Com o foco no humanismo nas organizações, Gabriel Leite Mota defende que se os estudantes estiverem desmotivados e sem objetivos não vão aprender coisas novas e rejeita entender a escola como um espaço onde impera a competição desenfreada. O único português doutorado em economia da felicidade contesta ainda que o PIB seja entendido como uma métrica fiável para avaliar o bem-estar das nações.
A economia da felicidade é um ramo de estudo dentro da ciência económica. Quais são as principais determinantes que contribuem para a felicidade das pessoas?
Se me permite, começaria antes pelos grandes «destruidores» da felicidade em que identificaria, em primeiro lugar, destacado, o desemprego, visto que provoca nas pessoas uma quebra substancial na sua sensação de bem-estar. Se os países registarem altas taxas de desemprego isso também se faz sentir no índice de felicidade média das populações. Já se a variável material, ou seja o rendimento disponível, registar um crescimento isso explica, em parte, o bem-estar e a felicidade. Mas existe uma dimensão não linear na relação. Ou seja, se um país ou uma pessoa gera riqueza ou aufere um bom salário, respetivamente, já não se pode falar que esse crescimento seja linear. Os dados mostram, de forma robusta, que é uma relação de rendimentos marginais decrescentes. Explico: é muito determinante para quem tem pouco rendimento ganhar mais, mas torna-se muito menos relevante para quem já se situa num patamar superior.
Isso também acontece ao nível das nações?
Sim. Uma nação pobre, com um baixo PIB “per capita”, quando enceta um processo de crescimento económico isso rapidamente se traduz na melhoria do bem-estar e da felicidade sentida pelas pessoas. Nos países de nível médio/médio alto o processo de crescimento económico é muito menos capaz de produzir sensações de bem-estar. Repare que grandes economias, como os Estados Unidos ou o Reino Unido, tiveram nos últimos 60 anos um processo de crescimento continuado, mas os níveis de felicidade e de bem-estar mantiveram-se praticamente estagnados ou, inclusive, regrediram. Em resumo, o PIB não é uma métrica fiável para avaliar o bem-estar das nações porque vai perdendo potência à medida que se acumula, ao longo do tempo. Perante isto, resta-nos olhar para outras dimensões, como é o caso da qualidade das relações interpessoais que é um determinante positivo da felicidade.
Se no seu entendimento o PIB não é fiável, qual é a variável capaz de mensurar a felicidade das nações?
Quem disse isso não fui eu, foi o próprio “inventor” do PIB, um economista norte-americano de origem húngara. Atenção: isto é um indicador económico, uma espécie de contabilidade nacional, que nos permite saber quanto é que andamos a produzir e a consumir, mas não se trata de um indicador de bem-estar ou felicidade. Em síntese, acredito que devíamos falar mais da qualidade do PIB e menos da sua quantidade.
A narrativa política defende que quanto mais crescemos economicamente, mais felizes e satisfeitos estarão os cidadãos. Mas como explica que o item felicidade nos programas eleitorais dos partidos mereça uma nota de rodapé ou pouco mais do que isso?
Há vários países que já levam muito a sério esta questão, e que envolvem, nomeadamente, os gabinetes estatísticos que trabalham junto dos ministérios das Finanças e até dos chefes do governo. E é preciso não esquecer que estes indicadores e estatísticas servem de base para a avaliação de políticas, nomeadamente as de natureza pública. Em Portugal, no exercício rápido de leitura que fiz dos programas eleitorais dos partidos que concorreram às ultimas legislativas está demonstrando que há um grande afastamento face a essa realidade. Ainda se trata o tema da felicidade de forma muito superficial.
Portugal é um país muito desigual. O desemprego está a um nível baixo, mas o drama da habitação, a pobreza, a solidão e até os sem-abrigo traduzem que este é um país a várias velocidades no que ao bem-estar e qualidade de vida diz respeito?
