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Teresa Paiva, neurologista Dormir mal sai caro à saúde das pessoas e das empresas

23-05-2023

Teresa Paiva é uma das maiores especialistas da medicina do sono. A neurologista e investigadora considera que dormir mal sai caro à saúde das pessoas, mas também à produtividade das empresas e à economia dos países.

O sono é considerado o terceiro pilar da Saúde. Da sua experiência clínica, como avalia o sono dos portugueses, a nível qualitativo e quantitativo?
Não é uma resposta linear. Há uma cultura baseada no “stress” e no trabalho que é pouco inteligente e claramente contra o sono. As pessoas “stressadas” e que trabalham em demasia não podem dormir bem. A lógica em que vivemos é completamente estúpida – tudo tem de ser feito no momento, sem planeamento, respondemos a todas as solicitações que nos chegam e usamos e abusamos de fazer múltiplas funções ao mesmo tempo. Os aspetos inteligentes relacionados com a racionalização do trabalho e a organização do quotidiano das pessoas são pura e simplesmente ignorados. A outra dimensão da cultura contra o sono reside no uso abusivo e permanente dos chamados “gadgets”, extensível a praticamente toda a gente, mas muito especialmente aos mais jovens. Os ecrãs, seja do telemóvel, do “tablet” ou da televisão, são os chamados «ladrões do sono», porque roubam-nos tempo de descanso.

A quem deve recorrer quem tem problemas de privação do sono?
Em Portugal, existe uma centena de pessoas certificadas pela Ordem dos Médicos para tratar dos problemas do sono e a Ordem dos Psicólogos está a ponderar certificar a psicologia do sono. Não é suficiente, mas já é alguma coisa. Há imensos laboratórios do sono, muitas vezes mais especializados num fator ou noutro. Entendo que o sono é um problema multidisciplinar e que só é possível ser tratado por especialistas, em trabalho colaborativo e em equipa, sejam psicólogos, neurologistas, nutricionistas, etc.

O nosso modo de vida condiciona, fortemente, a qualidade do sono. Que consequências pode, por exemplo, a privação do sono ter em termos mentais, físicos e, já agora, em termos de custos para os países?
Dormir mal sai caro a muita gente. A começar pela própria pessoa, com consequências nas capacidades cognitivas e emocionais, ao nível da memória, concentração e também consequências físicas, podendo ser causador, entre outras maleitas, do cancro e doenças cardio e cérebro-vasculares. Isto para além de aumentar o risco de doenças cognitivas, como é o caso da demência. Potencia os conflitos e os atritos, e os riscos de insónia e depressão. Pode ainda contribuir para o aumento de peso e para diabetes. O dormir pouco comporta ainda riscos para a sociedade e para as empresas. Uma empresa que empregue pessoas sempre “stressadas” e a dormir pouco não pode funcionar bem. O coletivo não vai funcionar bem. Potencia ainda o presenteísmo e o absentismo. No primeiro os trabalhadores estão na empresa, mas pouco ou nada fazem e no segundo caso estão de baixa por doença.

Há diversos estudos que apontam para o enorme impacto sobre a produtividade…
Segundo diversos estudos promovidos por alguns dos países mais ricos do mundo – Japão, Estados Unidos, França, Reino Unido e Alemanha – a privação de sono nesses países custou entre 0,3 a 3 por cento do PIB. Infelizmente, as pessoas continuam a fazer disparates, e como se vê não é só no nosso país. Dorme-se pouco e mal. Falo à vontade, por que com a minha idade continuo a dormir 7 a 8 horas por noite – sem medicação – e até costumo dizer, em jeito de graça, que dormir bem é o meu superpoder. Só por dormir bastante bem é que consigo aguentar o ritmo elevado de trabalho que levo diariamente.

No livro que lançou há um par de meses – «O meu sono e eu» – pretende desmistificar as crenças e os mitos, apresentando factos. Há muita desinformação e ideias erradamente construídas sobre o sono?
Nós que vivemos nas sociedades ditas do conhecimento temos um desconhecimento muito significativo sobre várias matérias, entre elas o sono. Inclusive pessoas que dispõem de um nível de literacia superior acabam por ter atitudes e comportamentos semelhantes aos das pessoas menos letradas. Todos os dias se pode ler na internet ou nas redes sociais mensagens do género: «Saiba o que fazer para adormecer em três minutos», «tome o remédio que seguramente o faz dormir», etc. Isto é desinformação. As pessoas são todas diferentes, por isso, o sono também é variável de pessoa para pessoa. O “one fits all” (um serve para todos) não se aplica no caso do sono. Não há soluções universais.

Também li no livro que podemos estar perante um caso patológico se uma pessoa adormecer, sistematicamente, a ver televisão ou a ler. Uma pessoa que tenha este quadro deve consultar um especialista?
Faz parte de uma escala de sonolência diária a facilidade com que se adormece a ver televisão ou a ler. Uma vez por outra, pode acontecer, por cansaço. Se for sistematicamente, já não é normal. Há duas hipóteses: ou a pessoa está com privação de sono ou tem uma doença do sono. E sim, deve procurar ajuda.

