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Daniela Melo, cientista política e professora da Universidade de Boston ‘Trump só aceitará os resultados se eles lhe forem favoráveis’

16-09-2024

Há 26 anos a residir nos Estados Unidos, Daniela Melo antevê «volatilidade» e «instabilidade social» após as eleições de 5 de novembro, caso Donald Trump seja derrotado por escassa margem.

Falamos, precisamente, no dia em que se comemora mais um aniversário (23 anos) dos atentados do 11 de setembro. É uma data ainda muito presente no dia a dia dos americanos ou o tempo mitigou essa memória traumática?
Vim para os Estados Unidos em 1998, por isso, vivi de muito perto esses acontecimentos. Foram dias verdadeiramente alucinantes. Eu estava na Universidade do Connecticut, onde me instalei quando cá cheguei. 23 anos depois continua, de facto, a ser uma data muito importante, em particular para as gerações que têm uma memória clara desse dia e das consequências para o país, especialmente na primeira década do século. O país fez um prolongado luto e sofreu uma espécie de stress pós-traumático. É de facto um acontecimento que faz parte da memória cultural dos Estados Unidos, mas que começa a ser diluído nas gerações mais novas. É o caso dos meus alunos que não têm uma recordação direta do 11 de setembro. Em suma, há um maior equilíbrio na forma como se pensa esse dia fatídico.

Apesar de a ameaça terrorista estar ainda sempre presente, o paradigma mudou, com a emergência de um mundo multipolar. Parece que o inimigo não está tanto no exterior, mas sim dentro de casa. Há casos da constituição de miliícias através da internet, já para não falar dos ataques quase diários em escolas. Há um temor ao chamado terrorismo doméstico?
Quanto aos ataques às escolas, essa é uma realidade para a qual a sociedade americana está quase anestesiada. São ações levadas a cabo pelos chamados «lobos solitários», facilitadas pelo acesso às armas. Só que o tema está de tal forma politizado e polarizado, que passou ao lado do debate Trump-Harris. As milícias organizadas, muitas delas neonazis ou de extrema-direita, são um problema que não é de hoje, só que se tem agravado, não só aqui, também na Europa. O sistema multipolar e a emergência das redes sociais e aplicações, como o Telegram, permitiram uma mobilização pública e a amplificação deste tipo de organizações a uma escala transnacional. São veiculadas mensagens de ódio e confrontacionais. Nos Estados Unidos temos, por exemplo, o caso dos “Proud Boys”. Só que o próprio discurso destas organizações tem sido, de alguma maneira, normalizado por personalidades com a projeção mediática de Donald Trump, nos Estados Unidos, ou Nigel Farage, no Reino Unido.

Já estamos em contagem decrescente para as eleições americanas de 5 de novembro. Quem ganhou o debate entre Donald Trump e Kamala Harris?
Trump teria ganho o debate se no dia seguinte a conversa girasse em torno dos avanços e recuos de Kamala Harris em certas políticas. Mas nada disso aconteceu. A conversa nacional foi sobre os momentos mais erráticos e de descontrolo do ex-presidente Trump. Kamala Harris fez o que tinha que fazer, foi controlada, sóbria e não teve hesitações nas respostas que deu. E basicamente conseguiu encurralar Trump, que passou o debate a defender-se. Kamala teve o mérito de mostrar aos americanos o lado volátil de Trump.

Há quem diga que ela vestiu a pele de procuradora, ou seja, a profissão exercida no passado...
Parece-me uma análise razoável do que vimos. Ela preparou-se muito bem e conseguiu alguns momentos em que falou diretamente para o público em casa. Lançou vários iscos que o adversário foi constantemente mordendo. Ele permitiu que ela o irritasse. E Trump irritado, não tem freios.