A dimensão das desigualdades é ao mesmo tempo um assunto relevante e complexo de estudar, e que também está muito dependente da própria cultura dos povos: há culturas que aceitam mais a desigualdade e outras que a toleram menos. Pode haver uma desigualdade no rendimento e até a desigualdade na própria felicidade, como estudos recentes apontam. Quando falamos da felicidade média podemos estar a encobrir a real dimensão dos problemas e a mascarar a desigualdade. Para além disso, a confiança ou a falta dela sobre a qualidade das instituições é outra área de investigação presente nos estudos. Sentir confiança nas instituições ou relativamente a desconhecidos tem um efeito protetor do bem-estar. Isto é um fator que nos diminui. Portugal é um país com rendimento médio/alto, mas na felicidade pontua pior e isso tem a ver com a vertente do baixo capital social e a baixa confiança nas instituições e relativamente a estranhos. Gera-se um entorpecimento social que dificulta o florescimento dos níveis de bem-estar. Ao contrário, por exemplo, dos paises nórdicos.
É isso que explica o 56.º lugar do nosso país no “ranking” da felicidade da ONU, em que o primeiro lugar é ocupado pela Finlândia?
Sim. Para o nosso nível de riqueza estamos numa posição abaixo à que seria normal. Há quem aponte que se trata de uma questão cultural, pelo facto de o nosso povo ser meias-tintas e não gostar de admitir que está bem, mas a evidência que salta à vista é que os indicadores de capital social são baixos, o que acaba por nos penalizar, ainda mais se nos compararmos com países com condições económicas semelhantes.
A nossa baixa produtividade, comparativamente com outros países, torna mais dificil de aplicar aqui experiências como a semana dos quatro dias ou o teletrabalho, ou as pessoas dentro das organizações podem ter um melhor desempenho com melhores práticas de gestão?
As várias experiências levadas a cabo da semana de quatro dias revelaram bons resultados. As empresas não perdem produtividade. Bem pelo contrário, até sobem. A reorganização do trabalho e a melhor gestão do tempo organizacional permitirão a disponibilização de mais um dia de descanso para o trabalho. E até constato que, em certos setores, onde há falta de mão de obra, pode ser um fator decisivo para a captação e retenção de pessoas. Mas é preciso não perder de vista duas dimensões: a primeira, é a aposta progressiva na transformação organizacional em direção a um maior valor acrescentado. E em segundo lugar, a otimização dos tempos que tornem possivel concretizar a semana dos quatro dias de trabalho. Para além disso, a gestão é uma ferramenta para as organizações – funciona quase como uma tecnologia, que pode ser usada para o bem ou para o mal – e tem de ser adequada à natureza da organização. Se as organizações derem prioridade à dimensão da felicidade e bem-estar dos colaboradores e dos clientes como um objetivo principal, então estas entidades passarão a ser consideradas peças fundamentais do “jogo”, com uma grande influência na dinâmica do dia a dia, visto que é nas organizações que passamos a maior parte das nossas vidas. E quando falo em organizações posso estar a falar de uma escola, uma empresa ou uma autarquia. Esta temática da felicidade tem de entrar, definitivamente, para o interior das organizações e ir além de práticas que algumas empresas já têm como o “team building” e outras atividades extra-curriculares.
As nossas organizações têm cada vez mais consciência do seu papel em termos de responsabilidade social?
O meu foco é no humanismo nas organizações. Não há humanismo nem felicidade na sociedade se não houver humanismo ou felicidade nas organizações. Uma sociedade que queira caminhar no rumo de uma felicidade sustentada tem de ter organizações que elenquem nos seus objetivos essas dimensões, para além, naturalmente, do lucro. Enquanto isso, vejo com satisfação a movimentação ao nível de vários países da Europa com os fatores ESG (ambientais, sociais e de governação corporativa) e é fundamental que mais e mais empresas se envolvam nesta dinâmica. De que me serve que Portugal seja um dos países que ratificou a Carta Universal dos Direitos Humanos, se depois nas empresas houver situações de “bullying”, entre as chefias e os subordinados? A natalidade baixou muito drasticamente e isso tem muito a ver com a vida laboral. Se as pessoas tivessem vidas laborais mais facilitadoras do tempo livre tenho a certeza de que a natalidade iria aumentar. É esse rumo que há que empreender.
Falemos agora da comunidade escolar. Há estudos desenvolvidos sobre a felicidade em ambiente escolar?
