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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

António Carlos Cortez, professor e poeta 'As elites desprezam os artistas'

22-07-2024

Nunca abrindo mão da sua tripla condição de docente, poeta e crítico literário, António Carlos Cortez traça um cenário sombrio sobre o estado da nação. Uma conversa transversal em que se fala dos agentes educativos, das elites governantes e até do «fascínio provinciano pela tecnologia», nunca perdendo de vista algumas das referências maiores da literatura nacional. Evocando Eça de Queiroz afirma que o único desígnio do país continua a ser «pagar impostos e pedir o empréstimo.»

Celebra 25 anos de poesia e não abdica em sublinhar a sua tripla e simultânea condição de docente, poeta e crítico literário. Num país que se diz de poetas esta forma de expressão de arte não é, de algum modo, subvalorizada?

Faço questão de sublinhar isso pelo simples facto de, sobretudo ao nível do ensino liceal, ter havido uma tradição e uma certa linhagem de grandes autores, que foram também professores nesse grau de ensino e pensavam o ensino a partir da perspetiva do criador literário. E hoje isso é um pouco mais raro. Acredito mesmo que escrever e pensar sobre literatura pode enriquecer e ajudar a compreender um pouco melhor o que significa ser professor de língua, de cultura, de literatura, no ano de 2024.  Basta recuar no tempo para nos lembrarmos de professores que foram também escritores: Mário Dionísio, Gastão Cruz, Nuno Júdice, David Mourão-Ferreira, só para citar alguns. Um professor com um pé nas artes e outro pé no ensino é, certamente, alguém que pode contribuir de outra maneira nas suas aulas para um melhor e mais completo conhecimento dos alunos. Infelizmente, hoje os professores proletarizaram-se e são meros funcionários. Atualmente, a profissão de professor convida ao abastardamento da sensibilidade, à burocratização e à robotização das aulas.

Rejeita essa realidade?

Sempre o fiz. Sou professor há 23 anos e não posso estar de outra maneira numa profissão que amo.

Afirma que há uma «menorização» dos clássicos da literatura portuguesa. A propósito dos 500 anos do nascimento de Camões, este ano comemorados, o autor de «Os Lusíadas» é o expoente máximo dessa «menorização»?

Sim. O modo como o ensino e os programas são pensados é extremamente deficiente. Diria mesmo, algo provinciano. Em alguns manuais escolares, que são no fundo o espelho daqueles que pensam a orgânica disto tudo, Camões é tratado da seguinte forma: escolhem-se alguns poemas da lírica, quase sempre os mesmos sonetos, ou algumas redondilhas, mas não há a preocupação de pensar Camões em articulação com poetas contemporâneos. E isso seria uma porta de entrada muito interessante para este autor.  Atualmente, os manuais escolares têm etiquetas muito curiosas: convidam-se autores de banda desenhada para fazer comentários a obras literárias. Estou-me a lembrar do caso de «Os Maias», em que quem faz o comentário geral com uma frase para motivar os alunos é um ilustrador que diz algo do género: «este é um romance sobre dois irmãos que vão para a cama juntos». Ou seja, procura-se passar a mensagem de que o livro não é uma seca. É uma abordagem extremamente pueril.

Só para contextualizar, os «irmãos» são Carlos e Maria Eduarda, personagens criadas por Eça de Queiroz. Mas voltando ao que disse: o importante hoje em dia é passar mensagens simples e transmitir a noção que o complexo afinal pode ser simples?

Sim, mas isso normalmente dá mau resultado. Quando as aulas de literatura/português são exigentes e os alunos são desafiados a fazer a análise e comentário de texto (seja ele narrativo, poético ou dramático) a experiência que tenho de 23 anos de ensino é de que eles gostam, verdadeiramente. O texto concentra a atenção tanto de quem ensina e de quem aprende. Sempre fiz aulas muito clássicas, e consideradas, por isso, «fora da caixa», para usar uma expressão muito em voga, mas um bocado parva – E tudo porque o clássico hoje é impopular, tudo tem de ser “show off” na educação. E eu não partilho disso.

A evocação do nascimento de Camões foi algo tímida, passando à margem da opinião pública. O poeta que dá o nome ao Dia de Portugal não merecia mais atenção?

