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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

João Taborda da Gama, advogado ‘Saúde em Portugal está muito contaminada pela ideologia’

01-08-2022

João Taborda da Gama afirma que a discussão sobre a Saúde em Portugal está «muito contaminada» por argumentos de caráter ideológico, ao mesmo tempo que acredita que a capacidade de resposta do sistema depende da «conjugação dos serviços em rede». O professor da Universidade Católica Portuguesa defende ainda uma nova política de drogas, em que o proibicionismo dê lugar à regulação, entregue ao Estado.

A primeira pandemia em 100 anos, a primeira invasão da Europa em 75 anos, o primeiro pico de inflação transversal em todo o mundo em 40 anos. Esta combinação inusitada sinaliza uma mudança de paradigma e o início de uma nova era de choques e convulsões ainda mais agressivos?
Já é um cliché dizer que vivemos numa época curiosa e com as suas particularidades. A conjugação de fatores é tão forte que determina que, pela primeira vez, em várias décadas, esse cliché se possa considerar verdadeiro. A pandemia e a reação da ciência era algo para o qual, enquanto sociedade, não estávamos preparados. Ou, dito de outra forma, estávamos desabituados e demasiado confiantes. Guerras também já as tivemos, agora a conjugação simultânea e inesperada destes fatores é que torna este momento tão inusitado.

O evoluir do conflito na Ucrânia vai determinar o futuro das economias europeias?
Sim, a economia da Europa está fortemente condicionada pela evolução da guerra. Estamos a ter esta conversa numa das semanas mais quentes do ano, mas estou em crer que o que vai acontecer no próximo inverno, em termos do abastecimento de energia à Europa, é que será determinante. Só se começará a perceber o que vai ser a verdadeira resolução desta crise quando passarmos o primeiro inverno. É uma resposta muito pragmática, mas entendo que as resoluções das guerras são, também elas, muito pragmáticas.

O início do verão ficou marcado pelo caos nas urgências no Serviço Nacional de Saúde (SNS), em certas especialidades. É o resultado de mais de dois anos em que o foco esteve na pandemia ou corresponde a má gestão, falta de eficiência e carência de recursos humanos?
Mais uma vez, tal como na resposta anterior, todos esses problemas contribuem, de forma conjugada, para a real situação do SNS. O ponto de partida é o seguinte: o SNS existe para tratar os portugueses, com o dinheiro dos portugueses, pelos profissionais que, em cada local ou momento, o consigam fazer, de forma mais eficiente, sem nenhuma ideologia. Seja a ideologia dos mais liberais que acham que apenas os hospitais privados conseguem ser geridos eficientemente, seja a ideologia partilhada pelos mais à esquerda que acham que só há verdadeiro acesso universal à Saúde se isso for comandado, controlado e gerido pelo Estado.

Em que se extremo se situa?
Sou um moderado nesta matéria e entendo que várias regiões, vários momentos e vários tempos permitirão a coexistência de respostas que, em rede (e aqui reside a chave da questão), servirão as populações. Precisamente, porque o serviço de saúde é prestado à população, pouco interessa se o hospital é privado, se é uma parceria-público-privada (PPP) ou se é um hospital universitário com grandes pergaminhos. O que vejo à minha volta são médicos desmotivados, e que cada vez mais sofrem problemas na sua vida e saúde mental, porque não são reconhecidos pelo seu trabalho, nem pela remuneração direta, nem por uma remuneração indireta, que durante anos foi consolidando-se, que era estes profissionais terem reconhecimento e uma vida organizada e estabilizada, bem como a possibilidade de fazerem investigação. Aquilo que eu oiço é que, hoje em dia, no SNS, os médicos não recebem nada disso, sendo eles peças chave de todo o sistema. Estou muito longe dos que preferem entrar em demagogias como decretar o caos nas urgências obstétricas. Durante o tempo da “troika”, os partos nas ambulâncias foram usados como uma arma demagógica inqualificável. Por isso, não é por hoje ser o PS no poder, que eu vou usar o caos nas urgências e na especialidade obstetrícia como arma de arremesso, por ser das que mais toca no coração dos portugueses.

