No rescaldo dos distúrbios que abalaram a capital, José Manuel Anes mostra-se apreensivo com o crescimento da criminalidade juvenil e defende o reforço de meios e uma melhor preparação dos agentes policiais em bairros problemáticos. O criminalista acredita que a reintrodução do Serviço Militar Obrigatório possibilitaria recuperar os valores da «disciplina, organização e rigor» que se perderam entre os jovens.
Os distúrbios ocorridos na Grande Lisboa, nos últimos dias de outubro, prolongaram-se por uma semana. Estes acontecimentos reforçaram, junto das populações, a perceção de um aumento da insegurança?
Infelizmente, sim. É certo que se tratou de um fenómeno localizado, mas as imagens que as televisões transmitiram acabaram por propagar, a outras zonas, o sentimento de insegurança. Mas é preciso sublinhar que estamos a falar de um número residual de pessoas nesses bairros e não de toda a população, que é na sua esmagadora maioria gente honesta e trabalhadora. É bom que a opinião pública tenha isto em consideração.
Foram escassas as detenções, mas ficou a ideia que os organizadores dos desacatos foram, na sua maioria, jovens...
Os envolvidos pertencem a gangues e outros movimentos extremistas, alguns com características próprias de crime organizado, provocando destruição e violência. Estas situações têm na sua génese condições sociais deploráveis, mas isto não desculpabiliza essa juventude radical e perigosa. A polícia tem de atuar junto destes grupos. Enquanto isso, a regra universal passa por minimizar as tensões que existem nesses bairros, dando condições sociais às populações. Esta é a chave para que elas não acompanhem os comportamentos e as manifestações dos grupos mais radicais. Mas também é preciso promover o diálogo entre as comunidades e associações desses bairros. Os americanos chamam a isto «battle for hearts and minds» (batalha pelas mentes e corações). Veja-se o caso, a título de exemplo, da Câmara Municipal de Oeiras. Há muito tempo que o presidente isaltino de Morais promove uma política social empenhada e muito próxima destas comunidades e com esta forma de estar conquistou as populações. E não basta ser simpático, é preciso dar coisas concretas que concorram para a melhoria das condições de vida das populações.
Não estamos muito habituados a noites consecutivas com caixotes a arder, viaturas e autocarros em chamas. A criminalidade juvenil está a assumir dimensoes preocupantes?
O último Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) aponta um crescimento da criminalidade juvenil, em particular nos bairros periféricos. Esse é um problema grande que, aliás, já estudei aquando dos violentos tumultos nos subúbios de Paris. Recordo a iniciativa de um padre salesiano ( Jean-Marie Petitclerc), que era assessor do governo francês, que protagonizou uma estratégia inteligente para dar resposta a uma juventude desencantada, sem perspetivas de vida, e que facilmente entrava em esquemas ou práticas ilícitas para ganhar dinheiro fácil.
Qual foi essa estratégia?
O referido sacerdote proporcionou aos jovens dos bairros periféricos formação e ocupações, fora do ambiente dessas comunidades. No fundo, deu-lhes a conhecer um novo mundo. Quebrar essa barreira e esse ciclo é fundamental. Creio que em Portugal podia seguir-se a mesma estratégia.
Aquando dos distúrbios no Reino Unido, há uns meses, o governo acionou mecanismos de detenção e julgamento muito rápidos e a onda de vandalismo terminou rapidamente. Se a lógica preventiva não der resultados rápidos, o caminho a seguir passa pela repressão?
A lógica repressiva seguida pelas autoridades britânicas, do ponto de vista policial e judicial, visou travar o epifenómeno da violência juvenil, mas é sabido que esta prática não cura a doença, só atenua os sintomas. Mas para resolver o problema num horizonte de médio/longo prazo a estratégia a seguir terá de ser outra sempre que exista um problema de fundo na dimensão educacional e sócio-económica.
A morte de Odair Moniz no bairro da Cova da Moura, na Amadora, relançou o tema dos bairros problemáticos e a sua patrulha por parte de agentes mais novos. Defende uma gestão de recursos humanos mais cuidada e adequada? É preciso investir na formação dos agentes da autoridade em cenários de maior risco?
Os elementos policiais expostos a situações mais complicadas devem ter mais maturidade, de modo a lidar com o stress, a pressão e situações imprevistas. É preciso ter nervos de aço. Os agentes mais jovens poderão não ter a experiência necessária para resolver o problema numa fração de segundos. Qualquer agente já se deparou na sua carreira com situações-limite. Mas um polícia menos experiente terá mais dificuldade na resposta. Do ponto de vista da formação deve apostar-se no treino dos agentes em carreiras de tiro dinâmicas, o mais próximas da realidade possivel.
Os meios são o eterno problema. As “bodycam” continuam por chegar e as “taser” existentes são em número reduzido. A cobertura de videovigilância foi alargada, mas ainda há locais por vigiar. Em que medida é que a tecnologia pode ser importante para as forças de segurança e para a prevenção do crime?
É da maior importância. Quanto às “bodycam” elas já existem por cá, mas na Polícia Marítima, que está integrada no Ministério da Defesa. A PSP tem tido problemas burocráticos com o fornecedor destes aparelhos e a questão nunca mais se resolve. Veja que a “bodycam” acaba por proteger o próprio agente policial porque mostra, claramente, o que se passa, se o suspeito tem ou não tem arma, etc. Por seu lado, o “taser” permite, através de uma descarga elétrica, imobilizar o suspeito numa distância curtas ou média, sem o perigo de ser mortal. Por seu turno a videovigilância tem um efeito dissuasor e é um precioso aliado da investigação criminal. Para além de permitir identificar as artérias e as horas em que determinado local tem um potencial de perigosidade e insegurança maior.
