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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Irene Flunser Pimentel, historiadora ‘Os inimigos da democracia estão entre nós’

23-05-2023

A Investigadora especializada no período do Estado Novo não tem o antídoto contra o avanço populista, em Portugal e no resto do mundo, mas deixa conselhos. Irene Flunser Pimentel defende um «cordão ético e sanitário» no Parlamento e a «moralização e reforma» dos partidos políticos. Na área do ensino, argumenta, convictamente, que as disciplinas de História e Filosofia devem ser lecionadas, transversalmente, até ao final da escolaridade obrigatória.

Entrámos no ano que antecede as comemorações do redondo número de 50 anos da revolução do 25 de abril. Que balanço faz deste quase meio século de regime democrático em termos de avanços?
Registaram-se muitas conquistas. O país mudou muito. Provavelmente, tarde ou cedo, seríamos um regime democrático. Mas o 25 de abril permitiu, de forma acelerada, trazer muitas modificações em Portugal, como a introdução da democracia, com as suas imperfeições – aliás, considero que as democracias são todas imperfeitas – a liberdade de expressão, a liberdade de associação, a liberdade de pensamento, etc. Aproveitando o público a que este jornal se dirige, permita-me salientar que a revolução possibilitou uma democratização da educação. É preciso não esquecer que a instrução antes do 25 de abril não era pensada no sentido de haver uma grande mobilidade social. Nos 48 anos de ditadura, tendo o salazarismo marcado, indelevelmente, o país em termos educativos, praticamente “só” se exigia que os portugueses soubessem ler, escrever e fazer algumas contas. Com a agravante de o Estado Novo ter reduzido um ano de ensino, da quarta para a terceira classe. Até ao marcelismo pode dizer-se que o se pretendia era que os portugueses fossem para escolas técnicas – comerciais ou industriais – depois da quarta classe. Evidentemente que depois houve um aumento da escolaridade obrigatória, mas o liceu não era destinado à população em geral, mas sim destinado a formar filhos das pessoas da elite, que depois seguiriam o seu percurso para a faculdade. A talhe de foice, deixe-me dizer-lhe que lamento que, posteriormente ao Estado Novo, já em democracia, nunca se tenha feito a devida aposta nas escolas técnicas, muito por causa destes estabelecimentos de ensino terem «colado» o estigma de não promoverem a mobilidade social. Em qualquer país democrático estas escolas técnicas são necessárias.

E que outros aspetos gostaria de destacar também como positivos?
A situação das mulheres, desde logo na lei. Quero recordar que antes da revolução o Código Civil considerava que o homem era o chefe de família, a quem a mulher e os filhos deviam obediência. E as mulheres, mesmo trabalhando fora do lar, tinham de se encarregar do trabalho doméstico. A reforma do Código Civil e a eliminação das desigualdades no seio dos cônjuges foi importantíssima. A realização de eleições justas e livres e o voto universal foram outras novidades, sem esquecer, claro está, o Estado Social.

Os mais jovens, que não vivenciaram a transição para a democracia, deviam ter mais conhecimento sobre o antes e o depois da «revolução dos cravos»?
Vou, com muita frequência, às escolas. Aliás, é dos locais onde mais gosto de intervir e de partilhar o meu conhecimento. E nessas minhas visitas constato que há muito desconhecimento sobre este período tão marcante da História de Portugal. Por isso, defendo que, sobretudo, a partir do 9.º ano, os jovens aprendam um pouco mais sobre a nossa história recente, nacional e internacional. Ontem, estive numa escola de São Martinho do Porto e constatei que uma turma de alunos do 12.º ano chegou a ser menos interveniente do que várias turmas do 9.º ano com quem tive oportunidade de estar. A História tem sido muito desvalorizada na política educativa. Aliás, sou completamente defensora que as disciplinas de Filosofia e de História devam ser lecionadas até ao fim do 12.º ano de escolaridade. Isto devia ser válido também para os que seguem uma via de ensino diferente. Se assim não for, o desconhecimento vai continuar a dominar e existirá, de certeza forma, uma incapacidade de encarar a cronologia. Já tivemos uma fase em que só se dava importância às datas históricas. Mais tarde, o foco passou a incidir sobre as grandes estruturas e conjunturas analisadas sob o ponto de vista económico, social e político. Na verdade, entendo que falta muito o lado de contar histórias nos manuais de História. Normalmente, nas escolas pergunto: «Gostam de História?»…

E que respostas obtém?
Invariavelmente, são muito poucos os que levantam a mão. Mas quando pergunto «se gostam de histórias», a reação já é distinta…

