equacionado: muitos médicos de família saíram do SNS para outros destinos, nomeadamente para o setor privado, criando um impacto completamente inesperado para muitos e muitos utentes.

Já referiu publicamente que o setor da saúde vive uma profunda «desumanização». É essa a fotografia do setor que tem após as visitas regulares que efetua a muitos hospitais deste país?

Lamento muito reconhecê-lo, mas é precisamente isso que acontece. Houve, e bem, um foco muito grande na atividade assistencial, sendo medida, muitas vezes, pelo número de cirurgias, consultas, etc. E com esta perspetiva perdeu-se o foco de outras dimensões muito relevantes, como é o caso da ética, a relação médico-doente e a humanização dos cuidados de saúde. Os médicos são muito pressionados para produzirem e mostrarem números, o que lhes retira tempo para a humanização do seu trabalho. Perante isto, espero que as novas tecnologias de comunicação, informação, diagnóstico e tratamento possam ser uma oportunidade, nomeadamente a telemedicina, a inteligência artificial e toda a robótica que está a ser desenvolvida. Acredito que a tecnologia permitirá que os médicos estejam mais tempo com os seus doentes, voltando a imprimir humanização ao setor. E não esquecer que a dimensão da humanização também faz parte da cura. Quando um doente se sente protegido e acarinhado é um passo para ter mais confiança no sistema e para se conseguir tratar. Medicina sem humanização não é verdadeira Medicina.

A inteligência artificial (IA) é um precioso auxiliar para os médicos. Mas, ao  nível do diagnóstico, pode, ao mesmo tempo, trazer implicações negativas na dignificação do ato médico?

A IA é a invenção mais importante da História da humanidade. Porquê? Porque a IA para além de ajudar à decisão, acaba por também ela decidir e aprender, podendo tomar decisões cada vez melhores. A IA é um assunto que nos preocupa muito e já temos, inclusive, uma comissão sobre este assunto. Contudo, a IA ajuda, mas não substitui. Estamos num delicado período de transição em termos tecnológicos. A nível mundial, assiste-se a um grande desenvolvimento da IA nos setores militar/armamento e na saúde, com a presença de grandes empresas de natureza comercial com ligações à saúde e à informática, por serem especialistas na matéria. De momento, aquilo que me preocupa é que os médicos estão fora da equação, nomeadamente no que à definição dos algoritmos diz respeito. Para além disso, também relacionado com este tema, emergem questões éticas, deontológicas e jurídicas muito importantes e que têm de ser salvaguardadas. Para isso, tem de haver um maior envolvimento da comunidade médico-científica. Já solicitámos ao governo a criação de uma agência para a IA dedicada à saúde. Se dermos passos firmes nesse sentido, a IA pode ser uma oportunidade para uma nova era na dimensão médico-doente: mais aprimorada e mais próxima.

A OM apresentou à ministra da Saúde, Ana Paula Martins, um pacote de medidas que inclui a recuperação de parte dos médicos que emigraram. No que é que consiste o guia de retorno?

Saem todos os anos do país entre 800 a 900 médicos. Verificámos que há muitos profissionais que pretendem regressar, mas que se confrontam com dificuldades e obstáculos, em virtude de desconhecimento sobre como o fazer, isto para além da tradicional burocracia que caracteriza o nosso país. Tal cria um certo desânimo nestes profissionais. No âmbito das 25 medidas que apresentámos ao Ministério da Saúde, a OM propôs um guia de retorno, que em primeiro lugar deve identificar quem são esses médicos, criando, através das embaixadas, um canal de comunicação com o SNS, informando-os, em particular, quando abrem determinados concursos e surgem oportunidades para o retorno. O guia de retorno visa ajudar os que desejam regressar ao seu país de origem e, ao mesmo tempo, despertar o interesse para os profissionais que não pensam retornar, possam mudar de ideias. Este é o nosso contributo para uma estratégia para tornar o SNS mais atrativo, sabendo que nos dias de hoje tem a forte competição do setor privado e da emigração.

O principal fator de contestação e desagrado da classe médica são as remunerações?

Se há quem pense que o problema dos médicos é exclusivamente de natureza remuneratória, está completamente enganado. É muito mais do que isso. Por isso é que as medidas que apresentámos à tutela e aos grupos parlamentares tocam em aspetos como as condições de trabalho, a valorização e reconhecimento profissional, a carreira médica, condições de formação, etc. Sem esquecer a possibilidade de criar condições para atrair estes profissionais para zonas do interior do país mais carenciadas em termos de cuidados de saúde.

