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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVIII

Ricardo Conde, presidente da Agência Espacial Portuguesa Portugal à conquista do espaço

24-03-2025

O setor espacial está a criar uma dinâmica de transformação sem paralelo no nosso país. Para Ricardo Conde, é no Espaço onde podem residir as soluções para muitos problemas que existem no Planeta Terra. O presidente da Agência Espacial Portuguesa garante que há «talento e engenho», faltando aprofundar a abordagem comercial.

A Agência Espacial Portuguesa (AEP) foi criada em 2019 pelo governo para promover e executar a estratégia “Portugal Espaço 2030”. Qual o seu papel e os principais eixos de ação?

Todo o setor tem vindo a crescer, em particular, a partir do ano 2000, após Portugal ter entrado na European Space Agency (ESA). Desde logo, com o primeiro satélite português, o PoSAT-1, em 1993, projeto em que também estive envolvido. Em 1994, começámos a preparar algo avançado em relação ao tempo que foi uma constelação de satélites. Também nessa década começou a preparar-se o embrião do que viria a ser a AEP. Como disse, o crescimento foi exponencial e hoje este ecossistema já agrega mais de 80 empresas, muitas delas de capital estrangeiro.

Quando é que se opera o ponto de viragem?

Por volta de 2016/17, com o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de então, Manuel Heitor, chegou-se à conclusão que seria uma boa oportunidade olhar para esta realidade de uma forma diferente, aproveitando o chamado ”new space”, que é um Espaço mais acessível e comercial, visto como um domínio da economia. Foi precisamente nessa altura que foi criada a estratégia “Portugal Espaço 2030”, assente nos eixos programáticos da capacitação nacional, promoção de infraestruturas, observação da Terra e gestão do território, sem esquecer a diplomacia em termos científicos e académicos. Para se atingirem estes objetivos foi necessário criar dois instrumentos: um deles foi a AEP e o outro o enquadramento legal e regulatório da lei espacial, tendo em vista o desenvolvimento destas atividades em termos de construção do futuro.

O que é que pode ambicionar um país de pequena dimensão, como o nosso?

Portugal é um país pequeno, mas com potencial nesta área, particularmente em matéria de recursos humanos. Não é de estranhar que a partir de 2019 tenha havido uma explosão da oferta de cursos superiores nesta área. Lançámos vários desafios à indústria, em matéria de empreendedorismo, e começou a nascer uma dinâmica muito interessante. A par disto, temos apoiado as “startups” e promovido o alavancar de ideias tendo em vista transformar negócios. Um dos desafios programáticos avançados em 2020 foi que Portugal pode voltar ao Espaço: lançar satélites e criar o porto espacial em Santa Maria, nos Açores. Este “hub” na ilha de Santa Maria será muito importante neste ano para missões espaciais. Entretanto, já foram lançados vários satélites portugueses (o ISTSat-1, Aeros MH-1 e o poSAT-2) este último que já abre a porta para uma agenda comercial. O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para o Espaço, ao nível das agendas mobilizadoras, vai começar a dar os primeiros resultados ainda este ano. Aquilo que descrevi é a prova de que o setor do Espaço está a criar uma dinâmica de transformação sem paralelo face a outros setores.

A economia espacial é um setor em florescimento?

O Espaço tem sempre associado dois domínios: ciência e investigação e conhecimento. As empresas portuguesas capacitaram-se muito à custa da dimensão do Espaço e do facto de pertencermos à ESA podermos participar nas missões científicas. Entretanto, adicionámos outra dimensão: a economia. Temos talento e engenho, faltava-nos a abordagem na área comercial.  E neste momento estamos a transformar o setor do Espaço em economia.

Defendeu, recentemente, que «o Espaço tem de ajudar a resolver os problemas na Terra». Para que os nossos leitores entendam, pode dar alguns exemplos práticos?

O Espaço já ajuda muito a nossa vida diária e nós nem nos apercebemos. Os exemplos são variadíssimos: quando estamos com mais preguiça para cozinhar, pedimos uma “pizza” e minutos depois está o estafeta à nossa porta com a encomenda. Este processo tem por base as tecnologias espaciais. Ou seja, os sistemas de posição, navegação e tempo. O caso é idêntico quando chamamos um TVDE. Atualmente, temos uma dependência total dos sistemas GNSS (Global Navigation Satellite System) - o GPS e o Galileu. Neste campo, a Europa é autónoma por possuir um sistema próprio. Aliás, Portugal está a lançar um sistema pioneiro de navegação marítima autónoma, que vai permitir que os navios não colidam. Os aviões não chocam porque têm sistemas de alerta e de desvio. No campo agrícola também há muitas transformações em curso. O aperfeiçoamento da agricultura de precisão a nível global pode trazer, para além de racionalidade na gestão de recursos, eficiências de 5 a 10 por cento nas colheitas, nomeadamente em termos da maturação de determinadas culturas agrícolas. A eficiência agrícola pode tirar milhões de pessoas da fome. Isto é imprescindível.

