São cinco os paradoxos que impedem o país de transformar talento em produtividade e explicam o êxodo de muitos jovens aqui formados para o estrangeiro. Para Daniel Traça, antigo reitor da Nova SBE e agora diretor-geral de uma das mais prestigiadas escolas de negócios de Espanha e da Europa, Portugal deve colocar os olhos na receita irlandesa para o sucesso: «liderança, inspiração e ambição.»
Acabou de lançar um livro que dedica à «geração que herdará Portugal» e a todos os que se preocupam com o futuro do país mais do que com o seu presente. Da sua leitura a conclusão que tirei foi a seguinte: Ou mudamos o país ou vamos continuar a ver os nossos compatriotas a mudarem de país. Estou próximo da sua tese?
A tese é precisamente essa. Mais próximo do que isso não era possível.
Os diagnósticos sobre os obstáculos ao crescimento económico estão todos feitos. Continua a faltar um referencial estratégico?
Não sei se os diagnósticos estão feitos. Oiço comentários que dizem que as coisas estão a mudar – e estão – mas a velocidade também precisa de ser tida em consideração. Sobretudo porque a competir connosco estão outros países que também estão a mudar. E isto é como a teoria da relatividade, se eles estão a mudar mais depressa do que nós, então nós não estamos a mudar. Com a agravante de termos acumulado um grande atraso nos últimos 20 anos. Afastamo-nos da média europeia e perdemos uma série de lugares no “ranking” sobre vários indicadores que incluem outras economias da Europa. Em resumo, melhoramos em vários indicadores, é certo, mas muito menos que os nossos “benchmarks”, por isso, estamos a ficar para trás.
Identifica cinco paradoxos portugueses. O maior dos quais é o salto qualitativo que demos em termos de formação e educação - fala mesmo do «milagre» do ensino superior nos últimos 40 anos. Mas o que é que nos impede de transformar talento em produtividade?
Essa é a questão essencial. Portugal tem a dificuldade de não conseguir transformar talento em produtividade. E isso é um paradoxo. E para crescer economicamente a educação é fator fundamental. Portugal é, no seio dos países da OCDE, um caso estranho, pois mostra pouca capacidade para transformar talento e capital em produtividade, ficando muito abaixo no desempenho de um país com as nossas condições. E porquê? Penso que há uma dificuldade para possuir a ambição suficiente para exigir mudanças de processos e ir em busca de novos projetos. Ao nível das empresas não há projetos com ambição e dimensão em número suficiente. É preciso querer ganhar o mercado internacional, de querer criar marca, de modo a gerar valor acrescentado. Só assim se justifica dar emprego a um estudante português que sai da faculdade e recebe uma proposta para ir para o estrangeiro a ganhar muito mais. Só projetos ambiciosos podem reter os nossos talentos aqui.
Mas as empresas em Portugal não estão, apesar de lentamente, a seguir esse rumo?
Sim, há uma quantidade de empresas a fazer um trabalho incrível. Quanto ao grau de internacionalização, verifica-se que empresas com menos de cinco anos são muito mais internacionalizadas do que as empresas mais antigas. O que é estranho, mas também revela que a economia no nosso país está a mudar.
A fragmentação do tecido empresarial, muito assente em micro, pequenas e médias empresas, impede a economia de caminhar à velocidade desejável?
Essa falta de ambição de procurar grandes projetos é identificada em cinco variáveis em que as empresas portuguesas estão bastante deficitárias. A começar pela dimensão: há muito emprego, sobretudo nas microempresas, com menos de 10 trabalhadores. Repare que 40 por cento do nosso emprego se situa em empresas com essa dimensão, quando a média europeia é de cerca de 30 por cento. Para além disso, estas microempresas têm uma produtividade muito mais baixa, do ponto de vista relativo, face a empresas de maior dimensão. Dou-lhe um exemplo concreto: uma empresa com menos de 10 trabalhadores nunca vai ter capacidade e vontade de contratar um diretor de “marketing” ou mesmo um diretor financeiro. O ideal seria que 6, 7, 8 ou 9 empresas de pequena dimensão se juntassem e já teríamos uma empresa entre 50 e 100 trabalhadores. Estou em crer que a ambição seria, certamente, distinta. Sem isso entramos aqui num ciclo vicioso: pouca dimensão, pouca capacidade de profissionalização e baixa produtividade. Em suma, não oferecer emprego a pessoas qualificadas é uma dimensão da dificuldade.