O debate Kennedy/Nixon, o primeiro a ser transmitido na TV, a 26 de setembro de 1960, é um clássico dos manuais de comunicação política. Contra todas as expetativas, o confronto entre ambos alterou o previsível triunfo de Nixon. Na era das redes sociais e da informação abundante é hoje menos crucial uma vitória num debate televisivo?
A televisão continua a ser um meio muito importante, com um impacto imediato para milhões e milhões de pessoas. Permite comunicar uma diversidade de situações: a linguagem corporal, o tom, a postura. As audiências apontam que mais de 50 milhões de americanos viram o debate de 10 de setembro. Acredito que as pessoas que não viram o debate na TV serão influenciadas, posteriormente, nas redes sociais. Quer pelos vídeos, quer pelos “soundbytes” ou pelas opiniões dos analistas.

A tentativa de assassinato a 14 de julho na Pensilvânia, o desastroso debate de Biden e a posterior desistência do presidente em funções. Com tudo isto, a vitória de Trump parecia desenhar-se. Foi o ex-presidente que perdeu fôlego ou Harris a recuperar terreno de forma surpreendente?
Ambas as coisas. Foi um verão histórico e alucinante do ponto de vista político. Nos meses de maio, junho e julho, Trump conquistou várias vitórias políticas e judiciais, projetando a impressão de estar a ganhar em todas as frentes. Ganhou, sem margem para dúvidas, no debate perante um Biden muito debilitado e teve o seu momento áureo na convenção republicana, após ter sobrevivido milagrosamente a um atentado. As sondagens davam-no a liderar nos Estados-chave. Talvez por isso, a escolha de J.D. Vance para vice-presidente não foi estratégica. Normalmente, o n.º 2 da administração da Casa Branca deve complementar as debilidades do presidente. Marco Rubio seria uma melhor opção, por ser latino e possuir um perfil nacional. Mas tudo leva a crer que J.D. Vance, que apenas traz uma amplificação das qualidades e defeitos de Trump, foi uma escolha direta do ex-presidente.

Entretanto, Biden desiste da candidatura e tudo muda...
Após o anúncio da desistência de Joe Biden, Kamala Harris entrou muito forte e conseguiu unir o seu partido e consolidar o apoio democrata. A convenção de Chicago correu muito bem. Ela conseguiu não cometer erros e aos poucos foi conquistando os americanos. Surgiu uma dinâmica ganhadora pouco vista. Acredito que vão ser editados muitos livros de ciência política e de história americana sobre os episódios que se sucederam este verão.

Tudo aponta para que a chave da vitória esteja nos chamados “swing states”, que podem pender para republicanos ou democratas. Quais serão os campos de batalha decisivos?
As sondagens dizem que os candidatos estão muito próximos, com ligeira vantagem de um ou de outro nesses cerca de sete Estados. Parece que apenas no Winsconsin as projeções apontam que a vantagem de Harris já ultrapassa a margem de erro. Mas o Arizona, o Nevada e fundamentalmente a Pensilvânia – precisamente onde Trump sofreu o atentado – serão Estados cruciais para determinar o vencedor.

Quantos votos valerá o apoio manifestado pela cantora mais famosa do mundo, Taylor Swift, à candidata democrata?
Vale certamente mais do que todos os apoios já manifestados por outras celebridades. Naturalmente com um especial impacto no eleitorado jovem. Taylor Swift tem aquilo que em ciência política se designa por “soft power”, o poder de influenciar muitas pessoas. Muito mais do que Oprah Winfrey ou até um Barack Obama. É um impacto que tem um alcance geracional. É sabido que a afluência às urnas nos Estados-chave será determinante. Isto porque é mais fácil convencer um jovem a juntar-se a um protesto, do que a ir votar. Conseguir que um jovem vote pela primeira vez pode constituir uma forte possibilidade de criar um eleitor para o resto da vida. Quero recordar que, em 2020, quando Biden ganhou (e foi o candidato que Taylor Swift apoiou), a cantora apelou aos jovens para se recensearem e quase de imediato surgiram centenas de milhares de novos eleitores o que demonstra o seu poder de influência.

