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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

João Paulo Batalha, consultor em políticas anticorrupção ‘A corrupção é uma indústria de negócio’

20-05-2024

A corrupção é um crime difícil de investigar e de provar, «com custos económicos, sociais e políticos avassaladores.» Para João Paulo Batalha, a dissuasão deste fenómeno não se consegue agravando penas, mas antes melhorando a eficácia do sistema penal. O vice-presidente da Frente Cívica defende ainda que os populismos e os extremismos emergiram no nosso país porque não se alterou “a estrutura de economia corruptiva”.

O custo estimado para a corrupção em Portugal (The Costs of Corruption Across the EU, realizado pelo The greens/efa in the European Parliament, em 2018) atinge anualmente cerca de 18,2 mil milhões de euros. Se o dinheiro perdido neste fenómeno fosse aplicado na redução de IRS, os portugueses não pagariam este imposto. Apesar de ser uma estimativa, não deixa de chocar. Admite que possamos estar a falar da ponta do icebergue?

Seguramente que, quando contabilizamos os custos dos casos conhecidos, estamos a falar da ponta do icebergue. Os custos económicos, sociais e políticos da corrupção são avassaladores. Por isso, os verdadeiros custos económicos da corrupção só os conseguimos estimar por aproximação. Mas, para além dos custos económicos, temos os (mais visíveis) impactos políticos e sociais, com a eternização de situações de desigualdade dos cidadãos perante a lei e na sua relação com o Estado. Isto para além da degradação da qualidade dos sistemas democráticos, com a consequente “migração” para sistemas cada vez mais autoritários. Em termos económicos passámos de uma economia concorrencial e aberta para uma economia de captura, em que os grandes interesses económicos que influenciam a seu favor as decisões políticas, não só se servem do Orçamento do Estado como anulam, por completo, a capacidade de sobrevivência de outras empresas que queiram trabalhar de forma limpa.

O Relatório Anual de Segurança Interna aponta um aumento de 30% nos crimes de corrupção e conexos. É exagero dizer-se que há uma indústria da corrupção em Portugal?

Quem analisa a evolução económica do país – antes e depois da “troika” – percebe que há uma indústria de corrupção, existindo um conjunto de operadores económicos que capturam o Estado (em áreas como as obras públicas, o ambiente e na contratação pública). Isto para além de todo um universo de intermediários e facilitadores de negócios de toda a espécie, onde podemos incluir banqueiros, seguramente, como vimos no caso das falências bancárias, advogados, contabilistas e também os próprios políticos. Estes últimos atores têm com função manter intacta esta estrutura de captura do Estado. Perante este cenário, não é de estranhar que a corrupção, para além de ser um abuso sobre a situação política e económica, se torne uma indústria de negócio para gerar rendas protegidas. Em suma, com a “troika” não se conseguiu romper com essa economia que levou Portugal à bancarrota, mas acabou antes por ser reconfigurada, com os mesmos custos para os contribuintes. E há outra ilação: os populismos e os extremismos emergiram em Portugal precisamente porque não alterámos a estrutura de economia corruptiva. Em síntese, é um desalento verificar que os sacrifícios que a “troika” nos impôs não serviram para mudarmos verdadeiramente de vida.

Desfraldar a bandeira contra a corrupção é um tema que dá mais ou menos jeito a qualquer partido, em especial aos mais extremistas, que até usam o argumento eleitoral de «limpar» o país. Onde é que quer chegar quando afirma que «os partidos têm uma relação tática com a corrupção»?

Sobretudo para consumo eleitoral, todos os partidos agitam a bandeira do combate à corrupção porque percebem que essa é uma exigência dos cidadãos. Contudo, a direita populista ou a extrema-direita fazem-no com mais ardor e mais sucesso por serem fenómenos políticos novos, assumindo-se como uma rutura face aos partidos incumbentes e mais antigos, que apesar de terem o mesmo discurso, não demonstram a mesma credibilidade por estarem envolvidos em vários escândalos no passado. E são precisamente os principais partidos que têm sido muito omissos em políticas estruturais de combate à corrupção. Enquanto isso, vamos colecionando inúmeros pacotes legislativos sobre o tema, pelo menos nos últimos 20 anos, em que se mantém o cerne desta promiscuidade completamente intacta e que tem origem, sobretudo, nos partidos. É isto que explica a relação tática que as forças partidárias demonstram. Ou seja, abordam e defendem o tema quando dá jeito, nomeadamente quando estala um escândalo que embaraça o partido de outra cor.

Fala em inflação da impunidade e caldo de cultura para explicar o ambiente que se vive no espaço público, chegando mesmo a definir alguns protagonistas como «políticos de negócios». Pagar melhor a titulares de cargos públicos pode ser um antídoto para diminuir a tentação pelas práticas corruptivas?

