Portugal é um país com crónicos problemas estruturais e em muitos domínios continua a fazer «omeletes sem ovos». O professor e economista Pedro Brinca acredita, contudo, que podíamos «exportar educação de uma forma brutal.» Sobre a progressão, a alta velocidade, da Inteligência Artificial vislumbra muitas vantagens, mas também admite que «a tecnologia conduza a uma polarização de rendimentos, ao aumento de tensões e a desigualdades.»
A economia portuguesa tem apresentado, até ao momento, bons resultados. Está surpreendido?
O primeiro trimestre foi extraordinário. Surpreendeu tudo e todos, por larga margem. E o crescimento económico deveu-se, fundamentalmente, a dois fatores: dados do turismo mais robustos e uma grande melhoria dos termos de troca. Este último fator tem outro nome, que é…quebra dos preços da energia. Estes dois fatores têm a particularidade de serem conjunturais: o turismo está dependente das modas internacionais e não controlamos os preços da energia. Contudo, os ventos não auguram um crescimento comparável no segundo trimestre, até porque existem indicadores que apontam para uma deterioração das condições económicas. E o problema é que se anda aqui, aos altos e baixos, ao sabor da conjuntura.
Pretende dizer que este é um crescimento económico com escassa base de sustentação?
Portugal tem um conjunto de problemas relacionados com a sua estrutura e não com a conjuntura. Costumo dizer, na brincadeira, que para além de termos sido campeões da Europa de futebol, em 2016, ainda somos, em toda a União Europeia, o país com a maior percentagem de força de trabalho sem o ensino secundário completo. E lideramos noutros «campeonatos», como nos atrasos dos pagamentos do Estado às nossas empresas e na morosidade relacionada com os processos fiscais e administrativos. Mas o problema de Portugal em termos de qualificação reside não apenas nos seus trabalhadores, mas também nos seus gestores. Apenas metade dos gestores em Portugal tem formação superior. Nos Estados Unidos são 75 por cento. Isto são apenas alguns exemplos, mas são diversos os problemas estruturais que teimamos em ignorar. Já para não falar que somos um país pobre, com impostos de rico. Enquanto isso, os problemas não se resolvem e preferimos viver agarrados à espuma dos dias e entretidos à espera do próximo circo mediático.
A dívida ainda é um grande “calcanhar de Aquiles”?
O grosso da dívida está a aumentar, mas não há nenhum problema com isso se o crescimento da economia for superior ao crescimento da dívida. Se for essa a tendência, a dívida tornar-se-á cada vez mais irrelevante. O problema não são os tempos bons. São os menos bons. Acredito que o verdadeiro teste de fogo à sustentabilidade das finanças públicas só acontecerá quando o crescimento económico português abrandar para valores mais normais. Quero recordar que crescemos 6,7 por cento em termos reais, em 2022, não obstante, tivemos um défice…
O governo «foge como o diabo da cruz» quando lhe falam em diminuir impostos. Mesmo num cenário que requer disciplina, haveria margem para isso?
Há duas formas de baixar impostos às famílias e às empresas: ou é sustentada por uma redução da despesa ou é sustentada por dívida. No primeiro caso não tenho visto que isso aconteça, pelo contrário. No segundo exemplo, volto a recordar que entre 1998 e 2011 experimentámos o modelo de quebra da receita financiada por dívida e acabámos por bater de frente com um comboio. Ou seja, chocámos de frente com a realidade. Não correu bem. Se tivéssemos um superávite até podíamos aliviar fiscalmente empresas e famílias. Mas onde é que ele está? Enquanto não temos condições para tal, creio que devíamos aumentar a nossa competitividade fiscal, precisamente por estarmos integrados num mercado único, com uma tremenda mobilidade dos fatores trabalho e capital. Portugal perdeu, na última década, 194 mil licenciados que emigraram. Cada licenciado custa quase 100 mil euros a formar. Se fizermos estas continhas, perfaz a quantia de 18 mil milhões de euros que perdemos a formar pessoas que foram para fora, criando receita fiscal e valor acrescentado noutros países, que concorrem connosco. Isto para além de nos tirar competitividade na economia, contribui com um sério problema na sustentabilidade da Segurança Social.
Para os jovens mais capazes e com maior cultura de risco, Portugal é cada vez mais um país que “convida” a emigrar?