É um maravilhoso mundo que se abre…

O futuro da mobilidade e das cidades inteligentes vai passar, também, muito pelas tecnologias do Espaço em termos da precisão de navegação. Vamos ter na palma da nossa mão o telemóvel que nos permitirá ver, em vídeo, qualquer zona do globo em, tempo real. Ou aceder, por exemplo, do nosso local de trabalho ao que se passa em nossa casa. Isto é uma dimensão assustadora e com uma vertente de soberania muito complexa. A precisão meteorológica é cada vez melhor. Já há previsões com 15 dias de antecedência com um grau de certeza enorme. E são feitas como? Com modelos de Inteligência Artificial e com dados, fundamentais para avançar com probabilidades. Em muitos planos a economia tenderá a deslocar-se da Terra para a órbita, com a fabricação de novos medicamentos ou a impressão em 3D, por exemplo. O tratamento de doenças em ambiente de microgravidade pode ajudar mitigar as enfermidades. Os “data center” são um grande problema em termos de energia. Por esse motivo, existe a possibilidade de colocar os grandes centros de computação em órbita. Em resumo, o que o futuro nos reserva é o “in-orbit servicing.”

A monitorização do território e o impacto das alterações climáticas na sua gestão pode ser uma área central?

As aplicações ou serviços ”downstream” resultam de informações geoespaciais e permitem obter imagens de alta resolução para gerir os sistemas de monitorização dos nossos territórios, tanto marítimo como terrestre. Nomeadamente ao nível da fiscalização dinâmica da limpeza das matas, associada a esta questão estão os fogos florestais. A inovação e operacionalidade tecnológica vai permitir ter dados do terreno com o incêndio em curso.  Teremos sistemas de monitorização, quase em “real time”, em resultado dos sensores instalados em órbita. Isto vai fazer toda a diferença na gestão da floresta.

O turismo espacial tem merecido grande atenção por parte de Richard Branson, Elon Musk e Jeff Bezos. Considera que esta é uma excentricidade de milionários ou é também uma boa publicidade para o Espaço?

Os estudos dizem que 70 a 80 por cento das viagens de avião são turismo. Quem é que há uns anos imaginaria isto? Se você fizer uma viagem de Lisboa até à Austrália esgota a pegada carbónica de toda a sua vida. Mas as pessoas fazem-no e o turismo massificou-se. Portugal recebeu 30 milhões de turistas.  Já quando ouvimos falar em turismo espacial ficamos chocados porque um qualquer milionário gastou milhões para fazer 20 minutos de uma viagem em órbita. Entendo que explorar novos caminhos no Espaço está a seguir o mesmo rumo trilhado pela aviação até aos dias de hoje. A propulsão da aviação alterou-se ao longo dos anos. Penso que será possível novos sistemas de propulsão que vão permitir o transporte logístico, entre pontos na Terra em menos de 30 minutos. Isto é o futuro dos voos hipersónicos espaciais. O turismo espacial vai sempre existir. Teremos de continuar a conviver com isso.

A corrida ao armamento e o aumento do PIB na Defesa dominam a narrativa geopolítica desde o início do ano. Como homem da ciência, como vê a emergência desta lógica de destruição e confrontação?

Há não muito tempo o nosso tópico quase exclusivo de conversa era a sustentabilidade. Hoje, a sustentablidade ficou relegada para segundo plano e o tema que emerge com muita vitalidade é a Segurança e Defesa. Penso que não podemos ser ingénuos sobre isto. O mundo regula-se em função do balanceamento do poder. O que assistimos é a antítese do conhecimento acumulado do homem ao longo de anos. Parece que estamos a retroceder civilizacionalmente. A Europa ainda é o sítio do mundo onde todos querem viver. Porquê? Todos os países, mais ou menos europeístas, partilham os mesmos valores e princípios. O passaporte europeu e as suas estrelinhas são uma referência. Isto foi construído com muito esforço e com grandes lideranças. Criou-se o que chamamos o modelo social europeu. A Europa precisa de se afirmar de forma estratégica, com autonomia e demonstrando resiliência, em três pilares essenciais, que historicamente perdemos…

E que são?

A energia barata vinha da Rússia. Enquanto isso o tabu nuclear apoderou-se da Europa e desistiu-se da tecnologia nuclear que, é bom que se diga, nada tem a ver com o passado. Para além disso, desindustrializamos completamente o “velho” continente. A pandemia foi disso prova evidente, em que precisámos de estar de mão estendida para o oriente produzir as máscaras. Finalmente, a área da Defesa. Ficámos à sombra da NATO, leia-se, dos Estados Unidos e habituamo-nos a dizer que somos um país muito pacífico. Presentemente, o modelo que temos na Rússia é uma ameaça gritante ao modo de vida europeu.

E nesta encruzilhada, qual é o caminho a seguir?