Têm sido produzidos alguns estudos em contexto escolar para aferir a felicidade dos estudantes. O bem-estar psicológico liga muito bem com a aprendizagem e vice-versa. Considero que atingir a felicidade através da aprendizagem e vice-versa é um circulo virtuoso desejável. A aposta no bem-estar e na felicidade dos alunos é decisiva para as aprendizagens. Se os estudantes estiverem desmotivados, sem objetivos e alienados não vão aprender coisas novas. Mas também se a escola for um espaço de competição desenfreada tal não será conducente à aprendizagem e à felicidade. Costumo dar o exemplo dos países asiáticos em termos de educação: há um foco muito grande nas aprendizagens, inclusive com o recurso a alguns métodos abusivos, com reflexos nocivos em termos da própria saúde mental. Não raro, na idade adulta acabam por verificar-se situações de “burnout”.
A tecnologia está a transformar a escola e o modo de aprendar e ensinar? De que forma isso se reflete nos comportamentos?
Queremos a economia como fim último ou queremos a economica ao serviço da felicidade? Na escola temos de fazer uma pergunta semelhante: queremos a aprendizagem como fim último ou queremos a aprendizagem como ferramenta para a felicidade? Sou obviamente suspeito, mas defendo que se deve subordinar tudo à felicidade humana, seja a economia ou as aprendizagens. Admito que a proliferação da Inteligência Artificial nas escolas – com os professores virtuais, por exemplo – até pode funcionar, mas este processo de individualização vai desagregar sobremaneira as relações e as dinâmicas sociais que são fundamentais para a formação das pessoas. A escola não é apenas um espaço de aprendizagem de determinadas matérias, trata-se também de um local de aprendizagem social. São essas escolhas que temos de fazer enquanto sociedade.
Vivemos num mundo, a todos os níveis, convulso, caótico e imprevisível. Isto é um ingrediente mais propicio à angústia do que a felicidade?
Sem dúvida. Lidar com toda esta incerteza não é gerador de paz mental. Cito o ensaísta israelita Yuval Harari quando ele diz que vivemos num mundo cada vez mais complexo e que dificilmente teremos as ferramentas que nos permitam compreender essa complexidade. Os populismos são uma resposta, mas no fundo, só tentam simplificar o problema, não o conseguindo resolver. Devemos encontrar ferramentas para nos distanciarmos de muitos dos fenómenos que nos rodeiam e em que os “media” têm um efeito amplificador. Não estou com isto a defender que fiquemos alheados do que nos rodeia, mas devemos trabalhar este processo de aceitação em que há coisas que se passam no mundo que escapam ao nosso controlo.
Como professor, considera que a florescente indústria da felicidade é uma ameaça para a ciência da felicidade?
Em primeiro lugar, é preciso distinguir, de forma clara, a ciência de um discurso “pop”. A ciência da felicidade é aquilo sobre o qual eu me interesso, e diz respeito a um conjunto de estudos sobre várias disciplinas, que tentam olhar para a explicação que justifica o bem-estar das pessoas. Por seu turno, a indústria da felicidade é algo completamente distinto e assenta em bens e serviços que são prestados às pessoas com a promessa de lhes trazer bem-estar e é muitas vezes usado um discurso de pensamento positivo, que frequentemente é leigo e tradicional, recorrendo a ideias e frases feitas. Na verdade, é desprovida de substância científica e caracteriza-se por fazer apelo a um certo sentido de curto prazo, de placebo até, em que as pessoas sentem um bem-estar momentâneo por terem ouvido uma palestra ou lido um livro de auto-ajuda. Só que nada disto tem efeitos sustentados e transformadores na vida das pessoas. Nao deixa de ser uma forma de populismo, porque tenta tornar simples uma coisa de muito difícil resolução.
Cara da Notícia
Economia, política e felicidade
Gabriel Leite Mota é o primeiro e único economista português doutorado em Economia da Felicidade (Faculdade de Economia da Universidade do Porto, 2010). Investiga as relações entre economia e felicidade desde 2004 e divulga e ensina a temática desde 2010. Participa em conferências internacionais sobre o tema desde 2005. Já lecionou na Católica Porto Business School, na Faculdade de Economia da Universidade do Porto, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (onde criou a primeira unidade curricular em Portugal sobre Economia, Política e Felicidade) e na Universidade da Madeira (onde criou a primeira disciplina de Economia da Felicidade numa licenciatura em economia, em Portugal). Atualmente, é professor de Economia no Instituto Superior de Serviço Social do Porto. Escreve regularmente na edição “online” da revista “Visão”.