Uma Europa cada vez mais dividida e a tomada de posse de Donald Trump são alguns dos principais desafios que se colocam ao novo presidente do Conselho Europeu. Bernardo Ivo Cruz, professor universitário de Ciência Política, antecipa um ano de 2025 «muito complicado» e analisa os riscos que se perfilam com a crescente presença da inteligência artificial.
O poeta escocês Damian Barr escreveu, em 2020, em plena pandemia, o seguinte: «Nós não estamos todos no mesmo barco, mas estamos todos na mesma tempestade. Alguns estão em super-iates. Outros têm apenas um remo». Esta é uma descrição fidedigna do atual ar dos tempos?
É uma descrição certeira, que se aplica a todos os tempos e a muitas situações. Na verdade, estamos em barcos diferentes, mas a crise é a mesma e toca-nos a todos. Nasci em 1968, numa família estruturada, e, diga-se em abono da verdade, o único problema sério com que me tive de confrontar foi o aparecimento da SIDA, no início da década de 80. Atualmente, os meus alunos, têm entre 19 e 21 anos e já nasceram todos neste século. São de uma geração sacrificadíssima.
Os acontecimentos com impacto têm sido sucessivos…
O século XXI tem tido muitos desafios. A queda das Torres Gémeas, o fim do multilateralismo, a crise financeira, o primeiro mandato de Trump na Casa Branca, o “brexit”, a pandemia, as alterações climáticas, a inteligência artificial e, mais recentemente, a Rússia – um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU – invade a vizinha Ucrânia. Há dois anos, o ex-primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, chamou a estes últimos 20 anos como sendo «o século da crise permanente». Quando achamos que estamos a sair de uma crise, lá vem outra no horizonte. Perante este contexto, resta desenhar e implementar políticas públicas por forma a criar condições para que os que estão no barco e também para os que estão nas ondas consigam lidar e gerir as crises da melhor forma.
O impacto das migrações e dos populismos está a transformar as sociedades modernas do ponto de vista económico e social?
Sim, temos mais esses desafios que mencionou. Qualquer economista lhe dirá que a Europa precisa de pessoas. Logo, precisa de imigrantes. Durante muitos anos tivemos na União Europeia (UE) o que ficou conhecido por «cidadania cívica» - ou seja, desde que cumprissem as regras e as leis as pessoas eram bem vindas. Nada mais nos preocupava até cerca de 2016 quando Trump foi eleito para a Casa Branca, o “brexit” saiu vencedor no referendo e Marine Le Pen ascendeu à liderança da Frente Nacional. Por outro lado, quando nada fazia prever, países como a Suécia e a Finlândia passaram a ter de lidar com movimentos populistas. Para além do fator identidade, emergiram as componentes culturais, religiosas, sem esquecer as ameaças terroristas. Perante este enquadramento, já não é possível esconder: temos um problema com a circulação de pessoas no espaço europeu. Isto sobre as migrações. Já sobre os populismos, temos visto que proliferam uns seres bem-falantes que apresentam soluções simplistas para problemas complicados. Uma pessoa destas, das duas uma: ou não sabe do que fala, ou está a mentir. O “brexit” é um bom exemplo disso. Estou preocupado pelo seguinte: não vejo os partidos moderados, nomeadamente na Europa, sentados à volta da mesa e a conversarem, abertamente, sobre estes temas graves e sérios, sem conseguir separar o trigo do joio.
O que muitos temiam, repetiu-se. Donald Trump regressa à Casa Branca, para um segundo mandato, a 20 de janeiro do próximo ano. Vai imperar uma lógica de governação assente no pragmatismo negocial e menos numa dimensão de respeito pelos valores e aliados tradicionais?
Donald Trump será, certamente, um líder mais experiente, sabendo mais do que sabia quando começou o primeiro mandato. Mas não acredito nos que pensam que ele mudou. Os discursos, as entrevistas e até as pessoas que já são conhecidas para o seu governo, não apontam nesse sentido. Vejo-o, inclusive, mais afirmativo nas políticas que defende. Por exemplo, ele disse ontem numa entrevista que caso os membros da NATO não paguem o que ele entende ser justo, os Estados Unidos abandonam a aliança. O que causaria problemas muito complicados à Europa. E agora estamos confrontados com a particularidade de numa Europa a 27, existirem nove estados que não pensam assim de forma tão distinta do presidente eleito norte-americano. A Europa está muito dividida. O recém-empossado presidente do Conselho Europeu, António Costa, que tem a fama e o proveito de conseguir construir pontes com toda a gente vai ter de ser um mágico do pragmatismo. Ele vai lidar com opiniões muito diferentes dentro e fora do Conselho, por parte de países cada vez mais isolados e desconfiados da comunidade internacional. Por tudo isto, antevejo que 2025 vá ser um ano muito complicado. Trump toma posse em janeiro. No mês seguinte há eleições na Alemanha. E no verão há legislativas em França. As economias britânica, alemã e francesa atravessam grandes dificuldades.