A Europa deve afirmar a sua independência em todas as dimensões, inclusive na tecnologia e no Espaço. Temos ser autónomos na nossa Defesa. Trump quer fazer a “America Great Again”, mas acredite que isto vai acabar por tornar a «Europe Great Again.» A Europa jamais irá abdicar do seu modelo social e vai fortalecer-se de uma forma vertiginosa. Estou convicto que dentro de três a quatro anos seremos dos maiores blocos do mundo. E o euro será uma moeda completamente crucial no globo. Em suma, este é o grande momento da Europa, também no domínio espacial.

A reeleição de Trump foi a «última chamada» para o despertar de uma certa letargia europeia?

Sim. Nunca se tomaram tantas decisões como nas últimas semanas. Os Estados Unidos estão a empurrar o Reino Unido de novo para dentro da Europa, vários anos após o “brexit”, com o primeiro-ministro britânico a pretender afirmar-se como o principal líder europeu.

A oferta formativa do setor espacial no ensino superior aumentou pelo terceiro ano consecutivo. Depois de Aveiro e do Minho, é a vez da Universidade do Porto lançar nova licenciatura em Engenharia Aeroespacial. Como vê a tendência da oferta formativa nesta área?

A oferta e a procura terão de se equilibrar. Isso viu-se claramente na Medicina. Já passou o período em que toda a gente queria ser médico. O mesmo aconteceu com os professores. Já agora, lembro que este ano a Universidade de Évora irá abrir o curso de Engenharia Aeroespacial.  Admito que um dia haverá saturação do mercado, mas também lembro que a formação base destes cursos é engenharia, o que permirá que os diplomados trabalhem em consultoras ou noutras áreas de engenharia. Enquanto isso, temos de dar empregabilidade neste setor. A oferta formativa passou a estar moldada às expetativas de muitos estudantes. Começámos a ser um país atrativo e se temos portugueses que vão para o estrangeiro, também temos estrangeiros que veem para cá. Muitas empresas instalam-se cá em busca do talento. E este é um fator que nos deve orgulhar.

Mas se este setor não se faz apenas de engenheiros, como fazer uma abordagem multidisciplinar?

O Espaço necessita de outras dimensões. Se evoluirmos para uma economia espacial precisamos do apoio da parte legal, precisamos da medicina espacial, nomeadamente a investigação nesta área em zonas adversas e de microgravidade, na área da manufatura e materiais, na área da arquitetura, etc. Temos de perspetivar uma economia em órbita, em que as órbitas vão ser territórios. Os grandes Estados não vão desperdiçar a sua capacidade de acesso ao Espaço.

«Astronauta por um dia» e uma competição de lançamento de “rockets” em Portugal são algumas das iniciativas com que a AEP pretende atrair cada vez mais jovens para esta área. Qual tem sido a recetividade?

Algumas das iniciativas que fazemos são autênticas bandeiras, é o caso do «Astronauta por um dia», como mencionou. São alunos entre os 14 e os 18 anos, do ensino secundário, a quem damos uma experiência de voo em microgravidade. Terminaram as inscrições esta semana e agora faremos as provas, que se assemelham à forma de recrutamento de um astronauta, com provas físicas, testes psicotécnicos e uma entrevista. É um processo rigoroso. Aliás, não podia ser de outra maneira. Esta experiência teve tal impacto que já a chegámos a exportar para outros países, como o Luxemburgo, a Estónia ou a Alemanha.  O voo será em dezembro para os 30 escolhidos. Digo-lhe isto com uma certeza enorme: não há nenhum país que tenha tantas atividades e experiências neste domínio dirigidos aos jovens como Portugal. Sei mesmo de alguns jovens que concorreram ao «Astronauta por um dia» e que hoje estão a acabar o seu curso universitário. Tenho 60 anos e, no meu tempo, quando fiz a universidade, o mais complexo que tinha à mão era uma...fisga.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Medalha de mérito científico

Ricardo Conde licenciou-se em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores pelo Instituto Superior Técnico (IST), da Universidade de LIsboa. Tem mais de 30 anos de experiência no setor espacial industrial e institucional. Iniciou a sua carreira profissional em 1991, estando ligado ao setor Aeronáutico e Espacial desde 1993.  Participou em vários programas espaciais nacionais e internacionais, nomeadamente nos segmentos Espaciais e Terrestres, e especializou-se em sistemas de Telecomunicações, Radiofrequência e Engenharia de Sistemas Espaciais e Terrestres. Desde 2019, é membro do conselho de administração da Agência Espacial Portuguesa e, em 2020, foi nomeado presidente da agência. Em 2022, foi o presidente da Rede Eureka, a maior rede internacional para promover a Ciência e a Inovação para PME, durante a presidência portuguesa desta organização internacional. Atualmente, é o representante português e chefe da delegação no Conselho da Agência Espacial Europeia (ESA), no Conselho do Observatório Europeu do Sul (ESO) e no Conselho do Square Kilometre Array Observatory (SKAO). Em 2024, foi distinguido com a medalha de mérito científico pelo Ministério da Ciência, tecnologia e Ensino Superior.

Nuno Dias da Silva
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