Este website utiliza cookies que facilitam a navegação, o registo e a recolha de dados estatísticos.
A informação armazenada nos cookies é utilizada exclusivamente pelo nosso website. Ao navegar com os cookies ativos consente a sua utilização.

Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Carlos Tavares, economista 'O sistema fiscal penaliza quem investe, quem produz, quem trabalha e até quem poupa'

20-05-2024

Para crescer e desenvolver-se Portugal precisa de reformas urgentes, no âmbito fiscal, na Administração Pública e na Segurança Social. A ideia é defendida pelo ex-ministro da Economia, Carlos Tavares, que considera ainda que «o investimento em Educação tem sido muito grande», mas os resultados exigem «que se gaste melhor neste setor.» Sobre a temática da oferta e procura de qualificações, admite que existe «um ajustamento deficiente» que urge corrigir.

Um estudo da SEDES, entidade da qual é coordenador do Observatório de Políticas Económicas e Financeiras, desafiou o governo a fazer uma reforma fiscal que recupere o espírito original do IRS e do IRC. O estudo propõe a redução significativa das taxas, por contrapartida a uma simplificação drástica e o combate à economia informal. É na questão fiscal que pode residir o ponto de viragem para o desenvolvimento do país?

Não é apenas na questão fiscal, mas esse é, na verdade, um fator muito importante. Há um conjunto de reformas que temos vindo a defender para tornar mais favorável o ambiente em que as empresas desenvolvem a sua atividade, para que que possamos, pelo menos, aproximar-nos dos níveis médios de produtividade dos nossos parceiros da União Europeia (UE). O problema é que temos estado estagnados no que aos indicadores da produtividade diz respeito. E há razões para isso. As políticas económicas não têm favorecido o investimento produtivo. Uma das consequências é que o “stock” de capital por trabalhador em Portugal é menos de metade do da Zona Euro. Essa insuficiência de capital também condiciona os níveis de produtividade. E só verdadeiras reformas conseguirão corrigir estas distorções. A começar pela dimensão fiscal.

O que é que se devia e podia fazer neste campo?

Se se comparar os códigos originais do IRS e do IRC de 1988 com os da atualidade a diferença é profundíssima. Nessa altura, o sistema fiscal era simples, moderado e coerente. Entendia-se  a lógica do que lá estava. Mas nas últimas décadas, ano a ano, foram-se introduzindo alterações estruturais e fazendo política fiscal, num sítio que não é próprio para o fazer: o Orçamento do Estado. Isto fez com que chegássemos a um sistema fiscal com um elevado grau de complexidade, com níveis de tributação muito altos e uma diversidade enorme de benefícios fiscais. O resultado é um sistema fiscal que penaliza muito as empresas, com taxas de IRC altas e progressivas, sendo este último aspeto pouco habitual num imposto desta natureza. Com a progressividade das taxas estamos a penalizar a dimensão e a eficiência das empresas, quando passamos o tempo a ouvir dizer que o país deve ter maiores e melhores empresas.

Está a querer dizer que o sistema fiscal é injusto?

O resultado é esse, com uma progressividade excessiva, um excesso de benefícios fiscais, taxas muito altas face aos níveis de rendimento e concentração dos impostos numa base reduzida de contribuintes. Hoje em dia, o sistema fiscal penaliza quem investe, quem produz, quem trabalha e também quem poupa. No IRS temos um número de escalões que, à exceção do Luxemburgo, não tem paralelo nos países da UE – onde encontramos casos desde seis escalões até dois e até à sua ausência, com as “flat rates”. No nosso caso são onze, se considerarmos a Taxa de Solidariedade, um adicional que era temporário e acabou por ficar. As taxas de IRS são também muito elevadas, tendo em conta os rendimentos e o poder de compra dos portugueses, estando bem acima das taxas que vigoram em muitos países da UE para rendimentos comparáveis. Para já não falar das contribuições para a Segurança Social que também são altas. Na vizinha Espanha, o nível de fiscalidade, considerando o IRS e a Segurança Social, é 8 a 10 pontos percentuais mais baixo do que o praticado em Portugal. E a Espanha nem é dos países que apresenta as taxas mais reduzidas. No IRC é a mesma coisa. As taxas oscilam entre 21 e 31,5 por cento, e são crescentes com os resultados das empresas, penalizando as que apresentem mais resultados e um maior crescimento. Perante isto, muitas vezes os empresários perguntam: «para quê esforçar-me para crescer mais e ter de pagar mais impostos?» Finalmente, os benefícios fiscais. Considerando o IRS e o IRC são mais de 500 em vigor, o que torna particularmente ineficiente a cobrança da receita, criando situações de injustiça relativa. Veja que são as empresas de maior dimensão as que têm mais meios para recrutar consultores e outros especialistas de modo a tirar melhor proveito e eficiência dos benefícios fiscais existentes. E há esta particularidade que também contribui para a injustiça fiscal: mais de 40 por cento das empresas não pagam IRC e uma percentagem semelhante dos agregados familiares também não paga IRS.

