As pinturas rupestres do Vale do Tejo constituem um mundo novo, não só pela quantidade das gravuras, mas pela qualidade de algumas delas e pela sua extensão. Na sua maioria submersas pelas águas do Tejo, fruto da construção da Barragem do Fratel, são no entender de Martinho Batista, antigo diretor do Centro Nacional de Arte Rupestre e pioneiro no estudo daquelas gravuras, em 1971, o “complexo mais rico de arte rupestre que existe no território português”.
Aquele responsável que há mais de 50 anos, enquanto estudante, fez com colegas da faculdade o levantamento das pinturas existentes, antes da Barragem do Fratel, recorda a importância desse estudo. “Eu costumo dizer que o grande livro de pedra da nossa arte pré-histórica começa no Côa, passa para o Tejo e volta novamente ao Côa”, diz.
O Complexo de Arte Rupestre do Vale do Tejo é um dos mais importantes conjuntos de arte pós-paleolítico da Europa, constituído por mais de 20 mil gravuras dispersas ao longo de 40 quilómetros de ambas as margens do rio Tejo. Martinho Batista explica a sua importância e conta a estória da sua expedição de uma história com dois mil anos e que o Centro de Interpretação de Arte Rupestre do Vale do Tejo procura preservar. Ali ainda há dois locais que podem ser visitados.
Em 1971 era aluno da Universidade de Lisboa. Como é que teve origem a vossa expedição?
Éramos todos alunos do primeiro e segundo ano do curso de História da Faculdade. Na altura nem havia sequer cursos de arqueologia em Portugal. Isso só aconteceu depois do 25 de Abril de 1974. Eu e os meus colegas que ali fizemos o trabalho de campo, podemos dizer que aqueles foram os anos de brasa no estudo da arte do Tejo. Depois de nos apercebermos do tamanho do complexo rupestre, tivemos que pedir ajuda. Era importante termos uma pessoa já consagrada na arqueologia portuguesa, e é aí que aparece o doutor Eduardo da Cunha Serrão, que se responsabilizou pelos trabalhos, uma vez que nós éramos todos alunos, nenhum de nós tinha curso de arqueologia. Éramos apenas uns entusiastas.
E quando perceberam o que tinham em mãos, como é que olharam para essa descoberta? O que sentiram?
Sentimos que tínhamos uma obrigação moral, uma vez que as gravuras iam ficar praticamente todas debaixo da barragem. Poucas coisas ficariam de fora. Daí termos feito aquele esforço medonho até 1974, no sentido de salvaguardar da melhor maneira possível esse património. Isso obrigou-nos a estudar métodos de levantamento de arte e a inventar um processo de levantamento arqueológico que passou pela moldagem em látex das gravuras e por um trabalho fotográfico exaustivo. Foram aspetos que nos obrigaram a tornar-mo-nos especialistas da arte rupestre pela força das circunstâncias. Tínhamos, de facto, em mãos um património importante e não havia em Portugal ninguém preparado para fazer um trabalho como esse.
Esse trabalho consistiu em fazer o levantamento. Houve algum tipo de reprodução para as imagens puderem ser expostas noutro local?
Sim. Foi por isso que fizemos os levantamentos das rochas gravadas com o método de látex - uma borracha líquida que permitia fazer negativos das próprias gravuras, uma vez que as rochas em xisto até facilitavam a elaboração desses moldes. Na altura foi o que achámos mais fiável, mais prático e até relativamente barato. Hoje a arte rupestre é estudada de uma forma mais sofisticada, recorrendo-se à computação e a todos os sistemas modernos de levantamento. O sistema da réplicas das gravuras que fizemos, resultaram em cerca 1600 moldagens que estiveram guardadas no Museu Nacional de Arqueologia, encontrando-se agora no Museu de Foz Côa e no futuro deverão passar para o Centro de Ródão.
A maioria das gravuras está submersa, mas já há alguma parte que possa ser visitada?
Há dois setores que podem ainda ser visitados. Há um sítio a que chamamos de Gardete, que fica a jusante da barragem na confluência com a foz do rio Ocreza, na margem direita do Tejo, no concelho de Vila Velha de Ródão. São cerca de 30 rochas que podem ser visitadas. Há uma outra parte que pode ser visitável, de vez em quando, e que fica mais a montante, perto da barragem de Cedillo. Falamos das rochas do sítio de São Simão, que é a maior estação de gravuras do Tejo e que ficou parcialmente submersa com o rio. Calculo que estas gravuras não serão mais que 10% do Complexo Rupestre do Tejo. Todo o restante, nomeadamente o grande sítio de Fratel e todas as estações, como as do Cachão do Algarve, que era um sítio notável e espetacular, infelizmente ficaram afundadas.
Houve algum período em que as águas do Tejo descessem consideravelmente e que fosse possível fazer uma análise de como é que essas gravuras estavam conservadas?
Sim, mas foi logo a seguir ao enchimento da barragem, em 1978. Houve necessidade de fazer trabalhos ainda na barragem e o rio baixou bastante , o que permitiu estarmos no sítio do Cachão do Algarve, em que as rochas têm uma plantação sobreposta
A única forma de preservar toda esta arte é através dos centros de interpretação como Museu de Foz Côa ou o Centro Interpretativo de Ródão?
Exato. O Museu de Foz Côa fez-se, embora a barragem não tenha sido construída, o que permite visitas aos sítios. Já no Vale do Tejo isso não é possível, a não ser nos locais atrás identificados. É preciso que as pessoas se lembrem que a arte do Tejo é descoberta ainda no Antigo Regime. Portanto, quando havia censura e em que não podíamos publicar certas coisas nos jornais. Tudo isto se manteve quase em segredo até ao 25 de Abril. Daí que ninguém contestasse a construção da barragem de Fratel. Na altura isso estava fora de causa. Em Foz Côa foi diferente. A democracia permite que as pessoas se manifestassem. E foi rapidamente reconhecida a importância desses sítios. O Governo optou, e muito bem, por preservar a arte rupestre fora da água. Daí que em Ródão, esse Centro possa explicar às pessoas e mostrar a arte rupestre no Tejo.
