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José Gameiro, psiquiatra ‘A crítica mútua é um dos fatores mais nocivos das relações conjugais’

17-11-2025

Referência na psiquiatria, na área da terapia de casal, José Gameiro recorre à sua experiência acumulada de décadas para analisar a forma como se comportam os relacionamentos nos dias de hoje.

Infidelidade, culpa, desejo e perdão, foram alguns dos sentimentos que ouviu e experienciou ao longo dos 40 anos de consultas de terapia de casal. Para quem ainda trabalha com casais em crise, todas as consultas são diferentes ou há muitos pontos de contacto entre si?

As terapias de casal mais difíceis, ao contrário do que se pensa, referem-se aos casos com muitos anos de conflitos, tensões, diferenças de atitude, e não são propriamente as infidelidades. Chegam ao consultório em muito mau estado. Utilizando a linguagem da aviação, os casais funcionam em “piloto automático”, o que torna difícil mudar uma atitude de vários anos. Não trabalho com violência física, mas também me surgem casos resultantes de incidentes bruscos e graves no seio familiar. O grupo das infidelidades apresenta muitas semelhanças, mas todas as histórias têm especificidades. Comum a estes casos é a forma como as pessoas suportam a adversidade, umas com maior intensidade, outras com menos. Cheguei inclusive a medicar pessoas em pior condição. O primeiro impacto é sempre muito doloroso, depois há altos e baixos, e também casos de reaproximação, etc. Um traço comum a todas estas situações que descrevi é que fica sempre uma desconfiança permanente.

Da sua experiência, conclui que são os elementos que constituem o casal que deixaram de gostar um do outro, ou o problema é a dificuldade que têm em estar juntos?

Pode ser uma coisa e outra. Mas eu digo sempre que o amor não se trabalha, eu trabalho é a relação. E é a relação que pode dar cabo do amor. Surgem no meu consultório casos em que o amor está muito deteriorado pela relação e em que se procura conciliar diferenças e atenuar a crítica mútua que é um dos fatores mais nocivos das relações conjugais. Nos casos de infidelidade há casais que têm uma muito boa relação um com o outro, até a nível sexual. Só que aventuram-se numa relação episódica que julgam ser «one night stand» e que acaba por evoluir para outro patamar.

Uma mulher infiel ainda é culturalmente mais penalizada do que um homem que tenha o mesmo comportamento?

Muito mais penalizada, devido a fatores culturais muito antigos. Costumo dizer a brincar que os cornos dos homens são mais difíceis de serrar. Hoje em dia, as pessoas do sexo feminino têm uma vida muito mais autónoma e as oportunidades são quase iguais às dos homens e quando são «apanhadas» a reação acaba por ser muito mais violenta para elas.

Saber ouvir e alimentar a relação todos os dias é o segredo para uma sã convivência, dizem os especialistas. É na falta de diálogo que residem muitos dos casos que chegam ao seu consultório?

Mais do que na falta de diálogo é na falta de cumplicidade num casal. Em vários aspetos: dos filhos, às famílias de origem, etc. Os elementos do casal têm de saber “negociar” as diferenças entre si, que naturalmente existem, mas conservando a cumplicidade. Quando um confidencia a outro uma determinada situação mais difícil, o pior que se pode ouvir é: «Do que é que estavas à espera, com esse teu feitio!?». É uma observação demolidora.

O namoro é um treino muito insuficiente para a relação conjugal, seja casamento ou uma união de facto?

Sempre foi insuficiente. É muito diferente namorar do que estar casado, e viver debaixo do mesmo teto. É muito mais difícil “negociar” as diferenças quando se vive em comum, visto que há filhos e despesas envolvidas.

Em que medida é que o fenómeno das novas famílias impacta no relacionamento dos casais?

Estima-se que, atualmente, exista um terço de novas famílias. Há pelo menos um divórcio anterior e filhos de um lado e do outro. São famílias muito mais complexas porque o número de variáveis “versus” famílias é ainda maior comparativamente, por exemplo, a uma família tradicional. Não é fácil a estas famílias organizarem-se, por exemplo, para as festas do período do Natal, o que acaba por criar tensões tanto nestes agregados, como nos casais.

São cada vez mais frequentes os casos de violência verbal e física no namoro e no casamento. Quais os sinais precoces de uma relação abusiva ou tóxica?