Defende o princípio da tributação universal? Em que é que se define, na prática, este conceito?

Sim, na SEDES temos defendido que todos os contribuintes com rendimento deverão pagar um imposto, mesmo que reduzido. Não podemos considerar normal, por exemplo, que quase metade das empresas do país apresentem sistematicamente prejuízos para fins fiscais. Acredito que muitas tenham prejuízos reais, mas outras estão nesta situação porque conseguem aproveitar benefícios fiscais de tal maneira que não têm matéria tributável. No IRC, se fossem eliminados todos os benefícios fiscais (e alguns como os ligados à inovação deverão manter-se) podíamos reduzir esta taxa para 18 por cento, mantendo a mesma receita fiscal. Isto para não falar das situações de evasão fiscal. No caso do IRS, todos deveriam pagar o imposto em função dos seus rendimentos. E quando digo todos, são mesmo todos, mesmo que fosse um valor simbólico de 1 euro, para que as pessoas sintam que estão dentro do sistema fiscal. As pessoas com rendimentos efetivos muito baixos podiam mesmo vir a ser compensadas, através de prestações sociais. Seria da mais elementar justiça e iria recuperar para o sistema fiscal muitos agregados que estão fora, alguns simplesmente porque conseguem não declarar todos os rendimentos. No passado ocorreu uma situação parecida, quando os funcionários públicos não eram tributados em IRS. E porque se encontravam fora do sistema, não sentiam a responsabilidade de financiar a despesa pública. Foi no governo do professor Cavaco Silva, na década de 80, que se decidiu que todos os servidores públicos ficariam sujeitos a imposto. No primeiro ano, para ficarem em situação neutra, procedeu-se a uma majoração dos salários dos funcionários públicos correspondente ao valor de IRS que passaram a pagar nesse primeiro ano. Desde então, passaram a estar dentro do sistema e ninguém contesta essa integração.

Muitas micro e pequenas empresas do tecido empresarial têm uma génese e gestão familiar. Esta atomização empresarial fragiliza a capacidade da nossa economia?

Que temos empresas demasiadamente pequenas é um diagnóstico pacífico. O volume médio de negócios por empresas, em Portugal, é cerca de 1/9 do que têm as empresas alemãs e menos de metade do que têm as espanholas, por exemplo. E as nossas empresas competem, no exterior e, no setor dos bens transacionáveis, também no mercado interno, com empresas mais produtivas e de maior dimensão. Isso é um problema e, naturalmente, mais um obstáculo a que o país cresça e se desenvolva. É preciso que as pessoas percebam que quanto mais robustas forem as empresas, mais concorrenciais serão entre si e quem sai a ganhar são os consumidores e a própria economia. Já o facto de termos muitas empresas de gestão e natureza familiar não é um problema em si. O requisito essencial é que tenham boa governação, gestão profissional e políticas de sucessão adequadas. Temos exemplos vários em Portugal, em que empresas familiares têm ótimos resultados e são bons exemplos em termos de governação.

É um dos críticos do modelo e da estratégia de desenvolvimento que Portugal tem vindo a seguir. Como se costuma dizer, colocámos os ovos todos no mesmo cesto, ou seja, no Turismo?