Gosto do eufemismo que emprega: «tímida». Por detrás da timidez, temos, porventura, questões burocráticas, que envolvem a criação de uma comissão para assinalar a data. Não estamos a par dos bastidores que levaram a que não houvesse a celebração que se impunha. Mas este comportamento esconde algo congénito à elite governativa portuguesa. Era precisamente Camões quem, no século XVI, se queixava das elites e dos poderosos. Basta ler as estrofes 78 a 87 do canto VII de «Os Lusíadas», em que ele diz: «Quem é que não vai cantar.» E esses a quem ele se referia no seu tempo, são os mesmos que estão hoje no poder: os ambiciosos, os hipócritas, os cínicos, os corruptos, os bajuladores. Estes traidores mais não são do que os vampiros deste país. Representam as elites do século XVI, da mesma forma que nos representam também hoje, no século XXI. Tudo isto é inquietantemente atual. Em qualquer país do mundo existiriam celebrações condignas com o intuito de dar a conhecer a obra de um poeta da envergadura de Camões. Mas a ignorância acaba por prevalecer, até porque Portugal é um país que verdadeiramente não lê Camões. E o mais curioso é que celebramos a 10 de junho o dia em que o poeta que nos celebrou, faleceu. Isto deve ter uma qualquer explicação freudiana…

Ou seja, motivos de sobra para que se tivesse ido mais além na evocação de um poeta maior…

Lamento que não tenha havido o cuidado, da parte do Governo, em articulação com as universidades, em promover uma celebração digna desse nome para um poeta que, segundo Schlegel, «valia toda uma literatura.» Na verdade, as elites nunca gostaram da cultura e desprezam os artistas. Contudo, diga-se, as iniciativas privadas têm tido grande mérito e alcance. É o caso dos cursos e dos livros recentemente publicados: Carlos Maria Bobone e a sua “Biografia de Camões” e o livro de ensaios “Camões e outros contemporâneos”, de Hélder Macedo.

Uma população com horizontes culturais mais amplos seria, consequentemente, mais reivindicativa e exigente para com as elites, nomeadamente as que nos governam?

Sem dúvida. As nossas elites políticas são fruto de uma espécie de regime de castas. As classes endinheiradas têm de proteger os privilégios de classe e uma das formas de o fazer é gradualmente empobrecer os seus governados, quer do ponto vista cultural e das referências históricas, quer quanto a uma certa visão crítica do mundo. A tradição portuguesa não é a tradição francesa, que desde sempre foi a de sair à rua para reivindicar direitos e defender a República. A vitalidade da sociedade francesa é um modelo de cidadania ao nível europeu. Dou-lhe o exemplo de um eurodeputado. É um cargo com responsabilidades, mas muito bem remunerado. É uma espécie de prémio de carreira, no seguimento de percursos unipessoais. Como é que isso se compaginaria com um povo mais culto, mais crítico e mais lido? Se Portugal fosse um país diferente, existiria a forte probabilidade de haver no nosso país gente do povo a fazer frente a essa oligarquia de poder. Por isso, é que considero que as reformas educativas têm sido sempre para empobrecer e para estar “up to date” com as supostas diretrizes progressistas das instituições internacionais. Já estamos e vamos continuar a pagar um preço caro por isto.

Entramos na parte do ensino, que conhece bem e, de forma regular, tem manifestado o seu descontentamento com o rumo que tem sido seguido. De uma forma geral, o que é que tem sido mal feito?

O ensino está de rastos. Os nossos adolescentes e jovens adultos, licenciados, mesmo com mestrados e até com doutoramentos, são, na maioria dos casos, gente muito ignorante. São eleitores ignorantes e confirmam o que, a meu ver, é um projeto de poder. Os governantes, no fundo as oligarquias e as elites, os carreiristas dos partidos, se quiser, sabem perfeitamente que só manterão os seus privilégios de classe se tudo for uma mesma massa acéfala que paga impostos e pede empréstimos a bancos.

«A geração mais bem preparada de sempre» é apenas uma frase bonita para consumo interno?

Essa é uma frase para consumo político, propaganda e mentira. Se falar com professores, seja de que grau de ensino for, todos lhe vão dizer que a atual geração está mal preparada, não sabe escrever, não lê e não dispõe de referências histórico-culturais. Depois da pandemia, os jovens estão muito mais fragilizados.

Foi precisamente na pandemia que se acumularam atrasos nas aprendizagens e abriu-se uma enorme avenida para o digital. Quais são os efeitos disruptivos que identifica no sistema de ensino?

