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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Conceição Calhau, nutricionista e catedrática da Nova Medical School 'Comemos tudo, de todo o mundo, menos aquilo que é português'

08-08-2024

É uma das mais respeitadas investigadoras na área da nutrição e defende um regresso às origens em matéria de comportamento alimentar. Conceição Calhau é da opinião que o autocuidado em saúde devia ocupar um papel central nas escolas, com a inclusão das temáticas alimentares na disciplina de Cidadania.

«Deixemo-nos de tretas – a ilusão da comida saudável» é a sua proposta em livro. Trata-se de um aviso à navegação para que se dê mais ouvidos à ciência e é um alerta para que a população esteja de pé atrás para práticas que muitas pessoas seguem, quase acriticamente, como, por exemplo, as dietas ditas milagrosas?

O objetivo é mesmo esse. A sociedade tem uma consciência muito grande sobre a importância da alimentação na saúde e a sua relação com algumas das doenças dos dias de hoje.  Mas também vivemos num período em que é da maior relevância distinguir, por entre a abundante informação que circula, o que é e o que não é correto. Em suma, as pessoas querem saber e podem recorrer a muitas fontes que já vão muito para além dos órgãos de comunicação social. São as redes sociais, os influencers ou líderes de opinião que estão muito longe de ser a ciência.

Que são, muitas vezes, quem veicula as modas e os «conselhos nutricionais» que nem sempre são os mais sensatos…

Pois, hoje em dia de nutricionista e de louco todos temos um pouco. Só que não basta comer para se perceber de nutrição. E foi precisamente porque a ciência ainda circula num corredor paralelo à sociedade que decidi dar este contributo em forma de livro e fazer luz sobre algumas das muitas dúvidas que assaltam as pessoas. Por exemplo, a designação de «saudável» passou a estar completamente deturpada, ridicularizada e até descredibilizada.

Superalimentos, “fit” e “healthy” são termos recorrentes que diariamente vamos ouvindo, através de múltiplos meios. É a indústria alimentar a procurar encontrar estratégias para captar novos consumidores ou recuperar os que eventualmente perdeu?

É preciso desmistificar o papel de vilão atribuído à indústria alimentar. Depois vai-se a ver, a culpa das modas e das tretas tem origem no que é caseiro e se foi feito em casa, é melhor. Não necessariamente. E muitos desses conselhos têm origem nas redes sociais. A indústria é um parceiro muito importante no ecossistema alimentar e no ecossistema de saúde, dando resposta à procura, às necessidades e também às tendências emergentes…

No seu livro também fala da moda dos adoçantes não calóricos.  Que alertas gostaria de deixar?

Aquando do debate sobre o aumento da taxação sobre as bebidas açucaradas alertei que ia haver uma fuga para o adoçante, por via dessa compensação que o consumidor precisa de ter e a própria indústria que não estaria interessada em perder consumidores. Os adoçantes não são o que parecem ser e não estão isentos de efeitos nocivos. Veja que só mais recentemente estamos a ver regressar aos supermercados o iogurte natural. Durante muito tempo esteve completamente desaparecido das prateleiras dos supermercados.

Afirmou numa entrevista recente que «as pessoas de 20 e tal anos só comem coisas estranhas». Está a referir-se, em concreto, aos alimentos ultraprocessados?

Uma nota prévia e que ajuda a explicar o que disse: para além de professora, faço algumas consultas em clínicas e tenha filhas jovens. Coisas estranhas? Olhe, comem açaí a toda a hora, manteiga de amendoim, pasta de amêndoa, “wrap”, “tofu”, “seitan”, etc. Não é um pecado, mas o problema é que ao comer isto já não comem outras coisas que deviam e lhes fazem falta. A globalização contribuiu para reduzir ainda mais a visibilidade e o peso da dieta mediterrânica. Comemos tudo, de todo o mundo, menos aquilo que é português. Se se perguntar se comem hortícolas, brócolos, leguminosas, feijão ou grão, é raríssimo os que dizem que sim. Nozes e amêndoas, também não. Os espinafres foram substituídos pelas panquecas de espinafres. O que acabei de lhe descrever é um desvio de comportamento alimentar e deixa sequelas psicológicas porque é uma deturpação da relação com os alimentos. É urgente, por isso, regressarmos a uma lógica de diversificação alimentar. O comportamento alimentar está muito desequilibrado, prevalecendo os extremos sobre a moderação.

