«A Justiça é um bem de luxo para quem a ela precisa de recorrer, mas tem sido o parente pobre dos sucessivos governos do país». Quem o diz é Fernanda de Almeida Pinheiro, bastonária da Ordem dos Advogados, que considera ainda que «quando a Justiça tarda, a Justiça falha.» Sobre o desafio de atrair e reter talento, a líder dos advogados portugueses sustenta que há um longo caminho a percorrer, sustentando que um cenário de advogados bem remunerados, com trabalho em permanência e condições dignas, «só mesmo nas séries televisivas.»
«Porque a Justiça não é uma questão de sorte» foi o mote da campanha lançada recentemente pela OA. Esta é uma iniciativa para sensibilizar a população para o papel insubstituível dos advogados na defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos?
Exatamente. O anterior Governo decidiu, e mal, propor a alteração do estatuto da Ordem dos Advogados (AO) e a Lei dos Atos Próprios, uma alteração que coloca diretamente em causa todos os cidadãos/ãs, porque a advocacia está ao serviço de todos. Não podia a OA deixar de fazer recurso de ferramentas de comunicação que permitem alertar e consciencializar de modo rápido e eficaz toda a população. Trata-se de cumprir uma obrigação, um desígnio, de promover uma Justiça séria e célere, esclarecendo, o mais eficazmente possível, toda a população para as dificuldades que podem contribuir para a incerteza jurídica e social.
A procuradoria ilícita é uma das grandes ameaças com que se confronta a vossa profissão. Em que situações é a que a segurança jurídica pode ficar em causa sem o contributo dos advogados?
A OA chamou a atenção para essa perigosa ameaça com a alteração da Lei dos Atos Próprios dos advogados e solicitadores. Deixámos bem claro, designadamente na Assembleia da República, os perigos que as alterações representavam. A verdade é que alargando a prestação de serviços que até agora eram exclusivos da advocacia, a pessoas não qualificadas, abrimos uma “caixa de Pandora” cujo resultado não somos capazes de antever, mas será em prejuízo dos cidadãos/ãs e empresas. Na verdade, esses curiosos da advocacia não têm um seguro de responsabilidade civil que proteja os beneficiários dos seus serviços, nem têm regras deontológicas a respeitar, ao contrário do que assegura a OA através dos seus associados. Aguardamos que a nova configuração parlamentar e o novo Governo, saibam estar à altura desta enorme responsabilidade e possam corrigir o que deve ser corrigido. Em qualquer caso, a OA garantirá sempre a sua chancela de qualidade e segurança para todos os que recorrem aos serviços prestados por esta profissão. Tem sido assim ao longo de quase 100 anos da sua existência e assim será sempre. Esta é também uma garantia para a defesa da segurança jurídica das populações.
A OA e a Agência para a Integração Migrações e Asilo (AIMA) assinaram um protocolo no âmbito do processo de regularização dos títulos de residência por parte dos milhares de emigrantes que vivem no nosso país. A consultoria jurídica que os profissionais darão aos emigrantes pode acelerar a morosidade no processo de regularização destes cidadãos estrangeiros?
A AIMA está com enorme dificuldade e sem capacidade de resposta, em tempo útil, ao número de solicitações pendentes a que acrescem as muitas que recebe diariamente. Neste contexto, todos os contributos para assegurar a defesa dos direitos de todos os cidadãos que Portugal deve saber acolher, são obviamente úteis. A OA celebrou um protocolo com vista à concretização da prestação de serviços de natureza jurídica para apoiar e agilizar a instrução de processos, bem como, promover a formação e troca de experiências.
As notícias que vamos lendo nos jornais e vendo nos telejornais são preocupantes. A OA assinou o protocolo, no passado dia 5 de março, com a convicção de que a advocacia é a classe profissional que está capacitada para dar uma preciosa e sustentada colaboração para a normalização deste serviço. Resta agora a AIMA seguir em frente com todos os procedimentos necessários para pôr no terreno o que foi estabelecido entre as partes. Estranha-se que dada a urgência ainda não tenham sido dados passos concretos para a efetivação do protocolo.
A OA foi das organizações profissionais que contestaram, de forma mais veemente, o novo estatuto das ordens profissionais. Que principais alterações é que exige sejam feitas durante a presente legislatura?
É urgente e fundamental que se reverta esta situação. A OA esteve desde o início e em permanência, na defesa do seu estatuto. Não podemos permitir que se ponham em causa as prerrogativas da advocacia, que têm custódia constitucional! Ao colocar em causa as regras profissionais dos advogados/as, coloca-se em causa o Estado de Direito democrático. No passado a OA contou com o apoio do PSD, então na oposição, agora no governo do país, e esperamos ver coerência na discussão que queremos trazer de novo à colação.