A pandemia foi uma oportunidade para se experimentar aquilo que a breve trecho será o mercado de trabalho em que as pessoas são, no fundo, empresárias de si próprias. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han escreveu um livro intitulado «No enxame – Reflexões sobre o digital», em que prova que a digitalização é uma nova forma de dominação dos povos, absolutamente esmagados por uma ideologia tentacular em que todos funcionamos em rede. No caso da educação a pandemia acelerou uma formatação ou padronização dos métodos de ensino e do pensamento docente que está hoje transformado numa espécie de pensamento-gestor. Transformar tudo em gestão traduz-se no empobrecimento geral do espírito crítico. Não há História, não há Filosofia, não há Artes. Tudo é pensado para efeito de sucesso contabilístico, estatístico e “rankings”. E a escola é a consequência disto, transformada em fábrica do tudo igual, com exames cada vez mais fáceis, para que o país apresente resultados positivos internacionalmente.

Qual é principal crítica que faz à publicação dos “rankings”?

A ideologia do “ranking” tem vindo a prevalecer, mas trata-se uma estupidez monumental que transforma a arte de ensinar e o gosto de aprender em rolo compressor. Professores e alunos ficam em pânico e condicionados com os exames, para além de que seja nas ideias ou nas ações, seja no gosto ou nos valores não há hoje uma verdadeira diferença entre professores e alunos.

«A Fábrica de Cretinos Digitais» e «Ponham-nos a ler», são dois livros do aclamado escritor e neurocientista francês Michel Desmurget, com alertas sobre os perigos que a exposição excessiva aos ecrãs representa para o desenvolvimento das crianças. É possível inverter esta trajetória?
O diagnóstico está feito há muito. Mas acho difícil inverter a realidade, na prática. Qualquer pai ou qualquer mãe admitirá que os seus filhos passam tempo demasiado diante dos ecrãs. Contudo, há países que estão a fazer progressos nesta batalha. A Suécia, o Canadá e até mesmo os Estados Unidos já perceberam que as suas democracias estavam e estão muito ameaçadas por este processo de imposição digital.  Mas há uma coisa de que não tenho dúvidas: Os grandes grupos económicos vão sempre aproveitar o potencial padronizador do digital para continuar a dominar o mercado de trabalho.

O paradigma dos «doutores e engenheiros» continua muito presente no sistema de ensino. Em que medida é que esta lógica, em que o ensino técnico-profissional continua a ser uma miragem, acaba por prejudicar o próprio mercado de trabalho?

Portugal é um país frágil, economicamente pobre, e com um povo pouco lido. Os últimos 25/30 anos foram, no nosso país, um desastre do ponto de vista educativo, cultural e político. A prova disso está bem à vista: basta olhar para a classe política que nos governa. A Assembleia da República é o espelho da nação ao nível do português que se fala, das ideias e dos valores que se defendem. Muitos dos deputados com assento parlamentar não têm experiência de trabalho. A classe política é extremamente inculta, oportunista e vampiresca. Os partidos estão reféns dos aparelhos e das juventudes partidárias. Como subir na vida em Portugal? Copiando muito nas universidades, pertencendo às «jotas» e sendo amigo deste ou daquele. Como dizia o Eça de Queiroz, em «Os Maias», «a civilização fica-nos curta nas mangas»…

O retrato que faz é, no mínimo, demolidor…
Portugal é hoje um mero país de serviços. Não temos indústria, e de pouca pesca e agricultura dispomos. A Europa do sul é hoje apenas um lugar com sol e para turismo, e servimos a Europa do norte com muita gente competente, mas auferindo ordenados baixos. Era – mais uma vez –  Eça de Queiroz quem dizia que «em Portugal nada muda, só a moda».  E nas profissões isso aplica-se como uma luva. Já tivemos a moda dos engenheiros, dos arquitetos, dos médicos, agora são os engenheiros informáticos. O fascínio por tudo o que é técnica e tecnologia é revelador de um certo provincianismo. Hoje estamos a formar não sei bem para quê. Já pensámos que país queremos ter em 2050? Simplesmente não se sabe. Como professor, a impressão que tenho é de que só importa os alunos concluírem a escolaridade obrigatória e irem fazer um curso superior, seja ele qual for. E há um aspeto económico que não pode ser negligenciado: para pagar aos professores do ensino superior é preciso que entrem estudantes no sistema para pagarem propinas e alimentarem o financiamento das próprias universidades.

Defendeu recentemente uma reunião com todos os agentes educativos, que tivesse como convidado especial o ministro das Finanças, para debater o futuro da educação. Falta eleger este setor como um desígnio nacional?