Então qual deve ser a forma como olhamos para o que se passa no SNS?
Defendo que se deve olhar com serenidade e frieza para a forma como se organiza o SNS para uma determinada população, num determinado lugar e num determinado contexto. E qual é a melhor resposta a dar. Mas o que se fala pouco, e creio ser de grande relevância, é a assimetria regional nos cuidados de saúde. Por exemplo, um utente em Lisboa tem uma lista de espera muito grande para ter uma consulta, mas no caso de Vila Real obter uma consulta de especialidade em urologia pode ser preciso esperar mais de um ano. Estes problemas não se resolvem enchendo a boca com proclamações de interesse público e solidariedade republicana. Se for preciso o utente ter a consulta mais rápida para resolver o seu caso no hospital público, deve ser encaminhado para lá, se for preciso até de avião com o dinheiro dos contribuintes. Se a melhor clínica privada ficar a 100 quilómetros, então deve ir para lá. Isto deve ser feito sem qualquer espécie de preconceito ideológico: seja neoliberal ou republicano. A melhoria da capacidade de resposta do sistema de saúde às necessidades dos utentes depende da conjugação dos serviços em rede.

É a ideologia que está a impedir a complementaridade entre o SNS e o setor privado?
A discussão sobre a saúde está muito contaminada por argumentos de caráter ideológico. Nalguns casos a ideologia é muito positiva, e noutros peca por defeito. Mas pegando no caso concreto anterior: o importante é que a pessoa que reside em Vila Real não seja prejudicado por isso, tendo acesso a uma consulta de urologia o mais rapidamente possível, evitando que ele tenha cancro da próstata. É para isto que o interesse público deve olhar: a melhor prestação de cuidados de saúde, com o mesmo ou com menos dinheiro. O mesmo se aplica no âmbito da educação. Se para uma população escolar de determinada zona existe uma solução que é melhor e custa ao Estado o mesmo dinheiro, então o Estado deve apoiar, sem qualquer ideologia subjacente. Uma igualdade de acesso em absoluto tem algo de utópico, mas é preciso continuar a trilhar um caminho, afastando de qualquer debate as questões ideológicas que se atravessem no caminho. O diagnóstico de uma doença ou a taxa de esperança de vida de uma pessoa não pode estar dependente do seu local de nascimento, ou de querelas ideológicas.

Foi secretário de Estado da Administração Local durante 27 dias, no segundo governo Passos Coelho. Como vê o referendo à regionalização anunciado pelo governo para 2024?
Para defender um referendo, preciso de ser convencido que é preciso uma consulta popular para resolver essa questão. E não estou absolutamente convencido disso. Afinal, o que é que se vai referendar? O que é a regionalização? Que modelos estamos a discutir? É muito frequente no nosso país cair-se no erro de ter um debate político e administrativo – ilustrado e consistente do ponto de vista intelectual – mas, bem à portuguesa, ninguém vai querer falar do mais importante: o dinheiro. É muito difícil falar de como é que as coisas são passadas à prática. Para mim, o importante é que a discussão sobre a regionalização seja holística e abrangente. Mais importante do que saber que competências uma entidade territorial vai ter, é saber qual vai ser o envelope financeiro disponível e a sua proveniência. Na minha visão, na arquitetura do sistema de regionalização há uma ligação incindível entre as competências de uma região e a sua capacidade tributária. Ou seja, se uma região tem poderes na área da educação e da saúde tem de ter dinheiro para os colocar em prática. As regiões não vão ser novas entidades reguladoras. Devem sim ser dotadas de competências e de receitas para exercerem essas competências. Em suma, antes de falar sobre um referendo, é preciso saber que modelo de regionalização pretendemos. O país debate-se, frequentemente, com falta de escala de atuação, que podia ser melhorada ao nível das regiões, mais do que ao nível dos municípios. O problema é que os partidos em Portugal são muito hábeis em não querer comprometer-se com o modelo de regionalização.

A recente “novela” em torno do aeroporto de Lisboa – envolvendo o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos – pode fazer acelerar uma decisão que tarda?
É uma temática cujos contornos são difíceis de perceber, porque há muito tempo que andamos para a frente e para trás. A primeira questão é que ninguém parece querer responder à seguinte pergunta: o que fazer com o aeroporto da Portela, que é e continuará a ser o maior e mais importante aeroporto de Portugal? Alguém fala do impacto ambiental, em sentido lato, do atual aeroporto? Isto preocupa-me muito mais do que a localização do futuro aeroporto que, no fundo, será uma infraestrutura complementar.