Essa é uma boa questão. Admito que ao nível do governo e das câmaras municipais, dada a complexidade da gestão e da governança, os ordenados sejam discutidos e eventualmente revistos, até pelo nível de qualificações e responsabilidades que quem assume estes cargos tem. Os vencimentos destas pessoas não se podem comparar, por exemplo, com os que se praticam no setor privado. Por isso, entendo que a remuneração dos políticos não deve ser um tema tabu, sobretudo se queremos ter capacidade para atrair boas pessoas. Isto apesar de ser óbvio que as funções exercidas no serviço público estão sujeitas a maior exposição e também a um maior escrutínio. É preciso travar fenómenos como o das “portas giratórias” que são um verdadeiro cancro em Portugal, impedindo que pessoas ocupem no privado, cargos que entram em conflito de interesses com os cargos de onde saíram, no público. Objetivamente, temos de lhes dar a capacidade de ganharem a vida e isso faz-se com o subsídio de reintegração, que é uma subvenção pública, que perdurou durante bastante tempo até ser extinto em 2013. Isto não é uma regalia ou alcavala que se dá a ex-políticos, é sim um investimento na integridade pública e na defesa da integridade do Estado.

Este é um crime com muita legislação associada, temos até uma Estratégia Nacional Anticorrupção em curso, mas as condenações são escassas. A morosidade da Justiça explica tudo ou este é um crime difícil de obter prova física?

É um pouco de tudo o que descreveu. Este é um crime difícil de investigar e de provar, para além de envolver perícias contabilistas e financeiras que são de grande complexidade. Uma pessoa que é roubada por esticão sabe-se que é a vítima, mas as vítimas da corrupção somos todos nós e não é diretamente ninguém. Para além disso, e ao contrário do roubo por esticão, é difícil que quem investiga tome, no imediato, conhecimento do crime por corrupção. Porque quem comete os crimes, por norma, está em situação de poder e tem a capacidade de os silenciar. É preciso que se diga que temos um fetiche pela criminalização de condutas e a criação de novas e sucessivas tipologias penais que criam, muitas vezes, legislação desconexa, descoordenada e difícil de interpretar e aplicar, atirando tudo para o colo do Ministério Público. Enquanto isso, vai-se esvaziando qualquer discussão sobre ética e responsabilização política. Com o avolumar do número de inquéritos, em que a maior parte ou é arquivada ou não segue para condenação, não é de admirar, portanto, que se oiça, com regularidade, a frase «à Justiça o que é da Justiça, à política o que é da política»…

A decisão do juiz na sequência da mobilização sem precedentes da Polícia Judiciária para a operação na Madeira que visou várias estruturas de poder na região autónoma deixou o país estupefacto..

A natureza imediatista da Comunicação Social procura litigar estas “maratonas” como se fossem “sprints”, transformando os processos judiciais que se vão arrastar durante anos em autênticas partidas de ténis, em que se vê quem é que põe a bola no “court” do adversário e consegue ou não o ponto. Este e outros processos, muito complexos, só vamos ter a verdadeira conclusão se foram bem ou mal investigados ou se o Ministério Público foi competente ou incompetente, dentro de alguns anos. Quer no caso da Madeira, quer no caso da “Operação influencer”, que são os grandes processos mais recentes, a discussão que há a fazer é se os factos que são conhecidos, independentemente de serem ou não crimes ou haver indícios de crimes, são ou não uma boa forma de governar. Patrocínio de um rally? Almoços e jantares em restaurantes de luxo? Um advogado que tem as portas abertas para o gabinete do Primeiro-Ministro e que, por coincidência, é seu amigo? Isto pode não ter relevância criminal, mas tem de ser discutido no plano ético e da boa governança.

O endurecimento das penas podia ser um caminho para a dissuasão destes comportamentos desviantes?

O agravar das penas de prisão por corrupção num país onde as pessoas não são condenadas por corrupção ou se o são é com pena suspensa, não serve de nada. É pouco mais do que inócuo. Não é agravando penas que vamos conseguir mais dissuasão, é melhorando a eficácia do sistema penal.

O Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), criado a 9 de dezembro de 2021, no âmbito da Estratégia Nacional Anticorrupção, foi finalmente instalado em junho passado, substituindo o Conselho de Prevenção da Corrupção. Trata-se de uma nova abordagem perante o fenómeno ou apenas uma nova nomenclatura?

É a mesmíssima abordagem, absolutamente cosmética, simplesmente para gerar uma falsa sensação de movimento. Para lhe dar uma imagem eloquente, é uma forma de criar carrosséis de combate à corrupção, que nunca saem do sítio de onde partiram. É esta a engrenagem de combate à corrupção, em que o motor trabalha, gasta combustível, mas como não tem mudança engatada, não avança. Gostaria de lembrar que no início dos anos 80 fomos pioneiros a criar um organismo especializado denominado Alta Autoridade Contra a Corrupção e que 10 anos volvidos fomos, de novo, pioneiros, mas a extinguir esta entidade. De lá para cá temos vindo a criar uma constelação enorme de microrganismos, atomizando as infraestruturas de combate à corrupção, que funcionam de forma descoordenada e ineficiente. Isto é demonstrativo da má vontade política para participar neste combate.