E que outras variáveis identifica?
O investimento é outra dimensão. Investe-se muito pouco em maquinaria, que é determinante para a produtividade. Na internacionalização fizemos progressos, mas há ainda um enorme caminho para percorrer. Na qualidade da gestão o desafio ainda é enorme e estamos muito abaixo da média europeia. A qualidade da gestão nas empresas nacionais é muito inferior à gestão praticada nas multinacionais que estão em Portugal. Finalmente, o último fator é o relativo ao grau de inovação. Estes fatores todos somados revelam que ainda temos um grande défice. Mas as dificuldades identificadas não significam que seja impossível dar a volta...
No seu livro destaca até um bom exemplo nacional, que é o setor do calçado. O que é que este setor faz diferente?
Há extraordinários exemplos, quer de empresas, quer de “clusters”, que fizeram uma transição fantástica. O do calçado é um deles. O intrigante é por que é que estes exemplos não se disseminam mais e a maior velocidade. Esse é que é o nosso grande drama. Mas gostaria de sublinhar que a falta de ambição passa pelo setor empresarial, mas passa também muito pelo setor do Estado. O Estado até tem desenvolvido um esforço para recrutar pessoas qualificadas, e com cursos superiores, mas as burocracias, o excesso de regulamentação e outras impossibilidades dificultam as mudanças no Estado. Para inverter isto, é preciso criar uma meritocracia e dar os meios necessários aos funcionários públicos que tenham capacidade e vontade de fazer diferente, focando-se mais nos resultados e menos nos processos. No Estado, como noutros sítios, quem apresenta resultados é que deve ser reconhecido por isso. No fundo, o Estado continua a ser o espelho da incapacidade do país, no seu todo, de definir uma estratégia, onde as dimensões estatal e privada saibam colaborar juntas para a transformação da economia.
Para além de fatores estruturais, pensa que existem raízes culturais e históricas que nos impedem de progredir enquanto pais?
Há um investigador holandês que concluiu que Portugal é o segundo país com maior aversão à incerteza e lidera no “ranking” dos países com a menor orientação a longo prazo. Perante estes dados é, de facto, dificil ter ambição. Contudo, no passado, também se julgava que noutros países, por exemplo, a Irlanda, a cultura era um problema, mas com o tempo deu-se a volta. Houve uma altura que os irlandeses definiram uma estratégia que inspirou os seus cidadãos. E a mudança operou-se. Se outros países conseguiram mudar, Portugal também o pode fazer. Haja liderança, inspiração e ambição. Penso que temos desperdiçado crises para operar as mudanças. A última das quais foi a intervenção da “troika”. Tinha sido uma boa altura para falar menos de sofrimento e mais de esperança.
Se definirmos uma estratégia e nos mostrarmos firmemente empenhados em mudar, em quanto tempo poderão surgir os primeiros resultados consistentes?
Nada tem resultados a menos de quatro anos. Isto para lhe dizer que só há estratégia se for pensada a muito mais do que um ciclo político de quatro anos. Exige-se, por isso, ambição de longo prazo partilhada por uma constelação política suficiente para saber que quando mudar o governo, não mudam os pilares em que assenta a estratégia. O segredo da Irlanda reside no caminho definido, nos anos 70 do século passado, por um burocrata irlandês e nada fará o país desviar-se deste rumo, independentemente dos governos que passam pelo poder. Os resultados estão à vista.
Defende que a mudança tem de partir da sociedade. Qual o papel que as elites políticas e empresariais podem e devem desempenhar?
O papel das elites económicas e políticas é fundamental para liderar este processo de transformação. Dependerá da vontade, da decisão e do programa. Mas cada um de nós, enquanto cidadãos, também pode fazer acontecer. Integrei um projeto maravilhoso da minha vida e fiz a minha parte para o sucesso que é hoje a Nova SBE. Mas certamente que a mudança será muito mais rápida e transversal se o projeto for nacional.
A mudança deverá estar alicerçada num grande consenso e desígnio nacional?
