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D. Américo Aguiar, cardeal e bispo de Setúbal 'A tecnologia deixa-nos tão próximos e tão sós'

24-02-2025

«A educação e a escola são a garantia e a rede de segurança para que os jovens não fiquem para trás.» Quem o diz é o cardeal D. Américo Aguiar que não esconde a sua preocupação com a emergência de uma geração «demasiado intermediada pelos ecrãs». O bispo de Setúbal refere ainda que o Papa Francisco é a única personalidade mundial que «transporta a humanidade às costas» e aproveita a oportunidade para partilhar uma mensagem de gratidão para com os professores de todos os níveis de ensino.

Assumiu em outubro de 2023 a liderança da terceira maior diocese do país, Setúbal, que este ano cumpre meio século de vida. Como foi receber um território do país tão difícil e desafiante?
Não diria um território difícil, diria exigente. Muitos portugueses têm ainda gravado na sua memória o distrito de Setúbal dos anos 80, onde imperava a pobreza, a fome e o desemprego. Não é essa, felizmente, a realidade hoje da península de Setúbal. Os problemas e as dificuldades são grandes, mas existe também um potencial extraordinário e uma população magnífica disponível para enfrentar projetos, sonhos e objetivos comuns. Creio que em muitas partes do nosso território falta que a população tenha a consciência de um objetivo comum pelo qual todos lutamos. Todos, todos, todos, o tal objetivo que o Papa Francisco repetiu na Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa.

Qual foi a sensação de ter sido nomeado bispo onde o seu conterrâneo D. Manuel Martins já tinha estado anteriormente?

Quando fui nomeado para Setúbal, emocionou-me esta coincidência – apesar de saber que com Deus não há coincidências, Deus providencia – de já por aqui ter passado D. Manuel Martins. Setúbal foi “castigado” duas vezes com um bispo da mesma terra, Leça do Balio. Em 1975 veio o jovem Manuel Martins e em 2023 surgiu o jovem Américo Aguiar, ambos batizados na mesma pia batismal do mosteiro de Leça do Balio. É um desafio enorme e peço a Deus para que possamos corresponder – Deus quando dá os desafios, também dá os talentos...

No seu discurso de posse repetiu várias vezes «estamos juntos». Numa sociedade cada vez mais dissonante e fragmentada, é essa atitude entre os vários atores que pode fazer a diferença para o bem-estar das populações?

Só pode ser.  Portugal, a Europa e o mundo estão a viver graves problemas porque se teima em não dar respostas em conjunto e esquece-se uma das colunas da Doutrina Social da Igreja, o bem comum. Veja que há uns anos a comunidade educativa era constituída por professores, alunos e auxiliares de ação educativa. Agora esse universo está alargado aos pais, às câmaras municipais, às juntas de freguesia e outras associações do território. No fundo, todos ganhamos em ter um coração grande e largo que entende que a minha vida, os meus sonhos e objetivos estão interligados com os sonhos e os objetivos da comunidade onde me integro. Trabalhar juntos é uma exigência do tempo presente e uma garantia de termos um futuro melhor. Se isto não for feito, continuaremos a replicar receitas, em que uns, individualmente, vão procurar concretizar os seus objetivos deixando outros para trás.

2025 é o ano do Jubileu e «peregrinos da esperança» é o tema. Qual é a mensagem chave desta celebração?

Bonifácio VIII em 1300 proclamou o primeiro Jubileu, também chamado de “Ano Santo”, porque é um tempo no qual se experimenta que a santidade de Deus nos transforma. A esperança para o cristão é uma pessoa. É Cristo vivo. Com esta celeração estamos a marcar a encarnação do filho de Deus. O Jubileu celebra-se a cada 25 anos e, no fundo, é uma oportunidade de recomeço, tendo em vista os objetivos, as metas e os sonhos de todos e de cada um.

Um dos principais destinatários das suas mensagens são os jovens. A chamada geração mais bem preparada de sempre, vive desafios ao nivel do emprego, dos baixos salários e da habitação. Muitos deixaram o país em busca de um futuro melhor. Esta é uma geração abandonada?

Para começar é preciso que se diga que estamos a viver uma mudança de época. E isso é sempre uma experiência fraturante e dolorosa para quem é protagonista desta transição entre épocas. Durante um longo período as pessoas nasciam, vivam e morriam. O próprio conceito de projeto de vida foi modificado. No passado tudo estava mais ou menos decidido. Hoje as coisas não são assim tão claras para a vida de um jovem: seja a profissão, a estabilidade familiar, em termos de percurso educativo e também ao nível das garantias.

É a emergência do digital e a cultura do instantâneo que explicam isso?