Existem 10 faculdades de medicina públicas e duas privadas, a Católica e a Fernando Pessoa. Já disse que não há falta de médicos. Preocupa-o mais a qualidade da formação e menos a quantidade dos diplomados que saem das universidades?

Nós até podemos ter mais 10 ou 20 universidades de Medicina, mas de pouco ou nada serve, se os médicos formados não saírem para o SNS. Portugal tem, em termos absolutos, médicos suficientes. O que existe é falta de médicos a querer trabalhar no SNS.  Fizemos um levantamento e verificámos que com menos de 70 anos estavam inscritos na OM cerca de 53 mil profissionais. Ou seja, temos médicos em número suficiente, eles não estão é no SNS. Ao nível da formação, o grande problema reside no esforço de cativar diplomados em Medicina para o SNS. O foco deve ser este e não no aumento dos diplomados que depois não vão ter espaço para trabalhar, nem no SNS, nem no privado. Restar-lhes-á emigrarem. Esta semana vai ser publicado o mapa para as especialidades, que tem perto de 2400 vagas. E o que se constata é que, de ano para ano, temos cada vez mais médicos que não escolhem qualquer vaga de especialidade, o que é um problema para o nosso país. Pretendemos ter médicos diferenciados para servir Portugal. Em resumo, para começar, é preciso valorizar o SNS, para atrair mais médicos.

Ter mais faculdades no interior do país não seria uma vantagem, também para as populações mais distanciadas dos grandes centros?

Nem sequer o argumento de termos mais faculdades no interior para fixar médicos é valido. Explico: temos faculdades de Medicina em Faro e na Covilhã e posso confirmar que são das áreas mais deficitárias em médicos do nosso país. Por exemplo, a Covilhã pouco resolveu e as carências do hospital da Covilhã são disso prova. Temos estudantes de Medicina que estudam por lá durante seis anos e depois regressam às suas terras, não se fixando.

Médico é frequentemente citado como uma das profissões mais respeitadas e admiradas, devido à formação longa e à responsabilidade com a vida das pessoas. Este estatuto, por assim dizer, mantem-se inabalável na teoria, mas do ponto vista prático as próprias dificuldades com que o setor se debate têm maculado a imagem da classe?

A profissão de médico tem a especificidade de lidar diariamente com a vida das pessoas. Por seu turno, uma decisão do ministro da Saúde pode, indiretamente, ter impacto na vida de milhares e milhares de utentes. O meu cargo tem-me permitido contactar com médicos e dirigentes de organizações profissionais homólogas à OM, oriundos de diversos pontos do mundo, e constato que os problemas e as dificuldades na saúde são os mesmos. Mas a visão que existe do médico é diferente da que existia. A sociedade evoluiu, está mais exigente, mais informada. As democracias estão mais apuradas e até o “Doutor Google” deu lugar à IA. E há uma exigência nova: a obrigação do êxito. É neste difícil e desafiante contexto que opera o SNS, e que acaba por ter reflexos na responsabilização dos próprios médicos o que, do ponto meu ponto de vista, é injusto. Para além disso, hoje em dia, há a autonomia dos doentes, em que o paciente também participa na sua saúde, a par com as decisões do médico. É um somatório de fatores que leva a que tenha deixado de existir uma espécie de cristalização do médico. O médico é um ser humano como os outros, com virtudes e fragilidades, que lida com a pressão e dificuldades no seu local de trabalho, também adoece e pode padecer de “burnout”. A missão, essa, mantém-se inalterável: salvar a vida de pessoas, com total empenho e dedicação, proporcionando-lhes o maior bem-estar possível. Em suma, encaro com total normalidade estes sinais dos tempos.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Especialidade em Patologia Clínica

Nascido em 5 de janeiro de 1970, Carlos Cortes, vive em Coimbra desde o início dos seus estudos superiores. Concluiu a sua licenciatura em Medicina em 1999, tendo completado a sua especialização em Patologia Clínica em 2006. Desde então, tem exercido a sua atividade profissional no SNS como médico patologista clínico. Tem a subespecialidade em Microbiologia médica desde 2020. Detém também a Competência de Gestão de Serviços de Saúde da OM, desde 2020, a pós-graduação em Gestão e Direção em Saúde e a pós-Graduação de Ética em Saúde pela Universidade de Coimbra. Tem uma vasta atividade clínica e científica. Tendo iniciado a sua atividade profissional nos Hospitais da Universidade de Coimbra, no Instituto Português de Oncologia de Coimbra Francisco Gentil, EPE e Centro Hospitalar do Médio Tejo, EPE. Em março de 2023 foi eleito para o cargo de bastonário da OM para o triénio 2023-2025, tendo, recentemente, sido reeleito para um segundo mandato, que termina em 2029.

Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados/OM
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