Importa não ignorar que a liberdade e a autonomia são determinantes para que os advogados possam exercer as suas funções, e sim, falamos de liberdade e autonomia da advocacia quando falamos de alteração do estatuto e da Lei dos Atos Próprios. Aguardamos que rapidamente se coloque de novo esta temática em discussão, para a qual sempre quisemos contribuir, com propostas claras e de defesa das garantias e direitos de toda a população.
Já afirmou que temos «uma Justiça que para, por quase tudo e quase nada». Justiça que tarda é, necessariamente, justiça que falha?
O tempo da Justiça é muito importante. A espera não é justa e, deste modo, quando a justiça tarda, a justiça falha. Mas é importante perceber também que os tempos contam de modo diferenciado para quem aguarda uma decisão e para o sistema que procura, com justiça, decidir. Mas podemos dizer que há, sempre, muito a melhorar. A falta de recursos humanos e técnicos está na origem destas delongas da Justiça. É urgente dotar os operadores judiciários de condições para que a Justiça seja feita dentro de tempos “razoáveis”.
Nos últimos tempos, têm sido recorrentes os ataques ao sistema judicial vindos de vários quadrantes. O sistema de justiça é autoreformável ou a mudança terá de ser imposta, surgindo de um alargado consenso político?
Muitos dos agora atacam o sistema já legislaram, governaram, lideraram partidos e movimentos sem tomar ações concretas. Agora, sem sabermos bem com que base e legitimidade, alguns, querem ser ouvidos para efetuar uma reforma da Justiça. Mas então, porque não ouvir antes as instituições que representam aqueles que trabalham na Justiça, todos os dias? Esses e essas profissionais que lidam com os problemas reais da Justiça e que não se sobressaltam apenas com as notícias que aparecem nos meios de comunicação? Acreditamos que só ouvindo quem efetivamente tem conhecimento concreto sobre os assuntos em debate é que se poderá atingir uma mudança legislativa e paradigmática na Justiça, salvaguardando os interesses da sociedade e dos/as profissionais.
A OA realizou recentemente o seu Fórum da Advocacia, onde de forma sumária enunciou suas preocupações sobre a Justiça enquanto classe e apresentou-as ao Ministério da Justiça. Talvez seja o momento de se realizar um fórum da Justiça, onde todos os intervenientes devem ter assento e lugar, e de onde possam emergir medidas concretas que permitam alavancar a Justiça para o patamar de importância que ela merece e que é seu num Estado de Direito democrático.
O principal problema do sistema judicial reside na falta de investimento ou na deficiente organização e planeamento?
O investimento nos recursos (humanos e técnicos) é crucial. Contudo, a organização é muito determinante. Da conjugação destes dois vetores, resultará, seguramente, uma melhoria significativa. A Justiça é um bem de luxo para quem a ela precisa de recorrer, mas tem sido o parente pobre dos sucessivos governos do país. Este paradigma tem que ser alterado, não se pode esperar que, por exemplo, a advocacia continue a ser remunerada no âmbito do acesso ao direito com uma tabela de 2004, ou seja, com 20 anos. Há 20 anos atrás o Salário Mínimo Nacional (SMN) era de menos de metade do que é na atualidade.
Estamos a comemorar os 50 anos do 25 de abril. A Justiça é um dos pilares do Estado democrático e um dos sistemas que, aos olhos da sociedade, mais se tem degradado. Que políticas públicas considera urgentes adotar no sistema?
Quanto à advocacia entendemos que é urgente a revisão da tabela de honorários pagos no âmbito do sistema de acesso ao direito e aos tribunais. Este serviço público, garantido pela advocacia através do seu empenho e pela OA através do total financiamento da sua gestão, é de alta qualidade técnica e jurídica e tem taxas de satisfação acima dos 70%. Porventura, nenhum outro serviço público pode dizer o mesmo e, no entanto, a sua remuneração justa e adequada tarda. A atual tabela não pode fazer 20 anos. Seria insustentável.
Outro assunto que tem que ser revisto com urgência é a previdência da advocacia. A advocacia portuguesa não tem acesso à Segurança Social nos mesmos termos que qualquer outro trabalhador independente. Esta classe profissional não tem apoio na doença, na parentalidade e na quebra de rendimentos, o que num Estado de Direito democrático inserido no espaço europeu é inaceitável.
Quanto ao sistema no seu todo parece-nos essencial garantir o acesso de todos à Justiça e nessa medida é primordial encontrar uma forma de tornar as custas judiciais acessíveis. A OA já propôs um escalonamento da isenção das taxas de justiça, fazendo-o de forma gradual. Assim quem mais precisa teria uma isenção de 100% e outros cidadãos/ãs com mais recursos poderiam aceder a outras taxas como 70, 50 ou 25%.