Este Centro de Interpretação de Ródão é também um instrumento que pode ser utilizado pelas próprias escolas, não só da região, mas de todo o país, para tentarem perceber aquilo que é a importância das pinturas rupestres?
Pode. Nos últimos anos, desde desde que se salvaram as gravuras do Côa, foram feitas inúmeras teses de doutoramento e mestrado sobre arte rupestre, coisa que nunca tinha acontecido em Portugal. As escolas, os museus são importantes porque, de facto, fazem com que as pessoas, logo desde os primeiros anos de ensino, tenham consciência do fenómeno rupestre, que no fundo, é a arte mais antiga da humanidade. É aquela que se preservou melhor porque é feita sobre pedra e, portanto, tem mais facilidades de conservação do que a restante. E nesses casos, museus como o de Foz Côa ou centros de interpretação como o do Ródão, são fundamentais.
Quando fizeram essas essa prospeção, como é que era o vosso dia a dia?
Foi todo um trabalho voluntarista. De facto, só quando nós somos novos estudantes e temos ainda sangue na guelra suficiente para fazer um trabalho como o que aí concretizámos. É essa história que eu conto no livro que será publicado brevemente pela Câmara de Vila Velha de Ródão. Nós vínhamos de Lisboa de comboio e ficávamos na Pensão Castelo, que era a única que aí existia. Era aí a nossa base de trabalho. Depois ou íamos para o campo a pé - percorríamos quilómetros com o material às costas - ou alugávamos um macho que levava um gerador, pois chegámos a fazer trabalhos à noite. Foi um trabalho voluntarista, feito com muito carinho e muito amor. E sem isso nada se faz. É tudo isto que eu conto neste meu livro, a que eu chamei As Memórias arqueológicas do Vale do Tejo.
O grupo que fez a exploração em Ródão era composta por quantas pessoas?
Permanentemente em campo estavam entre 12 a 15 estudantes que vinham de Lisboa e tínhamos o apoio do Francisco Henriques e de João Caninas que começaram a olhar para a arqueologia em função do trabalho que nós aí fizemos.
E as entidades locais da altura apoiavam-vos? Quem suportava os custos?
Sempre tivemos apoio da Câmara de Vila Velha de Ródão, na altura muito mitigado e pontual. Quem financiou a maior parte dos trabalhos no Tejo foi a Fundação Calouste Gulbenkian. De facto, foi uma espécie de Ministério da Cultura que aceitou, desde o início, financiar parte da investigação. É claro que os subsídios eram curtos, mas permitiam-nos estar aí, pagar as viagens, a estadia e a compra de alguns materiais, nomeadamente o látex, para fazermos as réplicas das gravuras. Também tivemos um financiamento menor do próprio Estado, através na altura do Fundo de Fomento Cultural do Ministério da Educação.
Como é que o Estado, desde esse tempo para cá, olhou para a arte rupestre?
O Estado nos anos 70, nos tempos dos trabalho no Tejo não teve qualquer intervenção. A barragem foi feita, a arte rupestre foi afundada e durante anos ninguém mais pensou nisso, a não ser nós que tínhamos lá andado. No caso de Foz Côa foi completamente diferente. Não só a arte de Foz Côa, por ser paleolítica, é a grande arte da pré história - e quando se fala em arte paleolítica, parece que estamos a falar nos Picassos daquele tempo -, mas também a sociedade civil teve muito mais força do que o que aconteceu nos anos 70.
Comparando com o panorama internacional. Portugal como é que se encontra?
Portugal foi muito acarinhado, nomeadamente pelos nossos colegas do mundo todo, de uma maneira geral, até, inclusivamente por organismos como a UNESCO, pelo facto de ter salvo as gravuras de Foz Côa. E de facto, brilhámos. Dizia-se mesmo que nunca tinha acontecido no mundo, uma grande obra pública, já em construção, que custava milhões de euros, ter sido travada para salvar os sítios rupestres.
Se tivesse que explicar a uma criança do primeiro ciclo o que é a arte rupestre, como é que o professor a definiria?
Uma criança do primeiro ciclo, se calhar, até entende rapidamente a importância do fenómeno artístico, porque ele está imanente à espécie humana. Desde que o homem e a mulher existem que o simbólico faz parte do nosso mundo espiritual. E a arte rupestre é a transposição para símbolos que podem ser geométricos, abstratos, naturalistas, ou mais evidentes de descodificar. A arte rupestre é o que restou do pensamento simbólico dos nossos antepassados pré históricos.
CARA DA NOTÍCIA
O pioneiro da arte rupestre no Tejo
Arqueólogo e pré-historiador de arte, especializado em arte rupestre participou na exploração da arte rupestre do Rio Tejo, no início da década de 70. Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1970-1975). Bolseiro do Instituto Arqueológico Alemão na antiga República Federal da Alemanha. Arqueólogo do Parque Nacional da Peneda-Gerês (1979-1997). Director do Centro Nacional de Arte Rupestre (1997-2007). Co-orientou a criação do Museu do Côa (inaugurado em 2010), que dirigiu até 2017, tendo sido também director do Parque Arqueológico do Vale do Côa. Foi professor convidado de arte pré e proto-histórica da Universidade do Minho.
Esteve ligado ao estudo dos principais complexos de arte pré e proto-histórica em território português (Vale do Tejo, Vale do Côa e Vale do Guadiana) sobre os quais publicou algumas das suas principais obras de referência.