É no seu “atelier” em Serpa, na calmaria do Baixo Alentejo, que nascem os “cartoons” que no dia seguinte podemos ver nos jornais e na televisão. Luís Afonso, um caso raro de longevidade nesta arte e que cumpre no próximo ano quatro décadas de atividade, não abdica de conciliar a crítica, a irreverência e o humor.
Colabora com o “Público” (no “Bartoon”), com “A Bola” (no “Barba e cabelo”), no “Jornal de Negócios” (em “SA”) e na RTP/Antena 1 (em “A Mosca”). Como organiza o seu tempo e como varia o método de trabalho tendo em conta se está a desenhar para jornais ou televisão?
Estes trabalhos ocupam-me o dia todo, em horários distintos. A natureza das publicações com as quais colaboro acaba por influir na forma como organizo o meu dia de trabalho. Começo por “A Mosca”, que é a que tenho de ter concluído mais cedo, logo pela manhã. Elaboro o texto e depois do almoço, em Lisboa, gravam as vozes e depois passam à fase da animação. Da pesquisa e leitura de informação matinal nos sites de órgãos de informação sobram alguns tópicos que aproveito para as restantes colaborações sobre as quais me debruço a meio da tarde. Gosto de fazer as tiras com a maior atualidade possível e no caso do “Negócios” e do “Público” aguardo mais para o final da tarde quando começa a aumentar o caudal informativo. Por seu turno, o “Bartoon” segue por volta da hora do jantar, enquanto o “Barba e Cabelo” é o que fica pronto em horário mais tardio, normalmente depois dos jogos da noite. Mas em qualquer dos casos, faço tudo no arame, sem rede.
Há dias em que tem material a mais e outros em que tem a menos?
Claro que sim. Há uma grande assimetria. A atualidade devia ser melhor organizada para mim (risos). Quando há mais ideias e tópicos, por vezes, perde-se mais tempo em escolher o tema para o “cartoon” e sobra menos tempo para trabalhar o desenho.
Já lhe aconteceu, nalgum dia, no seu “atelier”, confrontar-se com uma tira em branco e não haver temas para fazer o seu trabalho, a poucos minutos do “deadline”?
Já me aconteceram vários casos. Mas nessas situações a cabeça começa a funcionar em modo de emergência e a coisa vem. Se as ideias não veem ter connosco, temos de ser nós a ir atrás delas.
Nasceu em Aljustrel, mas vive em Serpa desde 1988, onde foi dar aulas de Geografia. Há um “cartoonista” antes e depois da digitalização. Fale-me da evolução do envio das tiras por correio, por fax e, finalmente, a era da internet...
Já me consideraram o fundador do teletrabalho em Portugal. Há décadas que trabalho à distância para várias publicações. Houve um período em que mandei através dos Correios e quando o “cartoon” tinha de sair no dia seguinte, servia-me do motorista da Rede Expresso que levava o trabalho para Lisboa para um estafeta do jornal ir levantar. Posteriormente, em 1993, quando entrei para o “Público”, por ter necessidade de enviar trabalhos aos fins de semana, e os Correios de Serpa estarem encerrados, devo ter sido das primeiras pessoas a ter fax em casa e aqui na minha zona fui certamente o primeiro. Quando o comprei, este aparelho custava quase tanto como um automóvel – foi preciso pedir um empréstimo.
E até que chega a era digital. Recorda-se quando é que isso foi?
Muito bem. Foi no ano 2000. Deixei de trabalhar em papel. Comecei a ter uma liberdade enorme. Podia manter as colaborações estivesse em qualquer parte do mundo, com a única condição de ter ligação à internet. Criei uma fonte de letra que é a minha e o “cartoon” passou a ter uma identidade própria. Recuando no tempo, e em jeito de balanço, posso dizer que o trabalho analógico era muito mais lento e obrigava a dispor de várias ferramentas e apetrechos, em simultâneo: tintas de várias cores, tinta da china, pincéis, um “scanner” e até uma mesa de luz.
Vítor Serpa, ex-diretor do jornal “A Bola”, publicação com a qual colabora há 34 anos, «diz que é um dos melhores “cartoonistas” do mundo». Quais são as características, para além do traço, que devem ter estes profissionais, e a forma como percecionam o mundo?
Isso é um exagero dele. Há perfis diferentes, não é possível falar de um perfil homogéneo. Até porque há “cartoonistas” mais gráficos, que trabalham mais na base do desenho, e outros que funcionam mais com o texto – como é o meu caso. E também há os que fundem texto e desenho. Isto sem esquecer os que estão mais focados no humor, outros que preferem uma lógica de ativismo e intervenção. Considero-me um “cartoonista”-jornalista, até porque sou detentor de carteira profissional de jornalista com o número 1626.
Ainda se confunde muito o “cartoonista” com o humorista?
Sim, confunde-se muito. Temos uma espécie de “overdose” de oferta de humor, um pouco por todo o lado. Mas de uma forma geral o “cartoonista” não é um humorista. Com o seu trabalho procura marcar a atualidade e, se for o caso, colocar o dedo na ferida. Admito que, por vezes, a minha tira pode ter humor, mas no dia seguinte pode não ser assim. Quem me lê sabe que há dias em que o “Bartoon” ou o “Barba e Cabelo”, por exemplo, são rematados com uma interrogação. Ou seja, uma pergunta sem resposta. É algo que aprecio.
