Presidente do CNE desde 2022, Domingos Fernandes passa em revista alguns dos principais desafios que se colocam ao sistema educativo português, defendendo que este se debate com um problema de qualidade. O antigo secretário de Estado tem dúvidas que, de uma forma geral, os alunos estejam capacitados para resolver problemas, de forma autónoma e usar o pensamento crítico. A melhoria só se alcançará com inovação pedagógica nas escolas.
Cumprem-se, dentro de dois meses, os 50 anos do 25 de abril. E a educação é unanimemente considerada uma das maiores conquistas do pós-revolução. Curiosamente a entidade a que preside desde junho de 2022 é também ela uma emanação da democracia e da liberdade. Enquanto órgão consultivo tem a missão de dialogar, debater e refletir sobre o sistema educativo, avançando com pareceres e sugestões. Na atualidade, o combate às desigualdades e um desafio emergente como a inclusão de alunos migrantes em meio educativo estão no topo das vossas prioridades?
Antes de mais gostaria de agradecer a oportunidade para partilhar algo mais sobre o nosso trabalho através da vossa publicação, aproveitando para felicitá-los pelo trabalho que têm vindo a desenvolver.
O propósito do CNE passa por contribuir para que as políticas públicas, na área da educação, concorram para um sistema cada vez mais democrático e também mais inclusivo e equitativo. A problemática das novas demografias é um assunto que concentra muito da nossa atenção, devido a uma percentagem muito significativa de alunos oriundos de outros países que já estão inseridos em todos os níveis do sistema educativo, do pré-escolar ao universitário. Por isso, a questão dos alunos migrantes é uma área muito relevante, nomeadamente em termos da equidade nas aprendizagens. Neste domínio avulta a importância do Português como língua não materna pois, como compreenderá, sem dominarem a língua, os alunos dificilmente poderão acompanhar o desenvolvimento dos currículos.
Afirma que temos «um problema de qualidade no sistema educativo para enfrentar». Refere-se à qualidade com que os alunos estão a aprender e, em simultâneo, a forma como as matérias estão a ser lecionadas?
Uma das maiores conquistas saídas da instauração da liberdade e da democracia no nosso país foi a educação e a formação dos cidadãos. Portugal tem hoje um sistema educativo e formativo muito respeitado, muito observado e até muito estudado por outros países. Saímos da situação muito confrangedora que tínhamos no início dos anos 70, para um sistema educativo que, sob muitos pontos de vista, pode ser considerado «Bom», tendo em conta indicadores que são reconhecidos internacionalmente. A taxas reais de escolarização atingem agora os 88 por cento, acima da média da OCDE. E no ensino superior também temos taxas de escolarização acima da média, face aos países da União Europeia. Estas são algumas das conquistas que têm de ser realçadas.
Mas há sempre o reverso da medalha…
A pergunta que tem de ser feita passa por aferir qual o nível de qualidade que o sistema de ensino está a demonstrar, para saber se os alunos estão capacitados para resolver problemas, de forma autónoma, se o pensamento crítico está a ser desenvolvido, etc. Ou seja, se o aluno, ao sair do sistema de ensino, tem o perfil de qualificação necessário para fazer as suas escolhas e seguir a sua vida profissional, integrando-se numa sociedade cada vez mais complexa e imprevisível, em que já não há empregos para a vida, como no passado. Os alunos têm de ser preparados para as dificuldades e não para as facilidades, porque estas últimas não existem. E de momento os alunos não estão a aprender com a qualidade desejada.
Defende que esta melhoria só se faz com inovação pedagógica, mas esta ainda tarda em chegar à escola. Essa é uma pedra no sapato do sistema?
O CNE produziu uma recomendação, em outubro, precisamente sobre inovação pedagógica nas escolas. Esse documento tem um anexo que pretendemos seja um referencial para que as escolas, as universidades, os formadores e os centros de formação, de modo a que a inovação pedagógica constitua um contexto muito importante para desenvolver as capacidades e competências que atrás mencionei. A sociedade e as empresas precisam dos mecanismos, dos pensamentos e das ferramentas que a inovação, em geral, e a inovação pedagógica, em particular, nos podem proporcionar.