Acossado por tantas dificuldades e desafios, o projeto europeu corre um risco existencial?
A UE já passou por muitas crises ao longo da sua história. A crise da cadeira vazia, a crise das dívidas soberanas, a pandemia, etc. Mas acho que a Europa aprendeu alguma coisa com o “brexit”. O Reino Unido sofreu e ainda hoje sofre com o facto de ter virado as costas ao projeto europeu. Sair da UE é muito difícil, ou como se diz no ténis, é um erro não forçado.
O movimento “Make America Great Again” (MAGA), que tem na sua génese a ideia do isolacionismo militar e económico, será um pesadelo nos quatro próximos anos na Europa?
Dependendo do grau, esse isolacionismo militar e económico será uma realidade. E, já agora, junto também o isolacionismo diplomático. Trump não nutre qualquer respeito pelo multilateralismo e pelas organizações internacionais.
A guerra na Ucrânia completa três anos em fevereiro. O recente encontro de Trump com Zelensky, em Paris, sob a égide de Macron, é um bom presságio rumo ao fim do conflito?
A Europa tem dito que qualquer solução tem de ser proposta ou perfilhada pela Ucrânia. Não nos podemos esquecer que a Ucrânia foi invadida sem ter provocado nada nem ninguém, numa clara violação do direito internacional. Se a moral da história for: «eu posso invadir um vizinho, sem consequências e até saio a ganhar do ponto de vista político-militar», então vai abrir-se uma caixa de Pandora, nomeadamente em países onde as fronteiras não são assim tão óbvias. Por seu turno, Zelensky insiste na adesão da Ucrânia à NATO, e aposta numa solução pela via diplomática, não militar.
O Médio Oriente também está em permanente ebulição. Como antecipa os efeitos para a região da queda do regime de Bashar al-Assad, na Síria, um aliado do Irão e da Rússia?
A Rússia está completamente exaurida e focada na Ucrânia. Mas importa não esquecer que a guerra civil na Síria já se arrastava há mais de uma década, tendo começando por altura das quase já esquecidas «primaveras árabes». Sem o apoio da Rússia, do Irão e do Hezbollah – focados noutros conflitos - o regime de Damasco não aguentou. Com as devidas proporções, fez lembrar o fim da presença ocidental no Afeganistão. Na Síria os rebeldes chegaram a Damasco em pouco mais de 10 dias. E no Afeganistão os Taliban chegaram a Kabul, em agosto, quando dezembro era o mês inicialmente previsto. Confesso que não sei o que se segue. Podemos até ter várias lideranças. Mas preocupa-me que nada se saiba sobre o que estes novos dirigentes pensam da relação com o mundo, o papel das mulheres, a existência ou não de Israel, etc.
Durão Barroso, António Guterres e António Costa são os três portugueses que andaram ou andam na alta roda das maiores instituições políticas europeias e do mundo. Estas lideranças são a marca que Portugal é um país capaz de dialogar e construir pontes com todos, ao mais alto nível?
Concordo totalmente com o que acabou de dizer. Acrescentaria apenas um nome às personalidades que mencionou: o professor Freitas do Amaral, que foi presidente da assembleia-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), quando o secretário-geral era Boutros-Ghali, ainda para mais coincidindo com o 50.º aniversário. Estas pessoas têm qualidades acima da média. Mas não chega ser bom para alcançar cargos de relevância na comunidade internacional. É preciso que os outros países reconheçam que estão a eleger o melhor entre os pares. Mas também considero que há razões de fundo que explicam esta nossa queda para estes lugares.
Por onde quer começar?