Dois dos seus “cartoons” passam-se num bar e numa barbearia. Teve a preocupação de contextualizar os “cartoons” com uma forte influência política e desportiva – no fundo, assuntos sobre os quais toda a gente tem uma opinião, mais ou menos vincada?
Sim. Só que o leitor de “A Bola” é mais transversal em termos de classes profissionais e sócio-económicas, enquanto o público-alvo do “Negócios” é mais específico e afeto a um segmento. No jornal económico posso escrever as palavras «CEO» e «OPA» que os leitores percebem. No jornal desportivo já não é tão facilmente assimilado, por isso, tenho de ter cuidados redobrados na mensagem. Para acautelar essas situações, tenho de ir acompanhando os conteúdos que ambos os jornais produzem diariamente.
Trabalhar no interior, longe da capital, confere-lhe mais liberdade?
Portugal é um país muito pequeno e Lisboa é uma cidade muito provinciana onde todos se conhecem e os mundos do jornalismo e da política se cruzam. Há vantagens em trabalhar longe da capital e não conviver diariamente com algumas das pessoas visadas nos “cartoons”. Não gosto dessa promiscuidade de ir jantar e almoçar com certas passoas. Nessa perspetiva, sinto-me completamente livre no meu trabalho.
Alguma vez recebeu direta ou indiretamente mensagens de desagrado, pressões ou foi censurado?
Não tenho qualquer rede social, pelo que muitas mensagens que me chegam são através de amigos ou colegas. Mas confirmo que já recebi mensagens de todo o género. As mais violentas foram, ainda no tempo analógico, sobre “cartoons” de futebol. Chegou ao ponto de haver ameaças. Na política tambem há manifestações de agrado e desagrado, mas creio que existe uma maior sensibilidade para compreender este trabalho.
Quais os “cartoonistas”, comediantes ou artistas que mais o inspiram?
No início não era “cartoonista”, mas fazia bandas desenhada. Aliás, diga-se de passagem, coisas de má qualidade e ingénuas. Aos 19 anos fui convidado para entrar nesta área, sem quaisquer referências. Para ser sincero, conhecia apenas as tiras “Peanuts”, que tornaram famoso o Snoopy, e o argentino Quino, recentemente falecido, que imortalizou a Mafalda.
E relativamente à nova geração de “cartoonistas”, o futuro está assegurado?
Dos mais novos do que eu, o André Carrilho será o que mais se destaca. Mas já não é tão novo quanto isso, está na faixa dos 40. Confesso não saber se há “cartoonistas” com 20 anos. Admito que a grave crise que o jornalismo atravessa faça com que haja pouco espaço para emergirem novos valores. Comecei a minha carreira num suplemento jovem, que foi uma escola onde nasceram muitos valores, seja na fotografia e no “cartoon”. Faltam projetos desta natureza. Mas com que meios? O mundo agora já não é analógico, é digital. E o que mais se aproxima de um suplemento jovem na atualidade é o “P3” do “Público”.
Até que idade pensa fazer “cartoons”?
Nunca pensei nisso. Vou fazendo. Um dia de cada vez. Nao me imagino a parar. Só se perder o prazer do que faço ou tiver problemas em termos de faculdades mentais ou motoras.
No seu mais recente livro «Mínimos Olimpicos», ao contrário do que faz no dia a dia, não recorre a uma única palavra. Foi intencional?
Foi. São todos “cartoons” originais. O livro partiu de um desafio lançado, ainda durante a pandemia, pela Academia Olímpica de Portugal e a Comissão de Atletas Olímpicos. Neste projeto quis fazer coisas diferentes, só gráficas, e diverti-me muito. Foi uma forma de fugir à rotina e também permitiu-me homenagear uma prima-irmã minha que foi atleta internacional portuguesa e recordista nacional dos 200, 400, 4x100 e 4x400 metros, chamada Conceição Vilhena.
Cara da Notícia
Um “cartoonista” multifacetado
Luís Afonso nasceu em Aljustrel, no ano de 1965. Tem formação académica em Geografia e é “cartoonista” desde 1985. Tem rubricas diárias no “Público” (“Bartoon”), “A Bola” (“Barba e Cabelo”), “Jornal de Negócios” (“SA”) e RTP/Antena 1 (“A Mosca”). Tem vários livros editados, alguns com a compilação dos seus melhores desenhos. O mais recente é “Mínimos Olímpicos”, lançado por ocasião das Olímpiadas de Paris. Em 2012, estreou-se na ficção com “O comboio das Cinco”, a que se seguiu “O quadro da mulher sentada a olhar para o ar com cara de parva e outras histórias”, “A morte de A a Z” e “O chef”. É também autor de uma curta-metragem, “Everestalefe”, de 2019, que contou com a participação especial do alpinista, João Garcia. Em 2011, recebeu o “Prémio Amadora Cartoon” atribuído no Festival de BD daquela cidade.