O único desígnio nacional continua a ser o definido por Eça de Queiroz: pagar o imposto, fazer o empréstimo. Nada mudou em Portugal. A última palavra de «Os Lusíadas» é «inveja». Nós invejamos a Europa do norte e, como tal, governa-se em Lisboa pensando que se está em Versailles e as oligarquias do poder olham para o povo apenas como contribuintes e pagadores de impostos. Já para não falar do futebol que parece ser o único mito e a única utopia, uma verdadeira alienação, pornograficamente industrializada.  O «Fado, Futebol e Fátima» – os «três F’s» do Estado Novo – continuam inalteráveis. A única diferença relativamente a esse período da nossa História é que eu posso dar esta entrevista sem ser censurado pelo «lápis azul». Não se pode ignorar o muito que o 25 de abril nos deu, pois há índices na saúde, na educação, na habitação e na justiça que provam que o país avançou… mas também há sinais de regressão, na atualidade.

Falemos mais em profundidade sobre os professores. A crise de vocações na Igreja está a estender-se, nos últimos anos, à classe docente?

A palavra vocação significa chamamento interior. Se lermos Mário Dionísio em "O Quê? Professor?!”, já nos anos 40/50, ele constatava que a maioria dos professores não tinha qualquer vocação. Mas isto é como em tudo: há os sem vocação que persistem e até se acabam por formar tecnicamente e ter um trabalho digno, e depois há uma grande massa que não sabe o que é dar aulas, como dar aulas, como motivar com cultura, com memória e com saber didático os jovens que têm à sua frente. Mas em bom rigor não será culpa deles. Portugal é um país onde não há igualdade de oportunidades, as pessoas têm de se fazer à vida e nem questionam ou refletem se têm ou não vocação para a função que desempenham. Na docência, como noutras profissões, temos muita gente a exercer a profissão apenas com o objetivo imediato, sem compromisso e sem paixão, de ganhar dinheiro e pagar contas. Ainda assim gostaria de deixar um apelo aos colegas professores: resistam, tanto quanto possível, à burocracia e à instrumentalização desta nobre profissão.

É o próprio presidente do Conselho Nacional de Educação que admite lacunas em matéria de formação pedagógica dos professores. Quais são os reflexos no ensino?

A pedagogia tem de estar assente no conhecimento de uma bibliografia teórica forte e numa prática contínua em que o docente é detentor de um saber, possui dotes de comunicação e, como tal, é um “construtor” dos adolescentes em matéria de conhecimentos técnicos e teóricos. O problema é que, ao longo dos anos, foram muitos os erros acumulados. Acabou-se com a figura do metodólogo, que existia antes de 1974. Acabou-se com os estágios remunerados em ensino. Nas universidades, na formação de professores, impera uma visão instrumental e o docente é visto como um “entertainer” ou um gestor de relações humanas. A gamificação do ensino é outro dos sintomas de enorme degradação de uma ideia de educação. A educação devia servir para nos autoconhecermos. E para colocarmos grandes questões existenciais e procurarmos ser felizes neste mundo. No fundo, ensinar a pensar e a refletir, algo que não se faz nos dias de hoje. A educação é (ou devia ser) isto.

O braço de ferro entre professores e tutela arrasta-se há vários anos. A imagem e a autoridade dos docentes, dentro e fora do sistema, foi minada?

Sim. E há a questão da indisciplina. As escolas estão transformadas em lugares onde os adolescentes têm atitudes de má educação e má formação. Conheço bem a realidade brasileira e temo que nos estejamos a aproximar do que se passa nas escolas daquele país. Mas voltando à sua pergunta, considero que tivemos ministros da educação que foram inimigos dos professores. Para começar, o pensamento-gestor e de funcionalismo público que conheceu o seu auge no “consulado” da ministra Maria de Lurdes Rodrigues. É esta ministra que deve ser responsabilizada pela proletarização da profissão docente e pela saída de milhares de professores (competentes e bem preparados) que vinham de gerações anteriores. Foi algo imperdoável, com reflexos no ensino secundário e também no ensino superior. Os ministros que lhe sucederam acompanharam essa política de proletarização da profissão docente.  A perda de autoridade dos professores deriva do esmagamento por um aparelho burocrático e tecnocrático alienante, com ordenados miseráveis, com concursos profundamente injustos, etc. Foi criminoso.

Responsabiliza todos os ministros da educação pelo estado atual do sistema?

Podemos agradecer o facto de não existir uma ideia de educação em Portugal, em maior ou menor grau, aos sucessivos ministros que temos tido nas últimas décadas. Deixo apenas uma nota para os ex-ministros Marçal Grilo e Nuno Crato, que terão sido os únicos que tiveram uma ideia mais articulada e pensada sobre o que devia ser o ensino. É preciso que se recorde que ambos defenderam a exigência das avaliações dos professores, mas, em simultâneo, com um certo reconhecimento desta classe. Um país com uma classe de professores sem ordenados dignos e pouco reconhecida poderá ver a sua democracia ruir.