Desde a estabilização do nosso regime democrático não temos qualquer problema internacional bilateral. Somos, por definição, um país internacionalista e multilateralista. E não poderia ser de outra maneira visto que somos um pequeno país, entalado entre a Espanha e o Atlântico. Felizmente, não nos resta, por isso, alternativa a viver num ambiente de cooperação internacional e diplomacia. A História diz-nos que onde alguém chegou, nós já lá estivemos. É um país com uma grande capacidade de ouvir, fazer sínteses e encontrar equilíbrios. É a tal personagem das aventuras do Tintim, o Oliveira da Figueira, o vendedor que está no mundo inteiro e se dá bem com toda a gente. É preciso potenciar esta capacidade que, valha a verdade, não está ao alcance de muitos. O próprio caso da CPLP é muito interessante, visto integrar as ex-colónias de uma potência colonial como foi Portugal. Dou-lhe apenas um exemplo eloquente: aquando da celebração oficial dos 50 anos da independência da Guiné-Bissau, foi inaugurada uma avenida em Bissau com o nome de Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República Portuguesa. De facto, não deve haver assim tantas relações saudáveis como esta.
Voltou à academia, após uma experiência no governo. A inteligência artificial e a atração e retenção de talento são os temas-chave na atualidade. Portugal tem, em especial nas universidades, um bom e elogiado desempenho educativo, mas o país não descola em termos económicos. Onde é que, na sua opinião, reside o problema?
Termos a geração mais qualificada da nossa história é um mérito e um crédito para todos nós e devemos agradecer isso aos governos, às famílias, às empresas, às universidades e ao sistema de ensino, de uma forma geral. Temos a particularidade de quase 99 por cento das nossas empresas serem PME, a esmagadora maioria assente numa estrutura familiar, com lideranças ainda a cargo dos seus fundadores. Estamos a começar a assistir à transição da geração que fundou as empresas para a geração seguinte. E essa geração é a tal qualificada e que tanto elogiamos. Por isso, a minha expectativa é que à medida que esta geração (que acumulou conhecimento e saber nas licenciaturas, mestrados e doutoramentos que frequentou) assuma as rédeas das empresas e demonstre uma nova visão para o nosso tecido empresarial. Para já, temos quadros muito qualificados, só que os salários ainda não conseguiram acompanhar. Basta ver que o salário médio em Portugal está praticamente colado ao salário mínimo.
E qual é a explicação que encontra para isso?
O que se passa é que a última coisa na economia que reage ao impacto das transformações são os salários. E como se sabe este é um fator determinante para atrair e reter talento. No entanto, apesar de estar otimista com o que esta nova geração pode fazer, acho que o início de 2025 apresenta muitas dificuldades, incertezas e situações que não dependem de nós. Mas gostaria de partilhar uma nota de muita esperança e que vivi de perto. Durante o tempo em que estive no governo visitei centenas de empresas, por todo o país. Das grandes às de mais pequena dimensão. Vinha de lá sempre muito animado, nomeadamente quando me deparava com uma estrutura familiar. Assistia, frequentemente, a uma espécie de tensão divertida e criativa nesta transição geracional na liderança das empresas. Mas confio que se este processo correr bem vamos ter uma nova visão das empresas e do setor privado.
Contudo, já manifestou, publicamente, a sua preocupação por existir a possibilidade de muitas PME ficarem pelo caminho, no que à adoção dos critérios da sustentabilidade diz respeito. O que é que mais teme?
A UE publicou uma legislação que no papel só se aplica às grandes empresas, no fundo, as que têm músculo e resistência para cumprir estas mudanças no âmbito da responsabilidade social, mecanismos de governação e sustentabilidade ambiental. Só que as empresas grandes contestaram, argumentando que para cumprirem estas obrigações teriam de ter em conta toda a cadeia de fornecedores, o que incluía as micro, pequenas e médias empresas. E desta resposta dependeria o reporte das empresas grandes. Logo, as PME teriam, cedo ou tarde, de entrar neste jogo, devido à grande pressão que estavam a sentir, não só por parte das grandes empresas, mas também das entidades bancárias e financeiras, e dos próprios consumidores, por todos estes intervenientes entenderem que o cumprimento das regras de sustentabilidade é inevitável.
O pilar da sustentabilidade económico-financeira está a ser tido em conta?
Esse é o quarto fator de sustentabilidade e não menos importante. As empresas até podem ser “verdes” e socialmente responsáveis, mas se falirem, não há nada a fazer. Enquanto estive como governante, achámos que não podíamos abandonar estas empresas à sua sorte, e criámos mecanismos de suporte para as PME neste processo de transição, com o apoio e a parceria das associações empresariais de todos os setores. Infelizmente, confirmei a atomização do nosso tecido empresarial o que torna mais difícil esta transição. O que torna ainda mais urgente que as associações empresariais comecem a trabalhar cada vez mais juntas.