Há vários processos de corrupção a correr na Justiça. Qual é a sua expetativa relativamente ao desenlace dos processos que envolvem José Sócrates, Ricardo Salgado ou Manuel Pinho?

O processo de Manuel Pinho está mais bem encaminhado. Já houve alegações finais e o Ministério Público pediu nove anos de prisão para o antigo ministro. Aguarda-se a decisão final. Os casos dos muitos processos relativos ao BES e a “Operação Marquês” são menos animadores – aliás, tornaram-se ambos casos de estudo sobre como entravar a máquina de Justiça em Portugal. Já começo a achar que é demasiado otimista antever que partes substanciais destes casos não morram por prescrição. Se assim for, pelo menos que se retirem alguns ensinamentos para fazer diferente no futuro.

Afirma que o potencial de fraude com fundos europeus é uma atividade económica em Portugal tão antiga quanto a própria adesão à Comunidade Europeia. A execução e canalização dos fundos do PRR cumpre com os propósitos de transparência, participação e integridade na gestão do programa?

Os escândalos, as fraudes e o mau uso de fundos europeus acontecem desde o início dos anos 80. Sobre o atual PRR, já temos a garantia que esses objetivos não vão ser garantidos. A legislação feita à medida para isentar a gestão dos fundos europeus dos mecanismos de contratação pública (que garantem transparência, concorrência e capacidade de escrutínio) é disso prova. Portugal tem uma noção predatória sobre a natureza dos fundos europeus. Em que o objetivo, elevado a missão patriótica, é gastar a «massa», seja de que forma for. E isso é um incentivo brutalmente perverso para que grupos económicos e de interesses com capacidade para executar largas quantidades de dinheiro sejam beneficiados. Ou seja, projetos caros. Isto é um guião para executar fraudes objetivas.

Para finalizar, a questão sobre a forma como a sociedade civil tem encarado e o modo como tem intervindo para censurar os casos de corrupção que emergem. Admite que a aposta na literacia financeira e também cívica pode estimular uma opinião pública mais inconformada e exigente com o que acontece diante dos seus olhos?

As atitudes públicas e a sensibilidade relativamente à corrupção alteraram-se muito nos últimos dez/quinze anos. Enquanto a economia crescia os cidadãos não se preocupavam especialmente com situações de corrupção, porque, falando bem e depressa, «chegava para todos». O que acontece é que o repúdio dos cidadãos face à corrupção alargou-se muito, mas continua a ser muito pouco profundo. A consciência é maior – aliás, segundo o Eurobarómetro do ano passado, 93 por cento dos portugueses consideram que a corrupção é prática comum no nosso país – mas a perceção sobre o fenómeno é ainda muito difusa. No essencial, percebe-se pouco sobre a forma como a corrupção opera e se organiza, onde estão as vulnerabilidades. Em suma, as pessoas estão muito sensíveis ao problema, mas pouco capacitadas para discutir soluções, o que as pode levar a caírem no engodo de pretensas soluções fáceis de combate a um problema complexo.

Que papel pode ter a Educação para termos cidadãos mais interventivos, sobre este e outros assuntos, na vida em comunidade?

No tema do papel da Educação e da literacia financeira acabo por divergir sobre algum consenso social e político que atira para a escola a função de formar uma espécie de protótipo do bom cidadão. Penso que é uma conceção pouco útil e que alimenta uma lógica de guerra cultural ou ideológica, que quando se transfere para as escolas gera uma conflitualidade social brutal e altamente destrutiva. Dito isto, não condeno que se fale da corrupção e dos seus custos nas escolas, mas mais importante ainda é que os jovens que saem da escolaridade obrigatória – e que não seguem para níveis de ensino superiores – saibam como se organiza o Estado e os mecanismos de organização de várias outras instituições públicas, os diferentes poderes existentes, como se faz uma lei, qual é a diferença entre um tribunal de primeira instância e um tribunal de recurso, etc. De uma forma geral, o cidadão comum desconhece estes assuntos, o que é dramático sempre e quando os nossos direitos estão a ser atropelados e não sabemos como reagir, deixando-nos desprotegidos, abrindo, por esta via, caminho aos abusos.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Ativista contra a corrupção

João Paulo Batalha é consultor em políticas anticorrupção e vice-presidente da Frente Cívica. Anteriormente, presidiu à associação Transparência Internacional Portugal. Licenciado em História, foi jornalista e dedica a vida cívica a associações de combate à corrupção e a vida profissional a desenvolver estratégias de boa governança, integridade e qualidade das organizações. É presença regular na Comunicação Social, em particular na revista “Sábado”, onde assina uma coluna de opinião.

Nuno Dias da Silva
Catarina Guerreiro / Direitos Reservados
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