E perante o cenário que acaba de traçar, o que se pode esperar da resposta da escola pública?

Não é só a escola pública que está em risco, o país também está em risco. Aliás, a escola pública é um belíssimo e fiel espelho de Portugal. E o que acontece é que novos e desafiantes problemas vão surgindo. Agora há a mistificação de políticas inclusivas na educação para os alunos migrantes. Mas como é que eles vão aprender a nossa língua se não têm noções de cultura, nem condições efetivas para conhecer a língua?

Perante tamanhas desigualdades socioeconómicas e linguísticas, o professor acaba manietado e fica impotente para ensinar com qualidade. Infantiliza de um lado, facilita do outro.

Tem alguma sugestão para lidar com esta imensa “torre de Babel” nas escolas portuguesas?

Seria importante constituir equipas, por exemplo, em seis áreas geográficas do país, procedendo-se ao enquadramento socioeconómico das regiões, procederem a um levantamento das nacionalidades em causa e consequentemente formar os professores, com enfoque na proficiência em cultura portuguesa e cultura europeia; professores que conhecessem alguma coisa da cultura dos países de origem das diversas nacionalidades dos seus alunos. É impossível um professor compreender um aluno que veio do Senegal se desconhecer por completo a sua cultura de origem. Se ninguém se entende nessa “torre de Babel”, então não há educação.

A língua portuguesa e o mar são dois ativos intangíveis que, vários especialistas, garantem podiam projetar o país em várias dimensões. São dois tesouros desaproveitados sob o ponto de vista estratégico e de afirmação nacional?

Os políticos gostam muito de grandes slogans. «Temos de nos virar para o mar», é um deles. Não sou especialista nesse domínio, mas parece-me óbvio que não estamos a aproveitar todas as potencialidades, até porque possuímos uma enorme Zona Económica Exclusiva desaproveitada. Já em termos de política de língua, entendo que devíamos divulgar a sério a cultura portuguesa no exterior – com a edição de clássicos e de modernos.  Continuo cético relativamente a grandes progressos, visto que continuamos dependentes do ponto de vista económico de diretrizes estrangeiras. Mais simbólico, mas que diz muito de como tratamos a nossa língua e os nossos autores, foi a reação do país, quase de indiferença, à morte, há poucos dias, do grande cantor e poeta, Fausto Bordalo Dias. Elucidativo. E nem quero falar do absurdo e criminoso Acordo Ortográfico...

Estamos a terminar, mas gostaria de lhe fazer uma pergunta final. O tom desta entrevista, de uma forma geral, foi pouco ou nada otimista. Apesar de tudo, acredita que possamos, tarde ou cedo, vir a ser um país com futuro?

O Alexandre O'Neill falou da nossa «tristeza contentinha.» Portugal é, ao mesmo tempo, dos países que paga mais impostos e cujo ordenado mínimo não chega aos quatro dígitos. É revoltante e exigia que todas as classes profissionais no país parassem durante um mês. Não quero ser visto como um “Velho do Restelo”, mas apetece-me parafrasear Fernando Pessoa, em «Mensagem»: «Nem rei, nem lei, nem paz nem guerra, define com perfil e ser, este fulgor baço da terra, que é Portugal a entristecer». Nós, infelizmente, estamos assim.

 

Cara da Notícia

Literatura, poesia e ensino

Deu aulas no ensino público e privado, no ensino secundário e na universidade, escreve livros e, sobretudo, é um eterno preocupado pelas questões relacionadas com o universo do ensino e da educação. Nascido em Lisboa, em 1976, António Carlos Cortez, ensaísta e ficcionista, publicou desde 1999 cerca de 15 livros de poesia, dois livros de ensaio, um de crónicas. O último que publicou chama-se «Cenas Portuguesas», editado pela Caminho, partilhando dez contos «onde se passeiam figuras de um país à esquina do planeta.» É colaborador permanente no “Jornal de Letras” onde assina desde 2004 a coluna de crítica literária «Palavra de Poesia». Tem também uma coluna semanal no “Diário de Notícias”, sobre cultura e literatura, intitulada «Direto à Leitura». Foi galardoado com diversos prémios, sendo de destacar os atribuídos pela Associação Portuguesa de Escritores e a FENPROF. É licenciado em Línguas e Literaturas Modernas/Variante Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e pós-graduado em Ciências da Educação, com profissionalização em exercício e estágio pedagógico.

Nuno Dias da Silva
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