As poucas competências e o crescente desinteresse por cozinhar são um argumento que explica estes comportamentos alimentares?

Faltam competências para cozinhar e é mais cómodo comprar já preparado no supermercado. Isto leva a que de geração em geração se perca a apetência e a motivação para cozinhar e preparar os alimentos.  Nalguns países da Europa já é comum não usar pratos e comer-se de dentro da embalagem, para a seguir deitar no lixo.

No seu livro dá o exemplo de um menu vegetariano numa escola que constava de um prato de «croquetes de arroz com batata frita». Este é um caso isolado ou tem conhecimento de mais excentricidades?

Esse exemplo foi o que eu vi no menu de uma escola. Mas é preciso reconhecer que as empresas de “catering” que confecionam as refeições têm muita dificuldade em preparar as leguminosas e, por outro lado, nas escolas públicas é sabido que o financiamento que o Estado destina para estas empresas, por refeição, é de 1 euro ou pouco mais, o que é manifestamente insuficiente. Mas abordando, em concreto, a importância das refeições nas escolas, devo dizer, para começo de conversa, que devem, no mínimo, ser um exemplo, pela importância para as crianças e os jovens, quando se sabe que muitos deles só têm uma refeição em condições por dia. É sabido também que no contexto da cantina escolar a grande barreira é o peixe. O consumo é pouco apelativo e interessante. Resultado: as crianças não se alimentam como deve ser e o desperdício é grande. Diz-nos a experiência que se a refeição servida na escola não for apelativa, sem sabor ou cor, a solução para muitos jovens é ir comprar fora dos muros da escola.

A integração de nutricionistas no sistema escolar deve ser uma prioridade?

A presença de nutricionistas nas escolas tem sido debatida e negociada com a tutela pela própria Ordem dos Nutricionistas. No imediato, é preciso distinguir o seguinte: uma coisa é o nutricionista na escola, outra coisa é o nutricionista que dá consultoria a estas empresas de “catering”. Entendo que falta coordenar e articular uma série de aspetos para que a alimentação na escola seja melhor. Acho que nos devíamos focar nesta questão como prioritária para o harmonioso funcionamento escolar.

Ao nível da literacia alimentar e em saúde ainda estamos a um nível incipiente ou têm vindo a registar-se progressos?

O conhecimento já é muito vasto, mas o pior é mesmo a aplicação prática desses conhecimentos e a alteração de comportamentos desviantes. E não é isso que temos observado, ainda para mais quando o segundo maior fator de risco que potencia as doenças ainda é hábitos alimentares inadequados.

Como é que se regressa às origens, com a dieta mediterrânica a ser quase uma miragem na nossa alimentação?

Michael Pollan, um jornalista norte-americano com muita experiência na área da alimentação, tem uma regra que devia ser seguida: «Nunca coma nada que a sua avó não identifique como alimento». Esta é a senha que nos devia mobilizar a regressar às origens. E o não saber cozinhar não deve ser argumento. Nós na Nova Medical School promovemos “workshops” no nosso laboratório de cozinha para a sociedade e também para crianças e jovens em que eles são desafiados a preparar alimentos. E aqui aprende-se que o “fast food” não tem de ser… “junk food”.

Ou seja, é preciso passar a mensagem que é possível fazer uma refeição rápida sem prejudicar a saúde?

Basta olhar para interior dos carrinhos que circulam no supermercado ao final da tarde: lasanha, “pizza”, frango de churrasco e batata frita. Raramente vejo peixe congelado, espinafres e uma lata de grão-de-bico. E já reparou que ao chegar à cozinha, saltear durante dois ou três minutos esses mesmos espinafres e meter a pescada no micro-ondas, juntando-lhe azeite, tomate e especiarias, rapidamente fica pronto.  Isto são 10/15 minutos.  E, uma vez mais, o fator económico não é argumento.

Foco nas calorias, privação do consumo de hidratos de carbono, pão, leite e glúten, são tendências que têm vindo a ganhar adeptos e seguidores. Também aqui estes comportamentos devem-se a modas?