Defende a existência de uma polícia de proximidade mais visível, mais que não seja para suscitar um efeito dissuasor?
A polícia de proximidade já existiu e depois, devido à carência de efetivos e a uma política de concentração de esquadras, verificou-se um recuo. Mas considero que é extremamente importante. Para além do efeito dissuasor do crime, permite que os agentes em patrulha troquem impressões com os moradores e os comerciantes permitindo identificar ou antecipar eventuais problemas de segurança na zona. Esta recolha de informação, para além de grande utilidade, é fundamental até para desencadear operações policiais com eficácia. Em suma, a polícia de proximidade reforça o sentimento de segurança na população.
O presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas autorizou a polícia municipal a fazer detenções na capital. Concorda com este reforço de poderes?
É certo que grande parte dos agentes da polícia municipal são agentes da PSP que estão deslocados para estas funções, mas creio que se trata de um exorbitar de competências. A polícia municipal não tem capacidade para fazer detenções. É uma contradição que, sinceramente, não consigo perceber como se resolve. Por exemplo, no país vizinho, a polícia municipal de Madrid tem essa capacidade, para além de estar armada. Em Portugal, não. A questão legal persiste.
Os movimentos de contestação e os próprios distúrbios são hoje mobilizados na internet, de forma inorgânica. Nos dias de hoje é nos meios digitais que se joga o jogo entre o gato e o rato, ou seja, entre polícias e criminosos?
Hoje é no mundo digital que se preparam os assaltos, as traficâncias e todas as movimentações à margem da legalidade. É preciso muita atenção. Mas as polícias estão a fazer o seu trabalho e o mundo digital está a ser monitorizado em permanência, tanto pela PSP como pela GNR. Seja a internet superficial ou mais profunda, a chamada “dark web”. A PJ tem uma unidade dedicada a essa temática – a Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica, designada abreviadamente pela sigla UNC3T – que lhe permite fazer uma investigação criminal detalhada nesse universo.
O Primeiro-Ministro defendeu recentemente que não existe correlação entre o aumento do crime e a participação criminal de casos envolvendo imigrantes. Contudo, a turbulência que envolve o processo de legalização dos estrangeiros que cá chegam pode tornar o nosso país mais permeável e mais apetecível para práticas desviantes?
A ligação entre imigração e criminalidade não permite concluir dados seguros. É difícil afirmar que uma questão tem raiz na outra. Mas é fundamental que precisamos de atrair imigrantes para o país: para a economia, para o trabalho, para a própria natalidade. Temos de ter consciência e noção clara desta importância. Nós que somos um país de emigrantes. Mas admito que haja umas franjas problemáticas e que têm de ser acompanhadas de perto pelos sistemas de informação policiais (PSP e GNR) e também pelo Serviço de Informações de Segurança, o SIS, no sentido de detetar eventuais fenómenos preocupantes. Isto sem esquecer os alertas que possam surgir vindos da articulação com os serviços policiais de outros países europeus. Felizmente que não temos assistido a indícios de radicalismo islamita. Por exemplo, a Mesquita Central de Lisboa é exemplar do ponto de vista da integração dos seus membros.
As escolas portuguesas são autênticas torres de Babel, em que a integração dos alunos oriundos de minorias étnicas nem sempre é fácil. Que papel deve ter a comunidade escolar para prevenir a intolerância e promover a boa integração?
É uma questão de educação cívica. Entendo que a educação deve resultar da complementaridade entre o ambiente familiar e escolar. É preciso educar numa dimensão assente na cidadania e no respeito pelo outro, de modo a evitar problemas que existem com algumas comunidades. Estou a falar, concretamente, dos ciganos e também com os africanos, porventura, os casos mais flagrantes. Educar para a tolerância e para a convivência com os outros é uma missão que deve competir à escola. Ao mesmo tempo, seria um caminho para que alguma juventude, mais à margem, tirasse mais partido do próprio sistema de ensino.
É a favor da reintrodução do Serviço Militar Obrigatório (SMO). Quais são os seus argumentos?
Faço essa defesa inspirado naquilo que vivi nos anos 60. Não podia, por isso, ser uma transposição, tal e qual, para os dias de hoje. Mas estou certo que, mesmo noutros moldes, seria possível promover a disciplina e a organização. No fundo, a melhor integração social. Nos dias de hoje o serviço militar podia contribuir para limar arestas de comportamento que não se coadunam com a vida em sociedade. As Forças Armadas também podem dar formação e educação para uma juventude em tarefas de natureza profissional: nos ramos da Força Aérea, Marinha e Exército. Daria uma renovada dimensão de utilidade ao SMO e conferiria um novo sentido ao valor do respeito pela pátria. Com o fim do SMO perderam-se valores básicos como a disciplina, a organização e o rigor. É preciso resgatá-los.
Cara da Notícia
Segurança, criminalidade organizada e terrorismo
José Manuel Anes nasceu em Lisboa, a 21 de Junho de 1944. Licenciou-se em Química (Ramo de Química-Física) pela Faculdade de Ciências de Lisboa e doutorou-se em Antropologia Social e Cultural pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). Foi professor do Departamento de Antropologia e do Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais, ambos da FCSH-UNL. É professor da Universidade Lusíada de Lisboa na licenciatura em Políticas de Segurança e no mestrado de Segurança e Justiça. Foi cerca de 20 anos criminalista do laboratório de polícia científica da Polícia Judiciária, assim como fundador e presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT). É diretor e coordenador da revista “Segurança e Defesa”, desde o primeiro número. Foi presidente da Mesa da Assembleia Geral e presidente da Mesa da Assembleia Geral da SAD do Clube de Futebol “Os Belenenses”. É um conhecido maçon, tendo sido grão-mestre da Grande Loja Regular de Portugal GLLP/GLRP.