A inteligência artificial é outro desafio às empresas, independentemente da sua dimensão. Que benefícios e riscos é que identifica?
Confesso que, neste âmbito, tenho uma série de perguntas, mas para as quais não tenho resposta. Também durante a minha passagem pelo governo estive de visita à sede da Google e falei com um colaborador da empresa que tinha como cartão de visita ser «vice-president for the future». Em Oxford há um núcleo com um nome catastrófico, mas muito interessante, chamado «the center for human extincton».
E quais são as suas questões e inquietações?
São várias. Por exemplo, nas alterações climáticas deixámos correr muito o tempo, sem dar a resposta adequada. O relatório da primeira-ministra norueguesa, Gro Brundtland, (intitulado «O nosso futuro comum»), alertando para o que já se vivia neste domínio é de 1987. E levámos 30 anos a discutir o relatório, sem passar à ação. E temo que possamos cometer o mesmo erro com a inteligência artificial. É verdade que as revoluções industrial e agrícola foram ultrapassadas com sucesso. O que me preocupa nesta revolução já foi dito por Yuval Harari numa das suas «21 lições para o século XXI». Segundo este ensaísta israelita todas as outras revoluções industriais antes desta substituíram o nosso esforço físico, só que esta desafia-nos na nossa capacidade cognitiva. E é esta caraterística distintiva que nos faz ser a espécie dominante no Planeta. Mas tenho mais angústias…
Em que áreas da sociedade?
Ao nível da educação, por exemplo. Com a imensidão de dados disponível em qualquer plataforma, o que é que vamos ensinar aos nossos alunos? Como se ensina a inteligência emocional e se estimula a imaginação? Está visto que temos de voltar a aprender a ensinar. Já para não falar da avaliação que é uma espécie de jogo de gato e rato. Existem programas que permitem detetar trabalhos plagiados com base na IA. Como é que vamos organizar a fiscalidade? Iremos tributar o trabalho das máquinas e dos robôs? Pode ser uma solução. Com menos pessoas a trabalhar é preciso ir buscar o dinheiro a algum lado para canalizar para políticas e serviços públicos. As próprias empresas vão ter de se adaptar e readaptar a esta nova realidade.
E em que medida é que, direta ou indiretamente, os direitos, as liberdades e as garantias dos cidadãos vão ser acautelados neste futuro ainda pouco claro?
Anne Applebaum, uma escritora e jornalista norte-americana, avançou com o termo «morte cívica» para explicar a transferência de competências, direitos e políticas públicas para o e-government. Temos de ter a certeza que as pessoas sabem usar estas ferramentas tecnológicas. Caso contrário, as pessoas, quase sem saberem, vão perdendo direitos. E na Segurança Social, o que vamos fazer se se confirmar o volume de desempregados que certos estudos antecipam? Imaginemos que há mais pessoas que empregos, qual é o valor social de uma pessoa que nunca trabalhou na vida e como é que reconhecemos e integramos o seu contributo para a sociedade? Hoje em dia, somos o que fazemos. E amanhâ, como será?
O senhor da Google deu-lhe alguma resposta convincente?
Ele dizia, com graça: «Só sabemos cerca de 30 por cento do que vai acontecer, mas não se preocupe, que vai ser ótimo!». Ou seja, um otimista…
A CARA DA NOTÍCIA
Testemunha direta do “brexit”
Bernardo Ivo Cruz nasceu em Lisboa, em 1968. Atualmente é professor convidado de Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e na Nova School of Law da Universidade Nova de Lisboa. É cronista semanal no “Diário de Notícias”. Entre 2022 e 2024 foi secretário de Estado da Internacionalização no XXIII governo constitucional. Anteriormente, foi Subsecretário de Estado Adjunto do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Conselheiro na Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia durante a Presidência Portuguesa do Conselho de 2021 e administrador executivo da Sociedade para o Financiamento do Desenvolvimento. Foi presidente da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa no Reino Unido, cargo que ocupava quando se deu o “brexit”. É doutor em Ciência Política pela Universidade de Bristol, foi bolseiro de Doutoramento Chevening do Ministério dos Negócios Estrangeiros Britânico e é Alumnus do Prince of Wales’s Business and Sustainability Program pelo Instituto de Sustentabilidade e Liderança da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. É membro do Scientific Committee do Center for Sustainable Finance da Católica Lisbon School of Business and Economics.