O apelo que faz para que se intensifique o ensino da Filosofia surge pelo facto de vivermos numa sociedade apressada e que perdeu tempo para parar e pensar?
Sem dúvida. Frequentei o Liceu Francês, em Lisboa, e recordo-me que tínhamos muitas horas de Filosofia e de História, disciplinas que também eram lecionadas aos que seguiam matemáticas ou ciências biológicas. O Latim também ajudava a pensar. Não diria que, na atualidade, se devia reintroduzir o Latim, mas estou em crer que poderia ajudar, até pela via da lógica, na interpretação de textos, da língua e da linguagem. Na História e na Filosofia insiste-se no “empinar”, puro e simples, quando é fundamental perceber e interpretar como as coisas aconteceram.

«Se aconteceu, pode voltar a acontecer», a frase é de Primo Levi, um sobrevivente de Auschwitz. É importante aprendermos com a História, para que tragédias como esta não se repitam?
O processo que levou ao Holocausto não começou em 1933 com a chegada de Hitler ao poder, mas a partir da segunda metade do ano de 1941. Este processo aconteceu por etapas, até se chegar ao genocídio. Na minha opinião, a História repete-se, mas não se repete da mesma maneira. As personalidades, as figuras e as épocas acabam sempre por moldar os acontecimentos. A ambição, a inveja e a tendência para adquirir bens são características quase sempre presentes, o que leva a que as consequências dos atos sejam iguais ou muito parecidas. Nesse sentido, julgo ser fundamental conhecer a História. O conhecimento da História é benéfico até para consolidar a transição e a solidariedade entre gerações.

Como grande investigadora do Estado Novo e da sua polícia política, declarou que «a PIDE deixou marcas difíceis de apagar». Que resquícios do período do Estado Novo subsistem na atualidade nas idiossincrasias do nosso povo e na própria lógica de funcionamento das instituições?
Não é uma pergunta a que se possa dar uma resposta completamente objetiva. De qualquer forma, escrevi, recentemente, um livro chamado «Os informadores da PIDE», e é neste ponto que acredito possam subsistir alguns resquícios. Logo após o 25 de abril houve uma diabolização do antigo regime, nomeadamente da censura e da polícia política. A PIDE ficou como o paradigma desse período da História portuguesa. Já sobre o papel dos informadores, foi algo varrido para debaixo do tapete. O que é compreensível, na medida em que os informadores são, porventura, o aspeto mais terrível da nossa ditadura, por serem vistos como traidores do povo. Muito recentemente tivemos, durante a pandemia de covid-19, denúncias relacionadas com pessoas infetadas que não estavam a cumprir as diretrizes da direção-geral de saúde. É esta lógica de delação que, aqui e ali, ainda vai perdurando na nossa sociedade. A delação é sempre movida pelas ditaduras e para que não exista delação é preciso aprofundar a democracia. Não vejo outra alternativa. Denúncias com sentido cívico sim, estou de acordo, agora denúncias com o intuito de prejudicar o outro e para aproveitamento próprio devem ser energicamente condenadas. Em Portugal temos alguma reserva em abordar a moral e a ética, quando estes pilares são absolutamente fundamentais, visto que são eles que nos regulam.

«Não estamos livres de ter outra vez ditaduras, mesmo em Portugal», é uma mensagem que costuma deixar, em várias intervenções públicas, inclusive nas escolas. Os inimigos da democracia estão entre nós?
Sim, os inimigos da democracia estão entre nós. Quero recordar que Hitler e Mussolini foram ambos nomeados pelas elites para liderar os respetivos países, pensando estas que os iriam ter sob controlo. Foi exatamente o contrário. As elites ficaram sob controlo de Hitler e Mussolini, acabando por transformar, em muito pouco tempo, ambos os países, em duas ditaduras. Isso aconteceu na primeira metade do século passado e pode repetir-se. Atualmente, os candidatos a tiranos ou a ditadores, estão a utilizar o populismo, servindo-se das instituições da democracia para se instalarem no poder. Mas isso não é novo. Já aconteceu nos anos 30 e 40 do século XX.

Mas quais são os fatores que levam a que o populismo atraia tantos seguidores?
O populismo é um meio de atuar e de tomar o poder, mas não nasceu agora. O termo da ciência política existe desde o século XIX, da esquerda à direita, dos Estados Unidos à Rússia czarista. A estratégia é conhecida e passa por arranjar inimigos: elites, ciganos, judeus, etc. Estes populistas afirmam-se como representantes do povo, de uma forma geral, homogeneizando toda uma população, que é muito distinta entre si. O que é novo desde o fim da II Guerra Mundial é justamente o estrondoso – e terrível, acrescento eu – sucesso que estes partidos e grupos populistas estão a granjear. Exemplo eloquente disso são as vitórias em países como os Estados Unidos, o Brasil ou a Hungria.

