A política da lógica e da razão faz parte do passado e hoje o que impera é a política das emoções. É neste contexto que, segundo Mafalda Anjos, se assiste à «normalização da indecência» na vida política portuguesa. A comentadora da CNN Portugal acrescenta que a prática da decência é fundamental para evitar o caos na sociedade.
Segundo o dicionário infopédia da Porto Editora «decência» significa «(comportamento, atitude) conformidade com aquilo que é considerado respeitável e moral; compostura, decoro; dignidade.» O livro que acaba de editar “Carta a um jovem decente” é uma espécie de grito de alerta para a falência destes valores?
Sem dúvida. Para além do contexto familiar, o que me impeliu a escrever este livro foi considerar que a decência é um bem escasso na sociedade, sobretudo na nossa vida pública. As redes sociais, por exemplo, em nome da liberdade de expressão, tornaram-se um autêntico faroeste, onde tudo é permitido e inclusive amplificado por causa dos algoritmos. Este ambiente acaba por ser transferido para o mundo real, nomeadamente nas conversas entre as pessoas e até nos painéis de comentários televisivos. Escrevi recentemente um ensaio no “Expresso” sobre a história da decência em que falo da “Janela de Overton”. De acordo com a descrição deste politólogo, na década de 90, a sua janela incluia uma gama de ideias consideradas politicamente aceitáveis no clima atual da opinião pública, que um político pode recomendar sem ser considerado excessivamente extremo para obter ou manter cargos públicos. O espetro da aceitação das ideias variava nas seguintes dimensões: impensável, radical, aceitável, sensível, popular e politicamente implementada.
E de que forma é que ao longo dos anos a perceção da opinião pública tem oscilado?
Em especial a proliferação da internet permitiu o escancarar da “Janela de Overton”. Determinadas ideias que há uns anos se admitiam como impensáveis ou ultraradicais hoje em dia vêmo-las em todo o lado e frequentemente, e em particular, no mundo virtual. Em 2014, estive na sede do Facebook em Silicon Valley – um dos trabalhos que mais me marcou na carreira –, onde conheci a unidade que trabalha com o algorimo base do Facebook. As pessoas nao têm a noção do quão importante pode ser o algoritmo, com a criação das tais bolhas virtuais, para a forma como as pessoas formam a sua visão da realidade concreta. E isto torna-se ainda mais preocupante quando é certo e sabido que a maior parte das pessoas procura informar-se através das redes sociais. Churchill dizia que «uma mentira dá uma volta inteira ao mundo antes mesmo de a verdade ter oportunidade de se vestir.». Com a internet, e a velocidade de propagação planetária que existe, a mentira já deu a volta ao mundo, mesmo antes de a verdade abrir a pestana.
É o «maravilhoso e tenebroso» mundo novo da internet, como escreve, que acaba por marcar um antes e um depois das redes sociais?
Sempre existiram ideias consideradas indecentes na sociedade. A diferença é que a vergonha era um fenómeno de regulação social. Existia uma censura social perante uma ideia considerada chocante ou ofensiva. Nesse sentido as redes sociais marcam uma nova era: a vergonha como regulador social esvaiu-se muito porque as pessoas na internet encontram bolhas onde as suas ideias – por mais chocantes que sejam – acabam por ser respaldadas. E este ambiente contagiou a política. Donald Trump, por exemplo, foi favorecido pelo ar do tempo que as redes sociais ajudaram a criar.
Trump, de alguma forma, é um produto, primeiro da televisão, e depois da internet?
Trump ganhou visibilidade em 2015, quando começou a mudar por completo a forma de apresentar a proposta política. No ano seguinte foi eleito e o resto da história já todos sabemos. Foi ele que um dia disse que podia matar alguém na 5.ª Avenida que continuaria a ser adorado pelos seus apoiantes. O tempo veio dar-lhe razão. Não chegou a tanto, é certo, mas verbaliza uma multiplicidade de indecências e mentiras. No fundo, beneficiou da insatisfação e do sentimento de orfandade que uma importante parcela da população sente. E esta gente encontrou neste homem de extrema-direita um porta voz da sua indignação.