Somos um dos maiores consumidores da Europa de fármacos para dormir. Que riscos associados existem com o uso excessivo de medicamentos prescritos e, já agora, se se optar pela automedicação?
Os sedativos facilitam o sono, sem dúvida, mas ao mesmo tempo tornam o sono mais superficial. E no caso de a pessoa ressonar, o ressonar aumenta e caso tenha apneia do sono a sua duração vai aumentar, porque diminuem os reflexos que fazem o restabelecimento da respiração. Surgem, nestes casos, problemas de memória e concentração. O que se tem constatado é que mesmo quem toma remédios naturais fica com os mesmos ritmos rápidos comparativamente com as pessoas que ingerem medicamentos prescritos, como as benzodiazepinas. Surgem problemas de insónia e concentração. Para aquelas pessoas que têm a noção que tomam muitos remédios e, mesmo assim, não dormem, deixo-lhes o alerta que quanto mais remédios tomarem, menos dormem. Os remédios fazem bem até um determinado ponto, mas quando são excessivos, passam a fazer mal.

Os quase três anos de pandemia, com a generalização do teletrabalho, gerou confusão entre muitos portugueses entre a vida pessoal e a atividade profissional. Para ser de qualidade, o sono deve implicar rotinas e regularidades?
Em grande medida, sim, mas também não é preciso viver como se estivesse num quartel! O essencial é, de uma forma geral, acordar, deitar e comer a horas certas. E apanhar ar livre, preferencialmente, no período da manhã.

O local onde se dorme, ou seja, o quarto de cada um de nós, é importante, ao nível da temperatura, das almofadas, dos lençóis e até dos colchões que dispomos?
Também aqui não há regras universais e cada pessoa monta o quarto à sua maneira ou como pode. O ser humano tem uma grande capacidade de adaptação. Pode haver recomendações, no caso do casal em que o homem ressona e tem um dormir agitado. É desejável ter duas camas ou dois quartos, ou então ter um colchão em que os movimentos não se repercutam no outro lado da cama. O colchão e a almofada devem ser confortáveis, mas também podem variar, ser macio ou duro, com a idade e as características de cada pessoa. Em suma, cada um deve procurar o seu conforto, que não tem de ser, necessariamente, a coisa mais cara que existe. Outra nota importante: televisão no quarto não se deve ter e telemóveis o mais longe possível da mesa de cabeceira, preferencialmente sem responder a mensagens durante a noite.

A sesta, traço cultural em muitos países latinos, é um hábito que tem perdido praticantes. Aconselha, sempre que possível?
Atualmente há muitas empresas, especialmente no Japão e nos Estados Unidos, que dispõem de locais próprios para os seus trabalhadores fazerem uma sesta. Está provado que depois desse período de descanso existe uma maior capacidade cognitiva, logo, nesse sentido, são reparadoras. Contudo, a recomendação não pode ser universal. Há pessoas que não gostam. Eu, por exemplo, costumo dormir a sesta com mais frequência quando estou no Alentejo do que quando estou em Lisboa.

Relativamente à comunidade escolar, tem ou teve estudantes ou professores como pacientes nas suas consultas?
Sim. Os professores estão muito “stressados”, com os problemas que todos conhecemos, muitos deles em risco de” burnout”. A relação destes com os alunos e até com as próprias famílias dos estudantes está mais crispada, para além disto, estão sobrecarregados com crescentes obrigações burocráticas. Já para não falar dos programas curriculares que mudam constantemente e dos crónicos problemas de colocação nas escolas. Isto é muita instabilidade junta.

E os mais jovens?
Os alunos também estão confrontados com muito “stress”. Os quase dois anos de perturbações no ensino, com a pandemia, causaram muita disrupção. Para além disso, os estudantes costumam ter trabalhos de casa e atividades extraescolares em excesso. Já aqui falámos da utilização permanente dos “gadgets”, que é outro problema e queria também referir que o “bullying” nas escolas portuguesas é muito frequente e é muito negativo, tanto para as vítimas como para os agressores. Explico: os visados ficam naturalmente deprimidos, mas os agressores têm, certamente, muito mais problemas psicológicos e maiores riscos de depressão e suicídio. Ou seja, estamos perante um quadro difícil, que potencia que as crianças e os adolescentes durmam pior e tenham piores notas.

No âmbito da literacia da Saúde pensa que se devia integrar a temática do sono nos currículos escolares?
Já existiu, no passado, uma disciplina no ensino secundário que tinha matérias sobre o sono e eu própria prestei apoio e colaboração a alunos de muitas escolas do país em trabalhos de investigação. O responsável pelo fim desta iniciativa foi um ministro, cujo nome me abstenho de mencionar. Foi muito negativo, porque agora não se consegue comunicar e sensibilizar com tanta facilidade os problemas do sono a estas camadas da população. K

 

Cara da Notícia

Há 45 anos a ajudar os outros a dormir

Teresa Paiva nasceu em Lisboa, em 1945. Formou-se em Medicina em 1969 e a partir da especialização em neurologia enveredou pelas doenças relacionadas com o sono. Desde 1983 que se dedica a ver e a ensinar os outros a dormir. Fundou o Centro de Eletroencefalograma e Neurofisiologia Clínica (CENC) – Centro de Medicina do Sono, unidade multidisciplinar que presta cuidados a pessoas com distúrbios do sono, onde é diretora clínica e dá consultas. Esta médica neurologista e investigadora, responsável pelo primeiro mestrado em sono a nível mundial, é reconhecidamente uma das maiores autoridades nacionais que se fala em medicina do sono. Fez carreira hospitalar no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, entre 1970 e 2006, onde chefiou o serviço de Neurologia. O livro «O meu sono e eu – mitos e factos», com a chancela da Livros Horizonte é a sua mais recente proposta, onde questiona e dá respostas a muitas perguntas frequentes sobre esta temática. Em 2021, abriu um projeto turístico, um hotel do sono, a que deu o nome «Sleep & Nature», localizado em Lavre, concelho de Montemor-o-Novo.

Nuno Dias da Silva
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