Está em marcha ou previsto algum esforço para, no terreno, apostar na inovação pedagógica?
É preciso não esquecer que o primeiro fator escolar que mais influencia as aprendizagens dos alunos são os professores. As dinâmicas de inovação requerem um acompanhamento e uma formação muito orientada e apoiada, para que os professores possam melhorar a qualidade do ensino. É, pois, necessário, dar continuidade ao que tem sido feito, no sentido de apoiar os professores nos processos de ensino e nas suas práticas pedagógicas, de modo a corresponder com o perfil desejado dos alunos à saída das escolas. Estudos nacionais e internacionais têm constatado que os alunos portugueses são globalmente bons a reproduzir, mas são apenas suficientes ou mesmo medíocres, na resolução de uma diversidade de problemas. E é neste particular que reside o calcanhar de Aquiles.
Em entrevista à Rádio Renascença, em meados do ano passado, admitiu ainda que metade dos alunos do secundário beneficia de explicações. Isto é um indicador consistente de que algo não funciona?
Portugal é um país com uma grande tradição de explicações. Apesar disso, não é um fenómeno apenas português. Longe disso. Nos países asiáticos, por exemplo, o impacto é muito maior. Costumo citar uma entrevista do professor Sebastião e Silva, ao jornal «A Capital», em 1968, em que já nessa altura este grande matemático português se insurgia contra uma certa passividade das escolas perante o fenómeno das explicações. Esta área tem, de facto, um peso significativo, mas não são necessariamente os alunos mais fracos a recorrerem a estas ajudas. Muitas vezes são os alunos bons ou muito bons a fazê-lo, o que é muito induzido pelo acesso ao ensino superior e pela própria pressão dos pais para que os filhos optem por determinados cursos, alguns mais apetecíveis por motivos de natureza económica ou social.
O CNE está especialmente atento a este fenómeno e temos em curso uma recomendação neste âmbito. Como é obvio, não para proibir estes centros (que são legais e que funcionam como uma qualquer empresa), mas há questões de natureza ética que se podem levantar, bem como a necessidade de introduzir regulação e perceber o fenómeno em toda a sua dimensão. Para começar, é preciso tomar consciência da real e verdadeira relação entre o fenómeno das explicações e a forma como os alunos estão na sala de aula, a forma como os professores ensinam etc. Sublinho: não se pretende demonizar nada, nem ninguém, mas é importante perceber o fenómeno.
Os resultados do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) de 2022 demonstraram um retrocesso da prestação dos alunos portugueses com 15 anos em Matemática e Leitura. A pandemia é a explicação única para esta inversão de tendência positiva dos últimos anos ou, por outro lado, as políticas educativas ou mesmo os aspetos sócio-económicos e culturais das famílias também têm uma quota parte de responsabilidades?
Os efeitos das políticas educativas não se fazem sentir com a rapidez que se julga. Para além disso, as políticas educativas em Portugal não mudam tanto como se quer fazer passar, inclusive até quando mudam os governos. Muda sempre alguma coisa, mas não tão profundamente como às vezes se pretende fazer crer. Por isso, mantendo-se relativamente estáveis, não creio que seja por aqui. Admito que a pandemia tenha a ver, alguma coisa, com este retrocesso. Apesar de não explicar tudo. Aliás, se me permite, gostaria de discordar com aquelas pessoas que garantem que se perdeu um ano de aprendizagem com a pandemia. Já procurei perceber o raciocínio e não consigo. Não descarto que a questão das demografias (alunos estrangeiros), cruzada com o fator desigualdade, que já falámos no início desta conversa, tenha algum impacto nestes resultados, para além de fatores de natureza social. Ainda assim é preciso sublinhar que Portugal era o único país que nos últimos anos subia consistentemente nos relatórios do PISA, sobretudo a partir de 2012. Antes os nossos resultados eram sofríveis ou medíocres. Em 2000, quando o estudo começou, estávamos a discutir posições no terço inferior da classificação e agora estamos no terço superior da mesma classificação.