O populismo de extrema-direita demorou a chegar até ao nosso país, mas já se instalou e tem um rosto: André ventura e o CHEGA. É defensora da «normalização» desse partido?
Não. Fiquei pasmada quando o Tribunal Constitucional decidiu aceitar a inscrição deste partido político e creio não ter feito um esforço para tentar perceber melhor o que estava em preparação. Já sabia o que vinha dali. As pistas eram muitas: desde o conhecimento da própria História, até ao que se passava em outras latitudes, no presente. O CHEGA é a cópia do que já acontece em muitos locais, cavalgando o descontentamento das populações e aproveitando-se da sucessão de crises. Desde que obteve representação parlamentar, esse partido tem feito de tudo para denegrir a própria Assembleia da República, ridicularizando e fazendo um circo numa das instituições fundamentais da própria democracia.

Tem algum antídoto para combater as práticas populistas?
Não tenho nenhuma solução para combater o populismo, que ganhou novo impulso, aproximadamente em 2008 com a crise financeira, pelo menos com efeitos práticos imediatos. O mesmo se passa com a crise do sistema parlamentar liberal que não está a conseguir ser invertida. É preciso reconhecer que o combate é difícil. Para já, devia impor-se, um cordão sanitário e ético no Parlamento. Devíamos aprender com o que se passa noutros países europeus, como a Alemanha. Ainda assim, reconheço a dificuldade, porque estes populistas, fiéis à máxima «falem bem ou falem mal, o importante é que falem de nós», conseguem com esta estratégia reunir mais simpatizantes. Perante isto, só nos resta espalhar e ampliar os valores democráticos e procurar passar a mensagem que as ditaduras têm na sua essência a corrupção. Os investigadores da História Contemporânea, onde me incluo, não estudaram em profundidade a corrupção que existiu no Estado Novo. E é lacuna que explica que se oiça, frequentemente, que «no Estado Novo é que era bom porque não havia corrupção» e até havia um senhor em S. Bento que nunca enriqueceu, que tinha galinhas e vendia os ovos.

Fica apreensiva com a possibilidade de um partido como o CHEGA integrar um governo nacional ou ter acordos de incidência parlamentar caso, previsivelmente, o PSD atinja a liderança dos destinos do país?
Claro que sim. Aliás, já existe a experiência recente na Região Autónoma dos Açores e, até à data, não tem corrido bem. Qualquer partido democrático que queira chegar ao poder já deve ter feito as suas contas para, em coligação ou de outra forma, associar-se ao CHEGA e, assim, formar um governo maioritário. Devia existir a coragem de dizer, com frontalidade, «com estes não!».

A crise de representatividade dos partidos, especialmente os do chamado arco da governação, é evidente. É defensora da reforma da sua lógica de funcionamento e intervenção?
Os partidos têm de ser todos moralizados e reformados, reaproximando-se das populações que lhes confiaram o voto. Se nada se fizer, as taxas de abstenção serão cada vez maiores. Aos partidos só podemos exigir transparência, ética e que, se for o caso, governem bem.

O avançar destes movimentos populistas demonstra que existe uma quebra na qualidade das elites políticas no país?
Sim, mas não é só cá. As elites não se dão ao respeito, mas o que acontece é que precisamos de elites com sentido de ética e de serviço público. O serviço público não pode ser um sacrifício. Dou-lhe um exemplo concreto de mais uma vitória do populismo: a dificuldade dos governos em recrutarem para cargos de serviço público pessoas competentes e eticamente irrepreensíveis. Ir para a política ou pertencer a uma elite, nos dias que correm, é meio caminho andado para acabar no pelourinho. Sinceramente, acho que nomeadamente a comunicação social devia escrutinar e investigar o legado que os populistas, de extrema-direita e também de extrema-esquerda, deixaram durante o período em que governaram. Basta ver, por exemplo, o que se passou durante a administração Trump e a presidência de Bolsonaro.