Sim, o ambiente económico no nosso país não é famoso e, fundamentalmente, não potencia a criação de valor. Isto para além de não conseguirmos ter uma trajetória de convergência social, aproximando o nível de vida dos nossos compatriotas com os restantes cidadãos da União Europeia. Os jovens saem para o exterior para auferirem duas ou três vezes mais. Ponto final.
Nesta lógica de atrair e reter talento e fazendo um paralelo com o mercado do futebol somos, cada vez mais, um país exportador?
Somos um país exportador e que muitas vezes faz omoletes sem ovos. Então vou dar o seguinte exemplo, para que se perceba: o financiamento público que o Imperial College, uma das várias universidades públicas existentes em Londres, no Reino Unido, recebe é igual a todo o financiamento público que o ensino superior em Portugal tem. Permita-me que dê outro exemplo eloquente: a propósito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que é um programa económico com uma magnitude que só é comparável ao período em que o ouro vinha do Brasil, entregámos a sua gestão a… um engenheiro de minas. Tenho admiração pessoal pelo ministro da Economia, António Costa Silva, mas não consigo atingir. Entendo que para muitos a economia portuguesa é um buraco, mas sinceramente isto foi levar a metáfora longe demais. Isto quando tínhamos pessoas de grande mérito ligadas à comunidade científica portuguesa e que ao longo da sua carreira identificaram os grandes problemas estruturais do país – na inovação, nas empresas, no mercado de trabalho e no ensino superior – e que foram olimpicamente ignoradas. E depois entregamos a gestão de 20 mil milhões de euros a um engenheiro de minas…
Este PRR é uma oportunidade perdida?
Digo de outra forma. É uma oportunidade que podia ter sido muito melhor ganha. Não vejo o PRR a atacar os problemas estruturais do país. É trágico.
Falta uma estratégia e um rumo?
Quer exemplo melhor do que o novo aeroporto de Lisboa que está a ser discutido desde 1958? No essencial, falta planeamento e avaliação prospetiva das políticas. Mas para ilustrar melhor, dou um exemplo pessoal. O governo criou uma unidade de planeamento destas propostas. Só que não consegue ter quadros próprios para cobrir todas as áreas de especialização. O que fizeram? Abriram um concurso para uma bolsa de peritos. Como tenho trabalhado bastante em políticas públicas, concorri. O processo prolongou-se por um ano. Um dia, recebi um email a felicitar-me por ter sido selecionado. Passado três dias recebi outra mensagem a informar-me que o concurso tinha sido anulado por um erro administrativo. Resultado: o concurso ia ser reaberto e começaria do zero. Isto atinge um nível de inimputabilidade que é assustador. Não há políticas que resistam!
Abordando agora o ensino superior. A ligação entre os centros de saber e o tecido empresarial está com uma melhor coordenação, relativamente aos diplomados e às necessidades do mercado laboral?
Acho que não estamos mal na produção de competências que os mercados de trabalho têm pedido. Mas havia muito caminho a avançar na questão de incentivos. Falta às universidades desenvolverem esquemas de avaliação e incentivos que permitam às pessoas estarem empenhadas na criação de soluções e de valor. E o grosso das universidades públicas sofre muito dessa maleita. Subsistem obstáculos a que prospere o empreendedorismo organizacional que conduza à inovação e a um maior dinamismo da maior parte das universidades. Os incentivos aos professores continuam sem estar alinhados com as necessidades do país. Portugal podia exportar educação de forma brutal. Fazemos isso na Nova SBE e somos extraordinariamente bem-sucedidos. A maior parte dos nossos alunos de mestrado são estrangeiros. Temos condições extraordinárias em diversas vertentes. Porque não replicar esse modelo? E há problemas nas universidades que têm de ser rapidamente acautelados. A bolha demográfica vai contaminar rapidamente as universidades. Especialmente, e para começar, as universidades do interior. As instituições de referência só mais tarde serão impactadas.
O aumento das taxas de juro tem sido a principal dor de cabeça dos portugueses, especialmente desde a guerra na Ucrânia. As taxas a um nível alto estão para durar?