No âmbito da avaliação a polémica sobre as vantagens e desvantagens da realização de exames é antiga e verifica-se em todos os sistemas de ensino. Refere que os exames apresentam «efeitos nefastos e indesejáveis que estão largamente comprovados». Quais são?
Os exames são um meio utilizado em quase todos os sistemas educativos do mundo e Portugal não é exceção. Os efeitos nefastos são reconhecidos, sendo o principal o afunilamento ou estreitamento do currículo, como é tratado na literatura anglo-saxónica. Exemplifico: se um aluno para aceder ao ensino superior vai ter Matemática e Física é natural que invista seriamente nessas disciplinas. O mesmo acontece do lado dos professores. Ou seja, determinado tipo de competências que são importantes nos tempos que correm têm um menor investimento e atenção, apesar de serem importantes para a formação do perfil e das competências. Isto para lhe dizer que o nosso sistema de exames tem evoluído e merece-me consideração. É uma tecnologia complexa. Mas é preciso ir mais longe: há conhecimentos, saberes, competências e atitudes que não são avaliáveis através de exames. Os exames em Portugal têm a característica especial de estarem associados ao ingresso no ensino superior. Este é mais um âmbito que tem sido alvo de estudo por parte do CNE. Admitimos que é uma matéria muito delicada e que tem de ser consensualizada, evoluindo através de passos seguros.
Têm em mente alguma novidade nesta matéria?
No final de fevereiro, vamos discutir e espero que aprovar no plenário do CNE uma recomendação para os decisores políticos no âmbito do sistema de exames e de acesso ao ensino superior. É preciso pensar numa evolução que acautele que o sistema é equitativo e que não seja prejudicial para determinado tipo de grupos afetos a outros percursos formativos, nomeadamente os alunos do ensino profissional, que quando pretendem aceder a um curso no ensino superior têm de fazer um esforço acrescido em relação, por exemplo, aos alunos que estão nos cursos científico-humanísticos. A iniciativa do CNE tem como objetivo incentivar políticas públicas para eliminar esta desigualdade.
As desigualdades são sempre um fator que dificulta a mobilidade. O nosso «elevador social» está, temporariamente, em manutenção ou a funcionar a espaços?
Não simpatizo muito com a expressão «elevador social», mas percebo a ideia. Os alunos que concluem o ensino superior têm uma vantagem em relação aos que não estudam ou ficam apenas com o secundário. Por seu turno, os alunos apenas com o curso secundário têm menos oportunidades de emprego relativamente aos alunos com um curso superior. Isto são dados concretos. É indesmentível que estudar vale a pena. O mundo não é o mesmo de há 50 anos e as qualificações são o maior bem que um cidadão pode ter na sua posse.
Sobre os professores disse que se criou «uma cultura de que ser professor é ser precário e não ter uma carreira». Depois das eleições, é necessário resolver, de uma vez por todas, a situação dos professores e reconciliar a escola?
A questão dos professores tem de ser uma grande prioridade para qualquer que seja o governo que assuma funções depois das eleições de 10 de março. Se queremos que o nosso sistema educativo entre num outro patamar, teremos de contar com os professores que estão no sistema. Há muito para rever. Os vencimentos em início de carreira são demasiado baixos. A carreira tem de ser clara, sem ambiguidades e em que as pessoas saibam o que têm de fazer e quais são as etapas. Por outro lado, estou certo que os professores querem que a sua carreira seja exigente. Mas ter regras, não é ser intransponível. Uma avaliação credível, aceite pelos professores, naturalmente. Não há avaliações perfeitas, nem à prova de bala, mas têm de ser processos credíveis e plausíveis. É a partir destes pressupostos que se deve partir para uma negociação muito intensa, mas pensada, de parte a parte.
Como se resolve o elevado número de aposentações na classe?