Se Trump perder resgatará, novamente, a narrativa da fraude eleitoral de 2020?
Certamente. Ele já começou a preparar terreno para questionar um eventual desaire. Trump só aceitará os resultados se eles lhe forem favoráveis. Sem imunidade presidencial, não terá argumentos para protelar os casos judiciais que sobre si pendem. Em suma, se sair derrotado, tudo isso lhe cairá em cima. Esta é uma luta de vida ou de morte para ele, existencial, eu diria.

E se sair vitorioso?
Se ele ganhar, fará um ajuste de contas. Como ele, aliás, também já admitiu, ao referir que a admnistração Biden utiliza a máquina judicial para o atacar. Mas, como se espera, se o resultado eleitoral final for muito renhido (pode haver alguns Estados com recontagem de votos durante vários dias), confesso que o meu maior medo é a volatilidade e a instabilidade social que poderemos vir a ter entre o dia da eleição (5 de novembro) e o dia da tomada de posse (21 de janeiro). Haverá, certamente, um grande potencial para a constitução de motins e ataques organizados. E a invasão ao Capitólio ainda está muito presente na memória de todos.

Para finalizar, sei que é “board chair” do jornal “online” «The New Bedford Light», na cidade onde vive, no Massachusetts. Este projeto, assente numa “startup” não lucrativa na área dos media, é uma reação ao progressivo definhamento do jornalismo um pouco por todo o mundo?
Sim. Trata-se de um projeto comunitário iniciado por mim, em 2019, juntamente com um grupo de aproximadamente uma dezena de pessoas, ligadas à cidade de New Bedford, no estado de Massachussets, onde vivo. Motivo: a dificuldade em aceder, a nível local, a informação credível. Nos anos 80 e 90, nos Estados Unidos, assistiu-se a uma reestruturação da indústria dos meios de comunicação social, com o Estado a permitir que os grupos mais fortes comprassem os pequenos jornais, rádios e televisões, formando grandes conglomerados. Os órgãos de dimensão local ou regional foram os mais penalizados. As novas plataformas de comunicação, em especial as redes sociais, acentuaram a quebra de confiança e a própria ligação entre o público e o jornalismo. Está provado que um eleitorado que tem acesso a notícias da sua cidade ou região é um eleitorado que participa e vota. Pelo contrário, a falta de notícias locais desmobiliza o interesse das pessoas pela política. Com esta iniciativa procurou-se também questionar os poderes instalados na cidade, apostando no jornalismo de investigação e também na área das artes e da cultura, preenchendo igualmente o vazio informativo deixado pelo fim de muitos títulos de pequena dimensão.

Qual é o modelo de negócio em que está assente o projeto?
A lógica de vender jornais em papel e adquirir publicidade está esgotada. Criámos um modelo sem fins lucrativos, com um quadro de diretores independente da direção editorial. O jornal digital é de acesso gratuito e vive à base de donativos. Em três anos, conseguimos angarariar mais de 4 milhões de dólares. O projeto tem tido um sucesso extraordinário, com reconhecimento local e também a nivel nacional. Quero destacar tambem o envolvimento cívico que o «The New Bedford Light» gerou. O que é muito reconfortante nos dias que correm.

 

CARA DA NOTÍCIA

Um «farol» de informação

Daniela Melo, 43 anos, nasceu em Felgueiras. Emigrou, aos 17 anos, com a família para os Estados Unidos onde permanece desde 1998. Sem planos para regressar ao país que a viu nascer, a luso-americana é cientista política e professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade de Boston. É doutorada em Ciência Política pela Universidade de Connecticut, tendo a sua tese sido sobre «A organização dos movimentos feministas em Portugal na transição democrática». Tem o bacharelato em Italiano e Relações Internacionais pelo Connecticut College. Reside desde 2008 em New Bedford, cidade portuária no sul do Estado de Massachusetts, tendo assumido o cargo de “board chair” do jornal local digital «The New Bedford Light». Analisa a realidade política americana para vários órgãos de comunicação social portugueses, sendo comentadora residente na CNN-Portugal.

Nuno Dias da Silva
Jackie Ricciardi / The New Bedford Light
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