O potencial do mundo digital coloca muitas indefinições que no nosso tempo eram certezas. Acredito que na cabeça e coração de um jovem que está a viver esta transição isto seja complexo. Deixe-me dar-lhe mais um exemplo para que se tenha a real noção do que falo: em termos geográficos trabalhávamos sempre no mesmo local. Hoje há uma nova mobilidade e uma nova geografia. As novas tecnologias permitiram que trabalhemos na Europa e a nossa empresa seja, por exemplo, do outro lado do mundo – Os “cotas” como eu não estão propriamente habituados a isto.

Esta transformação apanhou a humanidade desprevenida?

A revolução industrial revolucionou tudo e presentemente com a revolução digital está a acontecer exatamente o mesmo. O tempo e o espaço entre nós e para fazer as coisas encurtou-se substancialmente. O problema é que não estavamos “programados” para esta mudança tão rápida. Nunca como hoje pudemos estar tão próximos uns dos outros e ao chegarmos ao fim do dia fica-se com a sensação de que nunca estivemos tão sós. No nosso tempo, enquanto brincávamos na rua, os nossos pais berravam da janela para virmos jantar, muitas vezes chamando pelo nome completo, o que era quase sempre sinónimo de tareia. Hoje quando visito algumas famílias a grande preocupação dos pais é que os seus filhos não saem do quarto, diante do computador ou da tela do ecrã.

Se as famílias não dão resposta o que pode a escola fazer?

As famílias estão com um grande défice de resposta para estes problemas, nomeadamente no que à educação e preparação dos seus filhos e netos diz respeito. Este é um grande desafio para os protagonistas da educação. Não sei qual é a solução, mas constato que já estamos a ver a tentação de legislar para proibir telemóveis nas escolas. Não gosto de proibições, porque proibindo não se resolve os problemas na raiz. Mas é inevitável constatar que está a nascer uma nova geração demasiado intermediada pelo ecrã, com as potencialidades e os perigos que derivam desse mundo digital. Concordo que esta é a geração mais bem preparada de sempre, mas que se confronta com desafios e problemas que a minha e gerações anteriores não tiveram. E temos de os ajudar a resolver, não com a conversa que «no nosso tempo é que era bom», mas arriscando soluções e respostas para que estes jovens não se sintam defraudados. Não podemos permitir que os jovens sonhem um futuro sem esperança.

As dificuldades económico-financeiras, sobretudo a questão dos baixos salários e da habitação, estão na linha da frente dos motivos que levam muitos jovens portugueses a emigrar. Como é que, pelo menos, se mitiga esta situação?

Economicamente estes jovens dificilmente terão o conforto que tiveram os seus pais e os seus avós, que fruto do seu trabalho, conseguiram executar alguns projetos de vida. As gerações novas vão ter muita dificuldade em aproximar-se sequer dessa estabilidade económica e financeira. No entretanto, há muitos jovens que se vão sentindo descartados e deixados para tras. A educação e a escola são a garantia e a rede de segurança para que os jovens não fiquem para trás.

Escreveu, a 19 de janeiro, na sua coluna no “Correio da Manhã”, um artigo em que partilhava o seu obrigado aos professores e professoras das escolas primárias. Tem faltado o reconhecimento e a gratidão por parte dos políticos a esta classe?

Agradeço não apenas aos professores do nível primário, mas de todos os níveis de ensino. Gostaria de lhes transmitir o meu verdadeiro e genuíno obrigado. Sou o que sou porque homens e mulheres professores não desistiram de mim. Havia um professor que tive que me dizia: «desistir de um aluno não é próprio de um professor». Essas palavras marcaram-me profundamente. Guardo-as para sempre. Mais recentemente fiz uma tese de mestrado que apenas concluí devido à pressão do orientador. Estou convencido que se não fosse isso, não teria terminado. Estou em crer que os professores de qualquer nível de ensino não têm a completa consciência do quanto podem marcar, definir e decidir o futuro de um aluno ou de uma aluna. Por isso, aqui vai a minha gratidão para todos eles.

Consegue identificar a raiz que explica que os professores tenham perdido uma importante parcela da autoridade que sempre granjearam?

Repare que há muitos anos existia em qualquer aldeia deste país uma espécie de “Senado” profissional ao serviço da comunidade que era constituída pelo padre, o juiz, o farmacêutico, o polícia e o professor. Pessoas com muita deferência. O professor enchia a sala, era motivo de respeito e temor – e sublinho que temor não é medo, é respeito. Agora estamos num tempo em que, infelizmente, isso se perdeu. De há decadas a esta parte está em curso um processo de destruição da autoridade nas nossas relações. A desautorização e o esvaziar do respeito e autoridade dos protagonistas que ao longo da nossa vida sempre nos habituámos a considerar. Das notícias e relatos que me vão chegando, constato que hoje em dia a autoridade e o respeito pelos profesores está muito fragilizado. Tenho 51 anos e lembro-me que, em jovem, se chegasse a casa e dissesse que tinha sido castigado pelo professor, “apanhava” outra vez.