Em certa medida, sim. Há uma diabolização, nomeadamente do leite e do pão. Até há pouco tempo vivíamos com o foco no colesterol. Agora está tudo muito centrado no glúten, na lactose, etc. A microbiota intestinal é tão importante por ser essencial na monitorização e controlo do equilíbrio metabólico e dos gastos energéticos. Podemos ter este órgão comprometido, com imediata consequência no processo digestivo. É, pois, isso que, de alguma forma, explica esta espécie de mitos muito associados ao desconforto digestivo que possamos experienciar.

Numa altura em que tanto se fala de longevidade, pode a comida dar-nos mais anos de vida e prevenir problemas oncológicos?

Até há muito pouco tempo dizia, sem dificuldade, claro que sim. Agora a resposta a essa pergunta, exige um preâmbulo. Também descrevo no livro a necessidade do jejum ou de uma pausa alimentar noturna. As nossas células geram erros durante o dia e é durante a noite que é preciso fazer uma “limpeza” a esse “lixo” acumulado. O chamado “reset”. Com este comportamento estou a prevenir o cancro, identificando o erro no DNA e reparando-o. Da mesma forma que ingerir refeições de baixo índice glicémico, hortofrutícolas e leguminosas tem um papel antitumoral, anti-inflamatório e antioxidante. Tudo isto são práticas positivas, mas é preciso afirmar com clareza que só isto não basta para prevenir o cancro. Há outros fatores associados que podem interferir, como é o caso dos genéticos, ambientais e um estilo de vida sedentário, por exemplo. 

Para concluir, recuamos mais de 2500 anos no tempo para recuperar uma frase celebrizada por Hipócrates, o pai da Medicina: «Somos o que comemos». A frase continua a ser intemporal?

Nós somos aquilo que comemos, mas também comemos aquilo que somos. No dia a dia deparo-me com situações muito peculiares. Recentemente, numa cantina hospitalar, um profissional perguntou, quando escolhia a sua refeição, se a sopa tinha batata. Como não lhe souberam responder, recusou pedir a dita sopa. «Então quero um filete de pescada com batata frita», disse. Isto é de uma incoerência enervante. Para combater a persistência destes e de outros comportamentos desviantes, temos de dar competências às pessoas para o que é importante. No último inquérito alimentar à população, em 2015/2016, concluiu-se que mais de 80 por cento da população não tem adesão à dieta mediterrânica. Não é por falta de ouvirem falar dela. Podem é não saber no que é que é consiste ou quais são os seus pilares. Ou se sabem, não os praticam.

Para dar competências às pessoas o ideal seria o ensino de comportamentos alimentares desde os bancos das escolas?

Inserir as questões da alimentação e nutrição na área da Cidadania seria uma enorme oportunidade. Infelizmente, prefere-se discutir questões de sexo e género durante três ou quatro anos, senão mais. Tenho filhas na escola pública e entre o 5.º e o 9.º ano, os conteúdos eram (exageradamente) esses.  Não estou com isto a retirar importância a estas temáticas, mas não podem ser, na dimensão da Cidadania, a única coisa que interessa. O autocuidado em saúde devia ocupar um papel central nas escolas.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Foco na investigação da microbiota intestinal

 

Conceição Calhau é professora catedrática na NOVA Medical School, regente de Bioquímica Nutricional do curso de Medicina, fundadora da licenciatura em Ciências da Nutrição nesta escola médica e fundadora do mestrado em Nutrição Humana e Metabolismo. Durante 23 anos foi investigadora e professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, onde se doutorou em Biologia Humana em 2002, e se agregou em Metabolismo, em 2010. A sua área de investigação incide maioritariamente na microbiota intestinal, nos efeitos dos alteradores endócrinos na disfunção metabólica e nos compostos bioativos presentes na alimentação, em particular os ácidos gordos ómega-3, a vitamina D e o iodo. A par da atividade académica e científica, cofundou a YourBiome, uma “spin-off” da Universidade NOVA de Lisboa, dedicada à pesquisa e desenvolvimento de novas terapias com base na microbiota intestinal para tratamento das doenças metabólicas. Aos 50 anos editou o seu primeiro livro: “Deixemo-nos de tretas – a ilusão da comida saudável”, com a chancela da Contraponto.

Nuno Dias da Silva
Neusa Ayres | Direitos Reservados
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