No namoro trato de casos do ponto de vista preventivo. E tenho-me deparado com muitos casos de sinais precoces de violência psicológica e física que derivam de sentimentos de posse, insegurança e ciúme, por vezes patológico. «Não podes usar a saia acima do joelho», «atenção a esse decote», «não podes sair com as tuas amigas», são comentários que não são um bom prenúncio e que acabam por redundar numa lambada ou noutra. As vítimas, por vezes, acreditam que as coisas voltarão ao normal, mas não é isso que acontece.

Com a massificação e generalização da internet e das redes sociais, o que mudou nos casos que chegam até si?

Há prós e contras. Não tenho uma única rede social, até porque entendi que não podia receber pedidos de amizade de doentes. Uma coisa positiva é o “WhatsApp” permitir que os casais troquem mensagens queridas e partilhem «corações» ao longo do dia, facilitando a gestão diária logística do lar. Nas outras redes sociais é assustador a forma fácil como se insulta e se faz “bullying”, chegando mesmo a haver o recurso à inteligência artificial.

A saúde mental continua a ser o parente pobre nas áreas da saúde? Ao não investirmos agora, vai sair mais caro no futuro?

A psiquiatria e a psicologia sempre foram os parentes pobres disto tudo. Chegámos a ter distritos inteiros apenas com um psiquiatra. Ainda hoje há uma falta de psicólogos enorme. Existem muitas situações do foro emocional, de sofrimento, que não carecem de medicação. Os sucessivos planos de saúde mental falharam por falta de dinheiro. Finamente, agora tivemos o PRR que conseguiu alocar cerca de 80 milhões de euros. Na psiquiatria o fundamental é mobilizar equipas de profissionais para evitar recaídas de doenças mais graves, sendo a mais complicada a esquizofrenia. Isto é barato. Não tem que fazer uma TAC, uma ressonância magnética, etc. Por isso, ter uma rede de psicólogos alargada seria fundamental.

As escolas, vistas como a primeira frente no combate à doença mental, deviam ter mais psicólogos?

Claro que sim. Há psicólogos para dar e vender em Portugal. Deviam era ser integrados em equipas hospitalares ou de saúde mental para partilharem conhecimentos com colegas com mais experiência. A psicologia não é uma brincadeira e se for mal feita pode ser perigosa para as pessoas.

Admite que a inteligência artificial pode ser uma ameaça aos terapeutas humanos?

Já há uma empresa que faz simulação de consultas por IA, mas acho isso uma grande vigarice. A IA pode ser útil para se olhar para uma TAC e noutras especialidades médicas, mas na psicologia sou completamente contra. Admito que é possível treinar uma máquina a responder perguntas. Mas é cortar completamente a indispensável relação médico-doente, nada tendo que ver com o processo psicoterapêutico.

A sua incursão pela escrita conheceu agora o seu primeiro romance, a que deu o nome de «O Outro». Em que medida é que o livro se baseou na sua experiência clínica?

Inspiro-me na minha prática clínica porque são mais de 40 anos a lidar com estes temas. Nas minhas consultas nunca permito que mencionem «o outro» ou «a outra» e curiosamente dei agora este nome ao meu livro. O meu «outro» neste livro é o Luis, para além do casal, que é composto pela Maria e o Pedro. Este livro não é sobre infidelidades puras e duras é mais sobre relações difíceis. Entretanto, já tenho outro livro quase pronto. Mas sobre casais, já não escrevo mais nada. Já chega! O próximo é sobre a relação pai e filho.

 

A CARA DA NOTÍCIA

40 anos de experiência na terapia de casais

José Gameiro nasceu em Lisboa, em 1949. É psiquiatra, doutorado em Psicologia e Saúde Mental, e membro fundador da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar. Faz terapia de casal há mais de 40 anos. É cronista da Revista do semanário «Expresso», com a rubrica «Diário de um Psiquiatra», e tem vários livros publicados, entre obras de ficção e não ficção. «Manuel de infidelidade», «Talvez para sempre», «Até que o amor nos separe», «Os meus, os teus e os nossos» e «O Outro», o último.

Atualmente, é coautor do podcast «A invenção do amor», com Raquel Marinho. É piloto privado de aviões, uma das suas paixões, desde 1987 e foi agraciado com a Ordem do Infante D. Henrique em 2005.

Nuno Dias da Silva
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