Não apenas no Turismo. Sobretudo depois da entrada na moeda única, registou-se uma incidência muito grande no investimento nos chamados setores dos bens não transacionáveis, ou seja, setores que não exportam, nem estão sujeitos à concorrência internacional.  Os setores do imobiliário e dos serviços voltados para o mercado interno têm sido, de facto, mais rentáveis. Percebendo isso, os agentes económicos, sempre racionais, investiram mais fortemente nestes setores, em prejuízo, por exemplo da Indústria e da Agricultura. E isto também se tornou um problema para a produtividade, sendo nós uma pequena economia aberta. É verdade que o Turismo é um setor transacionável, mas é preciso que tenha um valor acrescentado significativo de modo a ter um contributo para o crescimento da produtividade. Nos últimos anos é notório que a quantidade aumentou bastante, porventura nem sempre acompanhada pelo reforço da qualidade. Para além disso, o crescimento económico do país passou a refletir crescentemente o desempenho no setor turístico. Nenhuma economia deve ficar excessivamente dependente de um único setor económico. Devemos, por isso, diversificar e atrair os agentes económicos para  investimentos no setor dos bens transacionáveis, o que numa economia aberta como a nossa pode proporcionar maior competitividade e maior crescimento futuro. Isto é fundamental, porque Portugal vive demasiado das perspetivas de curto prazo. Temos de ter uma ambição de crescimento para as próximas décadas. Se quiséssemos fazer convergir o nosso rendimento com a média da UE num prazo de 10 anos, precisaríamos de crescer, todos os anos, mais 2,5 por cento ao ano do que a média da UE. Sejamos realistas: é um objetivo muito ambicioso, mas não é impossível. Permita-me recuar até aos governos do professor Cavaco Silva para lembrar que crescemos cerca de 5,5 por cento ao ano nos primeiros cinco anos. Mas para lá chegarmos também são necessárias algumas reformas, como a da Administração Pública, da Política Orçamental e da Segurança Social, bem como a redução dos custos de contexto com que se deparam as empresas. Sem esquecer uma política de recapitalização das empresas que se me afigura crucial, visto que as nossas empresas estão a viver com metade do capital que está à disposição das suas congéneres europeias.

Depois de anos de défices, instalou-se a narrativa das contas certas. Segundo afirma, as contas até podem estar certas, mas «podem não ser boas». Quer concretizar?

As contas estão certas se toda a despesa e a receita for registada corretamente. Coisa diferente é saber se a qualidade da despesa e da receita é a adequada. Ou seja, se estamos a gastar bem e se a receita é obtida de forma racional, tendo em conta uma perspetiva de sustentabilidade e de futuro. A questão dos impostos, que já aqui falámos, mostra os aspetos negativos da forma como se tem arrecadado receita. Quanto à despesa, já vimos que falta investimento em capital, que é uma variável imprescindível para qualquer economia, e sobram despesas não produtivas. Em suma, sendo muito importante o equilíbrio das contas públicas, mais do que saber o valor do défice orçamental, é fundamental saber o que está por trás desse valor e os seus efeitos sobre a economia.

Foi ministro da Economia há cerca de 20 anos, no governo de Durão Barroso. Praticamente todos os ministros lamentam a prevalência das Finanças sobre a Economia, em que é da “luz verde” do titular do Ministério das Finanças que depende toda a ação do governo.  Falta uma política económica e financeira integrada?

Quando entrámos na área do Euro perdemos uma série de instrumentos de política económica e cambial que tínhamos no passado. Resta-nos as políticas microeconómicas, a política orçamental e as políticas de rendimentos. A própria política orçamental está sujeita a regras europeias, o que limita a margem de discricionariedade neste campo. E apesar da política fiscal ser da responsabilidade do Ministério das Finanças, ela não pode ignorar os objetivos do Ministério da Economia, nomeadamente nesta questão da tributação das empresas.  Em resumo, defendo que o Ministério da Economia deva ter uma centralidade maior na definição das políticas económicas e também ao nível da coordenação, ocupando uma posição cimeira na hierarquia dos governos.

No dia em que falamos o governo anunciou que o futuro aeroporto de Lisboa será em Alcochete. A indecisão com que projetos estruturais como este e a alta velocidade ferroviária têm sido geridos nas últimas décadas são outros obstáculos de peso ao desenvolvimento do país?

Estamos na presença de grandes investimentos estruturais que são muito pesados para a nossa dimensão e que vão demorar muitos anos até entrar em funcionamento. O que justifica um estudo aprofundado e a avaliação de todas as suas implicações. Haverá que ter consciência das restrições financeiras que temos e de que não podemos fazer tudo ao mesmo tempo. Qualquer que seja a forma de financiamento, pública, privada ou mista, são recursos que o País afeta a estes projetos e não a outros. Por isso, o desejável é que as soluções adotadas sejam concretizadas com o menor volume de despesa possível e de acordo com as necessidades reais. Por exemplo, tenho ouvido especialistas defender a prioridade para uma mais eficiente e integrada utilização da rede de aeroportos existente (Lisboa, Porto, Faro e Beja), tendo presente que parte significativa dos passageiros que aterram em Lisboa, não se destinam à capital, mas a outros pontos do país. Também o TGV é um investimento avultado, que terá de ser equacionado de forma integrada com o novo aeroporto. Num caso e noutro, a concretização dos projetos deverá reger-se por princípios estritos de eficiência económica, com a flexibilidade necessária para garantir a sua adequação às reais necessidades do País e ter em conta as suas implicações mútuas. Sem nunca esquecer o objetivo do desenvolvimento mais equilibrado do território nacional. Bastará pensar que as principais localidades do nosso interior estão longe de ser bem servidas por soluções ferroviárias, potenciando o seu isolamento face ao litoral.  Admito que esta não seja a opinião mais popular, mas penso que devemos ponderar bem as nossas prioridades e a forma como aplicamos os nossos recursos, mesmo que isso leve mais tempo.