Há relatos, inclusive, de situações de violência envolvendo alunos, professores e os próprios encarregados de educação...

Os atos de violência de alunos e pais contra professores deviam ser considerados crimes públicos. Esta será uma mensagem que tem de partir do Estado. E aqui deixo críticas aos encarregados de educação por não fazerem a sua parte. Enquanto assim não for, a profissão de professor continuará a ser, para além de desgastante, também perigosa. Tenho muitos amigos “mortinhos” por reunir condições para a aposentação, porque já não aguentam mais a pressão, o desrespeito e o “bullying” que se confrontam nalgumas salas de aulas deste país.

Lisboa acolheu, em 2023, a Jornada Mundial da Juventude, da qual foi presidente da fundação. A festa da juventude, que teve como ponto alto a visita do Papa Francisco, juntou centenas de milhares de pessoas, vindos de todo o mundo. O envolvimento dos jovens com a igreja foi uma semente que, tarde ou cedo, dará frutos?

Essa é a minha esperança. Um milhão e meio de jovens de todo o mundo vieram até Lisboa. E diz-nos a experiência que estas jornadas são eventos que marcam para sempre os participantes. Estou em crer que no médio/longo prazo muitos destes jovens farão germinar aquilo que receberam da sua vivência e intercâmbio na Jornada Mundial da Juventude. Aproveito a oportunidade, através da vossa publicação, para agradecer às escolas e aos professores o apoio e a colaboração no acolhimento que deram aos milhares de peregrinos estrangeiros que circularam por todo o país, antes do evento.

É sabido que é um conselheiro próximo do Papa Francisco, que o escolheu para cardeal. O que é que gostaria de sublinhar no contacto mais próximo que tem com o sumo pontífice?

Relativamente aos papas anteriores o meu nivel de conhecimento é muito diferenciado. Estive uma vez com o Papa Bento XVI, no Porto, quando o sumo pontífice presidiu à missa a 14 de maio de 2010. E anteriormente, estive com o Papa João Paulo II, em Fátima, no ano 2000, aquando da beatificação dos pastorinhos. Quanto ao nosso querido Papa Francisco, os encontros com ele são o encontro com o pai, com o avô, com um irmão, com um superior. Uma das características que logo emergem são a sua proximidade e transparência. Ele fala, ouve, sente, responde, é solidário, com aquilo que é a realidade de cada um. Surpreende-me sempre o seu conhecimento tão detalhado dos problemas, das coisas, dos dossiers, das pessoas. Há poucos dias foi revelado que o Papa fala diariamente, por telefone ou videochamada, com a paróquia de Gaza. Digo isto com um misto de orgulho e também de lamento: hoje em dia, o Papa Francisco é a única liderança mundial transversal. Na política mundial há um grande défice de personalidades com influência transversal para aquilo que é a paz, a concórdia e o progresso da humanidade. O Papa Francisco é atualmente a única personalidade mundial que transporta à humanidade às costas para nos levar até bom porto.

Num mundo tão extremado e com conflitos um pouco por todo  o lado, a voz da Igreja católica e do seu principal representante não cai, muitas vezes, em saco roto?
Foi precisamente o Papa Francisco a alertar que a III Guerra Mundial está a acontecer aos bocadinhos. Nas mesas de negociações para a paz, na Ucrânia, na Terra Santa ou nos mais de 50 conflitos espalhados pelo mundo, assistimos ao seguinte: nas reuniões negociais para a paz estão sentados alguns representantes que, ao mesmo tempo, estão a armar as partes.  Negociar a paz e fomentar a guerra não são objetivos compatíveis. E isto é muito complicado. No fim, sofrem sempre os mesmos: os mais desfavorecidos e os mais frágeis. Isto perante o sentimento de impotência da comunidade internacional.

 

A CARA DA NOTÍCIA

O rosto da JMJ 2023

Américo Aguiar nasceu em Leça do Balio (Matosinhos), a 12 de dezembro de 1973. Cardeal católico português é desde 2023 bispo da diocese de Setúbal. Exerceu as funções de presidente da Fundação Jornada Mundial da Juventude - Lisboa 2023, a entidade jurídica da organização da jornada que se realizou em Lisboa, no mês de agosto, quando era bispo auxiliar de Lisboa. A 9 de julho de 2023 o Papa Francisco anunciou que Américo Aguiar seria elevado a cardeal. Em 4 de outubro de 2023, foi nomeado membro do Dicastério para a Comunicação. Entre 2011 e 2020, presidiu à direção da Irmandade dos Clérigos e entre 2016 e 2023 foi presidente do conselho de gerência do Grupo Renascença Multimédia, para além de desempenhar as funções de capelão nacional da Liga dos Bombeiros Portugueses.

 

Entrevista realizada a 7 de fevereiro.

Nuno Dias da Silva
Raquel Wise
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