No dia seguinte à vitoria de Trump nas presidenciais norte-americanas escreveu nas suas redes sociais que estamos a viver «dias de indecência recompensada». Trump é, por assim dizer, o pináculo da indecência?
Na História já tivemos muitos exemplos de indecência, com tiranos, holocaustos, etc. Mas nestes tempos contemporâneos ele é, seguramente, o que tem maior expressão. Trump consegue o feito de ser eleito, pela segunda vez, no país que vendeu a ideia de ser o líder do mundo livre e dos valores fundamentais e democráticos. Trump demonstrou que ultrapassar os limites é possível e compensa. Ele é o primeiro cadastrado a exercer funções na Casa Branca. É algo sem paralelo.
Estudos recentes indicam que os jovens se sentem atraídos pelos argumentos difundidos pelos populistas, por norma, mais simples, mais básicos e mais certeiros. O recurso a fómulas mágicas é a receita para conquistar as gerações mais novas?
As mais novas e, de alguma forma, também, as mais velhas. Não se esqueça que os populistas usam sempre respostas fáceis para problemas complexos. Fiz um trabalho, há cerca de um ano, para a revista “Visão” a que se deu o título « TikTok e os jovens: A máquina de fazer extremistas». Os políticos populistas e de extrema-direita dominam esta rede social, com larga vantagem sobre os políticos moderados ou de esquerda. Encontram aqui terreno fértil para promoverem uma linguagem muita própria (a dos jovens) e propostas indecentes e despudoradas. Eles sabem comunicar como ninguém através destes novos “media”. Recorrem a vídeos curtos, com graça e músicas da moda, carregados de “fake news”. Fazendo passar, de forma subentendida, uma mensagem racista e xenófoba. Outro aspeto relevante é que os jovens têm uma tendência natural para confrontarem a autoridade.Desde logo dos pais e também de quem dita as regras do país, ou seja, o governo. Eles tendem sempre a insurgir-se contra as ideologias ou os partidos que estão no poder. E a direita teve o mérito de passar a ocupar o espaço da esquerda na captação deste sentimento de antiautoridade. Para quem quiser saber mais em detalhe esta mecânica sugiro um livro obrigatório: chama-se “Os engenheiros do caos”. Nele, Giuliano da Empoli explica, na perfeição, como a extrema-direita e a direita radical utilizam tão bem as redes sociais e os algoritmos para fazer passar estas mensagens.
E é esta habilidade digital que levou muitos milhares de jovens, alguns desinteressados da política e outros que se deslocaram às urnas pela primeira vez, a votarem massivamente no Chega, nas últimas legislativas?
Os partidos de direita têm, atualmente, uma tração comparativa maior entre os jovens. E neste campo também incluo a Iniciativa Liberal, igualmente com propostas políticas muito dirigidas para uma faixa etária mais jovem. Mas foi em particular o Chega que conseguiu cativar uma fatia importante da população. Como? Com propostas simplistas, egoístas e chocantes que tiveram a identificação dos jovens. Mas permita-me discordar que os jovens não se interessam pela política. Isso é falso. O que acontece é que eles tomam conhecimento da mensagem política por meios não tradicionais. Que não são, seguramente, os jornais, as televisões ou os tempos de antena. É preciso também que os partidos políticos moderados e de esquerda saibam falar com os jovens e estarem onde eles estão – caso contrário, redes sociais como o Tik Tok ficarão dominadas por determinado tipo de mensagem, sem qualquer espécie de confronto ou contraditório. É necessário que exista dicotomia para que os jovens formulem o seu pensamento crítico. É fundamental que todos os partidos tenham uma presença mais profissional, mais inteligente e mais direcionada para os jovens.
É comentadora de política na CNN Portugal, em particular no espaço “Sem agenda”, em parceria com Rui Calafate. A vida política nacional está longe de ser um espaço bem frequentado. Também aqui estamos a assistir a uma normalização da indecência?
Essa tentativa de normalização da indecência é muito evidente. Houve indecência antes mesmo de existir André Ventura. A diferença é que no passado a política assentava mais em lógica e razão. E hoje o que impera é a política das emoções. Um dia, Manuel Pinho fez uns «corninhos» no Parlamento e a pressão foi de tal ordem que teve de se demitir de ministro da Economia. Hoje, o líder do Chega pode fazer e dizer o que quiser no Parlamento. As ideias indecentes que ele trouxe para o espaço público estão a ser normalizadas. E os outros partidos, mais moderados, sentem que têm de ir atrás, para terem a atenção da opinião pública. Numa sala em que todos berram, se aparecer lá alguém a falar baixinho, ninguém o vai ouvir.