Já aflorou anteriormente algumas reformas que considera essenciais avançarem. Ao nível da educação, estamos a fazer tudo o que podemos para criar condições para atrair e reter talento, mitigando a fuga para o exterior dos nossos melhores?

O investimento em Educação em Portugal tem sido muito grande. Basta comparar com o que é despendido noutros países da UE ou da OCDE. Porventura o que é necessário é gastar melhor neste setor. Estamos a formar pessoas em número muito superior aos do passado, mas a questão é se a oferta das qualificações e capacidades que estão a ser criadas pelo sistema educativo corresponde às necessidades. Em concreto, se existe um ajustamento entre a oferta e a procura de qualificações. O facto de haver uma percentagem significativa de pessoas que têm um excesso de qualificação para os trabalhos que estão a desempenhar e, ao mesmo tempo, haver uma percentagem elevada de quadros qualificados que procura outros países para trabalhar, parece indiciar que aquele ajustamento é deficiente, de facto. Penso que este assunto merecia um estudo aprofundado, integrando políticas. Saber com clareza do que é que vamos precisar, num horizonte de médio prazo, tendo como objetivo central fazer crescer a economia e o nível de vida das pessoas. No fundo, dar resposta à questão: que tipo de capacidades precisamos que o sistema educativo forme para acorrer às necessidades das empresas e da administração pública?

A questão dos baixos salários comparativamente com os outros países é o principal fator que explica o êxodo?

A emigração dos jovens não terá apenas a ver apenas com salários e impostos, embora eles sejam relevantes. Há especialistas que defendem que o principal fator reside na procura da realização pessoal e profissional, bem como no tipo de trabalhos que corresponda à sua formação e vocação. Muitas vezes, o país não consegue proporcionar a saída profissional desejada e este é um motivo que leva a que as pessoas procurem outras paragens, nomeadamente outros países europeus. E, segundo nos diz a experiência, os portugueses, de uma forma geral, são muito bem-sucedidos quando aceitam desafios profissionais fora de portas.

A guerra na Ucrânia arrasta-se há mais de dois anos, mas vários líderes europeus já admitem que o conflito pode cruzar as fronteiras da Europa. Que implicações económicas haveria com o alastrar da guerra ao «velho continente»?

Espero que não aconteça, desde logo pelo valor supremo da vida humana. Do ponto de vista da economia, tal tornaria as previsões económicas impossíveis e os investimentos e a programação das empresas muito difíceis, com inevitáveis cenários de inflação e desestabilização financeira. Os governos europeus têm de ter muita ponderação e bom senso para que não se entre numa situação de conflito generalizado. Seria o pior que podia acontecer à Europa e em particular a Portugal. Precisamos mais do que nunca de estabilidade e de não gastar recursos em áreas que não são produtivas.  Isto para além das consequências humanas da guerra, que são o pior de tudo! Fico muito preocupado quando oiço alguns analistas defender que precisamos de apostar na indústria de Defesa. O que precisamos criticamente é de ter indústrias fortes e florescentes em setores que produzam bens para a paz e para o franco desenvolvimento dos povos e, em particular, de Portugal.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Aos comandos da Economia durante dois anos

Carlos Tavares nasceu em Salreu (Aveiro), a 4 de abril de 1953. Ao longo do seu percurso profissional desempenhou cargos de grande relevo na administração de várias entidades, a nível nacional e internacional. Foi presidente do conselho de administração da CMVM (2005-2016); vice-presidente da European Securities and Markets Authority (ESMA) de 2011 a 2016; presidente do Committee of European Securities Regulators (CESR) em 2010. Foi ainda diretor do Bureau of European Policy Advisers da Comissão Europeia; Presidente do European Regional Committee (IOSCO); Presidente do Committee on Emerging Risks (CER) da (IOSCO); Membro do conselho de curadores da Universidade do Porto; Membro do conselho de administração de vários bancos (entre os quais o Banco Português do Atlântico, o Banco Nacional Ultramarino, a Caixa Geral de Depósitos, o Banco Totta, o Banco Chemical, o Banco Santander de Negócios   e o Banco Montepio); Ministro da Economia do XV Governo Constitucional (2002-2004), e professor da Faculdade de Economia do Porto. Coordena o Observatório de Políticas Económicas e Financeiras da SEDES.

Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados
Voltar