Também consideramos essencial a realização de um Fórum da Justiça, à semelhança do que a OA realizou dentro de portas – Fórum da Advocacia – no sentido de sentar à mesma mesa todos os intervenientes da Justiça para que aqueles/as que todos os dias lidam com os problemas da Justiça possam através de uma comunicação estreita e recorrente propor e dinamizar a política da Justiça para que se encontrem soluções que ajudem a todos/as.
O início de carreira dos jovens advogados está longe de ser fácil, com dificuldades várias, nomeadamente em termos de aceder a direitos contratuais. O que é que a OA está a fazer para mitigar esta precariedade? O Instituto de Apoio aos Jovens Advogados (IAJA) é uma iniciativa nesse sentido?
Este conselho geral tem uma enorme preocupação com aqueles que escolhem esta profissão e que a ela acedem. Nessa senda diminuímos o pagamento das taxas de inscrição em cerca de 40% para que ninguém deixe de ser advogado/a por questões financeiras. Temos enormes preocupações com as alterações introduzidas no estágio e contestamos que se possa aprender a profissão de advogado/a em 12 meses e que a obrigatoriedade de pagamento do estágio tenha os efeitos que o governo anterior previa de maior acesso à profissão.
Este conselho geral tem alertado também para a falta de direitos sociais existentes na profissão, o que prejudica sobretudo os mais jovens, que necessitam de apoio para poderem constituir as suas famílias, bem como iremos propor a regulamentação das relações laborais entre advogados, no sentido de serem respeitados os direitos dos advogados/as garantindo que estes não podem ser dispensados de um dia para o outro sem qualquer direito.
O IAJA trabalha de forma estreita com o conselho geral, dando o seu “input” nestas matérias.
A OA representa cerca de 36 mil profissionais. No mundo laboral fala-se permanentemente de atrair e reter talento. A advocacia também se debate com estes desafios?
Em bom rigor, podemos dizer que a advocacia continua a despertar interesse e ser motivação profissional para muitos jovens. Mas convém não romancear em demasia esta nossa profissão. A ficção das séries de televisão está muito longe da realidade e, sobretudo, da realidade portuguesa.
Estão inscritos na OA cerca de 36 mil advogados/as, a maioria são mulheres e cerca de 85% exerce em prática individual. O cenário de advogados bem remunerados, com trabalho em permanência e condições dignas, é mesmo um cenário de série televisiva. Em Portugal, os advogados não têm um sistema de previdência que os apoie de igual modo que qualquer outro trabalhador quando está doente, sem trabalho ou quando pretende exercer os seus direitos de parentalidade/maternidade.
Os advogados são obrigados a descontar para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) independentemente da receita auferida. Mas apesar de tudo isto, esta é uma profissão apaixonante, de serviço e dedicação ao outro, na busca de uma vida mais justa para todos.
Todavia, sem esquecer as dificuldades desta nobre profissão, o futuro está assegurado, e não é um lugar-comum é uma certeza, no talento dos jovens advogados e na sua energia inovadora para ultrapassar os obstáculos que cada era impõe. Os novos desafios, com destaque para a aplicação da Inteligência Artificial na área da Justiça, oferecem também a expetativa de um futuro promissor para a advocacia. No momento em que OA se encontra (perto de celebrar os seus 100 anos de existência), esta é uma garantia que o futuro será sempre uma causa ganha. A advocacia é, sem dúvida, uma profissão de talentos.
A CARA DA NOTÍCIA
A terceira mulher bastonária dos advogados
Fernanda de Almeida Pinheiro tomou posse como bastonária da OA, a terceira mulher a ascender a este cargo, no dia 9 de janeiro de 2023, após ter vencido uma luta eleitoral muito concorrida com sete candidatos. É licenciada em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa, na área de Ciências Jurídicas, curso de 1994-1999. Tem inscrição ativa desde agosto de 2002, tendo exercido a profissão como advogada de empresa entre 2002 e 2007 e como diretora de recursos humanos, junto de sociedades da área das Tecnologias de Informação. É advogada em prática individual na comarca de Lisboa, desde junho de 2008, encontrando-se inscrita no Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais, desde 2010. Foi formadora certificada nas áreas de Direito Laboral e Gestão Administrativa de Recursos Humanos desde 2008 e também formadora no Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados desde 2021. Foi vogal do IAD – Instituto do Acesso ao Direito da AO, entre junho de 2011 e maio de 2012 e vice-Presidente do IAPI – Instituto do Advogado em Prática Individual da OA, entre outubro 2014 e dezembro de 2016. É comentadora-residente do novo canal de informação do grupo MediaLivre, o Now, para além de ter uma coluna de opinião regular no «Correio da Manhã». À margem da justiça, escreve poesia e considera-se feminista.