É mãe de quatro filhos e no seu livro diz que sempre teve a ambição de ver crescer «seres humanos decentes». Neste jogo do empurra, quem tem mais responsabilidades no ato de educar: a escola ou a família?
Tenho uma ideia muito clara: educar cabe à família. É à estrutura familiar que cabe transmitir os valores básicos, ao nível da convivência social e da cidadana. Mas as famílias têm sofrido, ao longo dos anos, alguma erosão. Há famílias desestruturadas e disfuncionais. É por isso que a escola deve ter um papel complementar. Por isso, defendo a disciplina de Educação para a Cidadania, com bom senso e moderação, que proporcione os princípios fundamentais, disponibilizando o bê-á-bá do convívio uns com os outros.
O livro que agora lançou é o seu contributo para sensibilizar pais e filhos?
Quando a minha filha mais velha fez 18 anos, escrevi-lhe uma carta, para que a guardasse para a vida. Voltei a fazê-lo três anos depois, para o meu segundo filho. A ideia não foi dar lições de vida: quis simplesmente partilhar experiências, perplexidades, falhanços e algumas, poucas, conclusões. O livro que agora lanço é, na verdade, um pequeno manual de como não ser um imbecil. O objetivo é o mesmo das cartas: dar o meu modesto contributo para que os jovens do meu país se transformem em seres humanos decentes. Acredito que um certo conceito de decência é fundamental para evitar o caos na sociedade.
Se for convidada para ir a uma escola falar do seu livro que mensagem gostaria de transmitir à plateia?
A mensagem fundamental a passar aos jovens é fazerem o exercício, tão simples e tão complexo, de procurarem colocar-se no lugar do outro, sentirem os problemas dos outros. «Não faças aos outros aquilo que não querias que te fizessem a ti», é uma frase central. Se tomassemos esta frase como regra, metade dos problemas do mundo desapareciam. A tolerância é o óleo do motor da sociedade e da democracia.
Tem um longa carreira no jornalismo. Escrito em 1998, “Cartas a um jovem jornalista”, de Juan Luís Cebrián, é uma referência para muitos profissionais da sua geração. Que carta escreveria a um potencial jornalista?
Se Cebrián escrevesse hoje esse livro, que é uma autêntica “Bíblia” para os jornalistas do meu tempo, ele estaria confrontado com um mundo novo que se abriu quando a produção de conteúdos jornalísticos de qualidade deixou de ser um bom negócio. Isso transforma quase tudo. Contudo, no essencial, os valores não mudaram: o jornalista tem de possuir uma curiosidade incessante. Procurar perceber mais e melhor determinado assunto. E, em segundo lugar, deve ter o instinto de missão e serviço público de modo a ambicionar construir uma sociedade melhor. Infelizmente, a recompensa financeira é precária e o reconhecimento social não é o merecido, muito por causa dos sucessivos ataques que têm sido lançados aos “media” tradicionais, por alguns populistas, como Trump. Em suma, o jornalismo atravessa uma fase mais difícil do que nunca mas, paradoxalmente, é também mais necessário do que nunca.
Cara da Notícia
Jornais, revistas, televisão e...livros
6 Mafalda Anjos nasceu a 20 de outubro de 1975, em Paço de Arcos (Oeiras). Educada na Escola Alemã e licenciada em Direito, é jornalista, comentadora da CNN Portugal desde o dia da estreia do canal, em 2021, e colaboradora da Antena 1. Foi durante sete anos diretora da revista “Visão”. Antes disso foi responsável pela revista do “Expresso” por um período de sete anos, subdiretora do “Semanário Económico” e jornalista das revistas “Focus” e “Exame”. “Carta a um jovem decente” é o livro que acaba de lançar, editado pela Contraponto, que no prefácio conta com o testemunho de 20 notáveis, onde se incluem o Presidente da República e o Primeiro-Ministro.