Não há um processo de transformação acelerada sem uma ideia clara de união e «estamos juntos». Vou dar-lhe um exemplo: baixar impostos é uma das principais preocupações manifestadas pelos empresários portugueses. Mas se o partido que estiver no governo baixar os impostos hoje e daqui a três anos o partido que o substituir no poder fizer o oposto, esta baixa de impostos não vai ter qualquer efeito. Em resumo, a diferença só se faz a longo prazo.
É um dos muitos portugueses expatriados que aceitaram oportunidades em economias mais competitivas e com novos horizontes. É a falta de esperança e perspetiva que leva a que a geração mais bem preparada de sempre procure outros objetivos e outras latitudes? Em caso afirmativo, não há um certo fatalismo associado a este êxodo difícil de estancar?
Sim, tenho a impressão que, na juventude, em geral, há uma certa falta de esperança. Em primeiro lugar, os jovens saem porque entendem que as oportunidades no exterior são melhores do que as que o seu país oferece. Mas o salário não é o único argumento. Também advogam que a cultura empresarial aqui é muito fechada e pouco aberta a novas oportunidades e a apostar no risco. Mas não podemos ser fatalistas. Tudo é possível mudar. É necessário mudar para restaurar a esperança dos jovens. Não creio é que esta ideia seja tão partilhada assim por amplos setores da sociedade.
Defende um mecanismo de compensação «muito suave» ao Estado por parte dos jovens que saem do país após terminarem os seus cursos. No que é que consistiria esta compensação?
Portugal investiu muito nos seus jovens, dando-lhes uma excelente educação. Mas isso custou muito aos contribuintes. Este investimento em capital humano não é desperdiçado, mas seria importante que ficasse no país. Não sendo assim, penso que temos de ser imaginativos. Visto que temos um problema orçamental, defendo que no âmbito do financiamento do ensino superior, numa fase inicial, se aumentem as propinas. Depois, os que ficarem em Portugal pagam muito menos ou não pagam. Por seu turno, os que escolherem ir para o estrangeiro terão de devolver determinada verba, para ser saldada a prazo, num horizonte temporal a negociar. Isto não é para desencorajar a mobilidade, mas é uma forma justa, no meu entender, de suportar o elevado custo da educação.
Seis escolas de negócios portuguesas estão muito bem colocadas nos “rankings” do “Financial Times”. O facto de serem referências no âmbito da formação de gestores e executivos é também a prova que o problema do país está na economia e não na educação?
Sem dúvida. Hoje olho para as escolas portuguesas como concorrentes da escola onde estou. Voltei a Portugal em 2009, vindo de Bruxelas, e a forma como eram perspetivadas as escolas de negócios do país nada tem que ver como hoje são vistas, nomeadamente a Nova SBE, onde estive sete anos. Aqui, posso dizer, com toda a certeza, que Portugal correu muito mais depressa do que os seus rivais. Com a particularidade de termos ultrapassado escolas de outros países que há 10 anos estavam bem acima de nós. Era muito bom que este exemplo inspirasse muitos setores e muitas empresas do nosso país. Infelizmente, o que se tem constatado em Portugal é que os bons exemplos acabam por não criar escola.
A CARA DA NOTÍCIA
Um cidadão do mundo com os olhos em Portugal
Daniel Traça é, desde setembro, diretor-geral da ESADE Business School, em Barcelona, uma das três escolas de negócios mais importantes de Espanha e uma das mais prestigiadas da Europa. Viveu a sua infância em África e voltou para Portugal em 1975, tendo passado a sua adolescência na Lisboa dos anos 1980. Licenciado pela Nova SBE, emigrou em 1991, para se doutorar na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Lecionou no INSEAD, em Fontainebleau (França), e em Singapura, entre 1996 e 2004, e ainda na Solvay Business School, em Bruxelas, entre 2005 e 2008. Ao longo dos anos, publicou vários artigos científicos em revistas internacionais e colaborou com instituições como o Banco Mundial e a Comissão Europeia. Em 2009, regressou a Portugal para assumir responsabilidades académicas e de gestão na sua “alma mater”, a Nova SBE. Ocupou o cargo de reitor da escola de Carcavelos, entre 2015 e 2022. Recebeu do Presidente da República, em 2023, a Grande Oficial da Ordem da Instrução Pública. Publicou recentemente o livro “Ambição. Preparar Portugal para a geração mais bem preparada”, com a chancela da Oficina do Livro.