O Banco Central Europeu (BCE) aumenta as taxas de juro para tirar poder de compra às empresas, às famílias e aos Estados. O dinheiro fica mais caro e incentiva-se à poupança. A inflação existe porque a capacidade de a economia produzir bens e serviços está abaixo da capacidade da economia de os comprar. É isto que leva a que os preços subam. E assim continuará enquanto o fosso existir. O pico das taxas de juro ainda permanece em aberto, mas em economia tudo muda muito rápido.
Um estudo internacional realizado o ano passado, da autoria dos investigadores Leora Klapper e Annamaria Lusardi, coloca Portugal na “lanterna vermelha” em termos de literacia financeira. Os portugueses têm um défice de conhecimento para tomar decisões financeiras informadas e responsáveis?
O ensino obrigatório tem, entre outras, como função capacitar os indivíduos a exercerem a sua cidadania de uma forma consciente e responsável. Mas os programas escolares do ensino obrigatório têm hoje tanto conteúdo de literacia financeira quanto tinham em 1956 quando a quarta classe passou a ser obrigatória: zero. Se eu não sei o que é um “spread”, um indexante, se não percebo a dinâmica de um cartão de crédito ou o conceito de taxa de esforço, há algo de errado. Parece existir uma aversão a introduzir temas financeiros no ensino secundário. Será que isto não é tão ou mais importante do que saber as linhas de caminho de ferro, o nome dos rios ou os reis de Portugal?
Para finalizar, abordamos agora um tema de grande atualidade e que divide otimistas e catastrofistas. Como é que perspetiva a veloz progressão da Inteligência Artificial (IA)?
Os efeitos disruptivos da tecnologia nas relações laborais e nos mercados de trabalho é um tema que não é novo. Vem desde o século XVIII quando se criou o primeiro tear mecânico. O inventor teve de fugir porque os trabalhadores, prevendo que o seu posto de trabalho estava em risco, foram atrás dele para lhe vandalizar a casa. A velocidade que este processo da IA está a tomar é que leva a relançar a discussão. É evidente que há tarefas rotineiras que serão substituídas por máquinas. Por exemplo, uma pessoa numa linha de montagem a apertar um parafuso rapidamente é substituída por um braço mecânico. O caso dos médicos também é interessante. Um diagnóstico médico é uma deteção de padrão. Feito por um médico de carne e osso. Por sua vez, o computador tem uma base de dados com biliões de casos. Provavelmente, o diagnóstico que sairá daqui será mais robusto. Não estou com isto a dizer que os médicos vão ser substituídos pelas máquinas no diagnóstico, mas se calhar vão ser precisos menos clínicos para esta tarefa, libertando-os para criar mais valor noutras atividades. Noutra perspetiva, o ChatGPT demonstra que fazer, atualmente, um texto coerente do ponto de vista de articulação é uma capacidade que já não é exclusiva do ser humano. Contudo, o ser humano continuará a ter um papel insubstituível na análise crítica sobre esse mesmo texto.
Em resumo, não diaboliza nem demoniza a IA?
A redefinição das competências exclusivamente humanas é um processo que ciclicamente tem acontecido nos últimos 300 anos. Sempre houve ganhadores e perdedores. Admito que a tecnologia conduza à polarização de rendimentos e ao aumento de desigualdades, o que pode ser uma importante fonte de tensão, com fortes repercussões políticas.
A CARA DA NOTÍCIA
O «explicador» de economia
Pedro Brinca nasceu em Cascais, em 1979, mas tem raízes na Beira Alta. Professor associado de Macroeconomia na Nova SBE desde 2015, tem publicado em revistas científicas como o “Journal of Monetary Economics” e o “Journal of Economic Dynamics and Control”, tendo também contribuído para a segunda edição do “Handbook of Macroeconomics”, com um capítulo acerca de ciclos económicos. Atualmente, é professor convidado da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Antes de se juntar à Nova SBE, foi aluno visitante na Universidade do Minnesota (EUA), interno de investigação no Banco Central Europeu, professor auxiliar na Universidade de Estocolmo e investigador no Robert Schuman Center for Advanced Studies, do Instituto Universitário Europeu. É licenciado, mestre e doutor em Economia pela Universidade de Estocolmo. Escreve regularmente no «Jornal de Negócios», na rubrica “A mão visível”, e é presença assídua nos canais televisivos de informação para comentar temas relacionados com a economia nacional e internacional.