Estão no seu direito. São profissionais que já fizeram o seu trabalho. Nada podemos fazer. Mas podemos fazer algo quanto ao recrutamento de docentes para o sistema. Formar um professor demora cerca de cinco anos. Defendo uma política afirmativa, assertiva e bem pensada de recrutamento de professores, para fazer face às necessidades mais urgentes. Não é possível ter alunos dois ou três meses sem professores. Temos de ter um programa de emergência de recrutamento de professores, desde que sejam licenciados. Mas estes docentes só devem entrar no sistema para lecionar após terem a formação pedagógica que lhes falta. No âmago do exercício de qualquer professor tem de estar, imperiosamente, o conhecimento científico das matérias e o conhecimento pedagógico. Um professor pode ter grandes conhecimentos das matérias e, ao mesmo tempo, ter grandes lacunas em termos de interação e comunicação com os alunos.
Para concluir, parece-me fundamental que a tutela e o ensino superior façam um esforço significativo no sentido de tornar mais atrativos os cursos ministrados nos politécnicos e nas universidades, mudando a sua natureza, se necessário, ajustando-os à realidade social e económica que temos, de modo a atrair melhores candidatos e para que no futuro saiam para os estabelecimentos de ensino melhores profissionais.
Para terminarmos, questões sobre a tecnologia. A Inteligência Artificial generativa vai provocar alterações em grande escala no ensino e na aprendizagem?
Dentro de alguns anos, não sei ao certo quantos porque a evolução é vertiginosa, considero que há aspetos do ensino e da aprendizagem que vão ser profundamente alterados. Com a tradição humanista que o nosso sistema tem acredito que vamos assegurar que a relação pedagógica e a interação social se fazem de acordo com aquilo que é absolutamente indispensável. Independentemente das mudanças nas formas de aprendizagem e de ensino, a relação humanizada tem de continuar a existir dentro das escolas e das universidades, ao mesmo tempo que as questões de natureza ética são salvaguardadas.
O uso de telemóveis e outros gadgets dentro dos estabelecimentos de ensino já levou ao surgimento de várias petições. Proibir o seu uso em contexto escolar é o único caminho a seguir?
Desde 2012 é muito claro na nossa legislação que os telemóveis só podem ser utilizados para efeitos estritos de aprendizagem dos alunos. Para além disso, as escolas têm os seus próprios regulamentos, onde podem acrescentar regras e determinações para este assunto. A questão da proibição é sempre um dilema. Não proibir dá sempre mais trabalho, porque é preciso haver projetos e iniciativas para preencher os intervalos. Contudo, entendo que se os jovens se sentirem atraídos, acho que é possível. Eles estão abertos e disponíveis a ser desafiados. Uma vertente em que acho que ainda estamos atrasados é autorizar estes instrumentos tecnológicos para utilização pedagógica. Trata-se de uma prática que ainda está longe de ser popular, mas que apresenta um potencial extraordinário para a aprendizagem
A CARA DA NOTÍCIA
O foco na avaliação e nas políticas públicas
Domingos Fernandes é presidente do Conselho Nacional de Educação desde junho de 2022. É professor catedrático no Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas da Escola de Sociologia e Políticas Públicas do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa e investigador integrado do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES). Ao longo do seu percurso académico tem investigado em domínios tais como o ensino e a aprendizagem da matemática, as políticas curriculares, a teoria da avaliação, a avaliação de programas e de políticas públicas de educação, as políticas e práticas de ensino e de avaliação e as políticas e processos de formação de professores. Licenciou-se em Matemática (Ramo Educacional) na Universidade de Lisboa em 1980, concluiu o Mestrado em Educação Matemática na Universidade de Boston, nos Estados Unidos, em 1985, doutorou-se em Educação Matemática na Texas A&M University, nos Estados Unidos, em 1988 e obteve a Agregação em Educação (Avaliação Educacional) na Universidade de Lisboa em 2007. Domingos Fernandes exerceu ainda funções de coordenação técnica, científico-pedagógica e/ou política no âmbito do Ministério da Educação tendo sido, nomeadamente, Secretário de Estado da Administração Educativa do XIV Governo Constitucional e Diretor-Geral do Ensino Secundário.