A radicalização da vida política e social tem nas redes sociais o seu espaço de maior atrito. Um espaço dito de liberdade tornou-se um local mal frequentado, terreno fértil para o ódio e a intolerância. Quem é que regula as redes?
Não há uma intermediação e, por exemplo, não sabemos como é que os algoritmos são controlados. Na verdade, as redes sociais são um grande instrumento de qualquer populista que se preze. Muitas pessoas informam-se cada vez mais nas redes sociais, até porque os jornais, televisivos e em papel, perderam interesse e atratividade. Para além disso os órgãos de comunicação social estão na posse de cada vez menos pessoas. Isso é um problema para qualquer democracia, a começar pela portuguesa, e que dá força aos movimentos populistas. Como me sinto impotente para lutar contra isto, procuro manter a televisão desligada. Há semanas a fio que o computador do ex-adjunto do ministro não sai da abertura dos telejornais. O que é que isso me interessa? A comunicação social em Portugal começou a nivelar por baixo e agora é difícil fazer diferente.

Após muitos desacertos, o projeto europeu parece ter recuperado o fôlego e a articulação, primeiro com a pandemia e agora com a guerra da Ucrânia. Esta é, finalmente, uma boa notícia, também para Portugal?
É também do sucesso do projeto europeu de que dependerá a progressão ou o retrocesso dos movimentos populistas. Como mencionou, a União Europeia (UE) esteve bem durante a crise pandémica e também na resposta, em uníssono, em favor da Ucrânia. Sou completamente favorável à ajuda militar à Ucrânia neste conflito de ocupação em pleno continente europeu. Mais uma vez, a História está a repetir-se. Esta é uma estratégia de Putin de regresso ao imperialismo da União Soviética. Creio que a Rússia estará a contar que a fadiga da guerra faça os países aliados esmorecerem no apoio concedido aos ucranianos.

Mudamos de temática. Como historiadora, como comenta a tendência para rasurar e reescrever livros que marcaram uma época, com as editoras a contratarem os chamados «leitores de sensibilidade?
Acho inenarrável que se reescreva, só para dar alguns exemplos, as obras da Agatha Christie ou da Enid Blyton. Isso é uma característica do totalitarismo dos pequenos poderes. São “elites” que encaram o resto das pessoas como uma cambada de ignorantes e atrasados mentais. Já agora, aproveito para referir que sou contra o identitarismo antirracista, porque acredito que o racismo tem de ser combatido pelo grosso da população, contra todo o tipo de minorias, sejam ciganos, negros ou asiáticos.

Nos últimos meses têm vindo a lume vários casos de assédio sexual, profissional, moral e mental, perpetrados por pessoas em lugares de poder, visando, sobretudo, mulheres. Como pessoa atenta e com intervenção pública nas questões de género, como reage a esta espécie de movimento «Me Too» à portuguesa?
O «Me Too» à portuguesa irrita-me bastante porque é uma cópia sem originalidade nenhuma e não está adaptada à nossa própria sociedade. A sociedade é patriarcal e os homens estão, de uma forma geral, no poder, mas é preciso sublinhar que também há assédio feminino a homens. As instituições têm de estar muito atentas a estes fenómenos. A Justiça tem a particularidade de ser o elo mais fraco e o parente pobre da democracia portuguesa, nomeadamente pela sua morosidade. Outro aspeto que julgo ser relevante diz respeito à educação e qualificação dos juízes. Tal parece-me fundamental, uma vez que verifico que há uma mingua de formação nos magistrados. Temos tido conhecimento de acórdãos aberrantes que absolvem e toleram casos de violência doméstica, por exemplo. Creio que este é um sinal inquietante de que a Justiça, e em particular a independência dos juízes, está em roda livre, o que não é aceitável.

 

Cara da Notícia

Distinguida com o Prémio Pessoa

Irene Flunser Pimentel nasceu, em Lisboa, a 2 de maio de 1950. Como historiadora tem-se dedicado ao estudo do período contemporâneo de Portugal, especialmente da PIDE e do Estado Novo. Mestre em História Contemporânea (século XX) e doutorada em História Institucional e Política Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). Investigadora do Instituto de História Contemporânea da FCSH-UNL é autora de diversos livros aclamados pela crítica. Entre os quais: «História das organizações femininas do Estado Novo», «Em Fuga de Hitler e do Holocausto», «A história da PIDE» e «Holocausto», este último vencedor do Prémio Fundação Calouste Gulbenkian, na categoria «História da Europa», em 2021. Foi distinguida com o prestigiado Prémio Pessoa, em 2007, e com o Prémio Seeds of Science, na categoria «Ciências Sociais e Humanas», em 2009. Em 2015, foi condecorada com a Ordem Nacional da Legião de Honra pelo governo francês.

Nuno Dias da Silva
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