Mas tem opinião sobre a localização do futuro aeroporto?
A localização depende de uma decisão técnica e creio que, após tanto debate, chegou a altura de avançar. Não entro em teorias da conspiração sobre localizações. Haverá, certamente, vantagens e desvantagens. O que importa é discutir como é que a nova solução liga com o aeroporto da Portela e, já agora, com as travessias do Tejo.

Que reformas deviam ser prioritárias para este governo de maioria absoluta, ainda para mais tendo os fundos provenientes do PRR?
A primeira tem a ver com a energia. Chegou a altura de termos um olhar descomplexado sobre formas de energia que devíamos ter adotado e explorado há décadas e que, por razões incompreensíveis, não o fizemos. Como o nuclear e eventualmente até perceber o que é que a costa portuguesa tem em termos de recursos naturais. Portugal tem centrais nucleares à beira do Tejo, do outro lado da fronteira, e renunciou às vantagens que podia ter retirado na aposta pela energia nuclear, sobretudo quanto ao preço da energia. Tal como a União Europeia diz, é tempo de olharmos e investirmos seriamente na energia nuclear. Para além disso, deve-se aproveitar ao máximo os fundos disponíveis para fazer uma ligação ferroviária rápida entre Lisboa e Porto. Não se compreende como é que um país tao pequeno, com um eixo de desenvolvimento urbano que vai da margem sul de Lisboa até Braga, não está unido por linhas ferroviárias de alta velocidade. Sem complexos, era necessário delinear um plano economicamente em se traçasse como ligar Lisboa ao Porto em hora e meia e Lisboa a Coimbra em 30 minutos. Acredito que parte dos fundos disponíveis devem ser aproveitados para isso.

E em que outras áreas devíamos tudo fazer para progredir?
Acho que devíamos aproveitar a oportunidade para dar um salto na administração pública. É um setor que está muito depauperado, nomeadamente nos vencimentos, e os seus recursos estão envelhecidos, carecendo de renovação. Era aproveitar a digitalização e a sua requalificação em termos de meios, não como chavão, mas na prática, seja na Justiça, nas finanças e no fisco, etc. Uma gestão descentralizada da administração pública permitiria dotá-la de meios para dar um salto qualitativo e, consequentemente, atrair novas pessoas. Para além disso, uma reforma da administração pública implica aumentos salariais, mas, particularmente, uma diferenciação salarial, que se reflita em bolsas com normas de contratação e de remuneração mais flexíveis.

Aproveitando a referência que fez ao fisco, é um reconhecido especialista em direito fiscal e foi, até 2021, membro do conselho superior dos tribunais administrativos e fiscais. São recorrentes os casos litigiosos entre fisco e contribuinte. O que defende para apaziguar esta relação?
Em todo o mundo a relação entre os contribuintes e o fisco é antagónica. Aquilo que se deve assegurar é que a arquitetura do sistema não sofra um viés a favor de qualquer das partes. Ora, como os litígios fiscais em regra se iniciam com uma ação corretiva da AT, é importante que em tempo útil os contribuintes possam recorrer a um tribunal. Os tribunais tributários (TT) na primeira instância, e em certos casos em segunda instância, demoram muito tempo. Segundo a OCDE, o fisco português perde cerca de 60% dos casos em Tribunal. Esses 60% devem ser o foco: como evitar que o fisco faça correções que vão soçobrar em Tribunal (com o dispêndio de meios públicos e privados que essa discussão implica). A arbitragem tributária resolveu dois problemas: a celeridade: decisões em pouco mais de seis meses versus decisões em mais de seis anos e de transparência: as decisões do CAAD são públicas e as dos TT de primeira instância não são. É, portanto, preciso dotar os juízes dos TT de ferramentas que lhes permitam decidir mais depressa (meios digitais, partilha de conhecimento, assessores), publicar as decisões de primeira instância (com a publicidade aumenta-se o escrutínio, mas também se diminuiu a litigância), mas também atuar a montante e dotar a inspeção tributária de uma cultura estratégica de mitigação do risco de vir a perder em Tribunal, incluindo uma maior vertente jurídica (e não apenas económica ou contabilística) no momento da inspeção e da correção tributária. Porque aí é que as coisas ficam quase todas definidas.

É orador em conferências nacionais e internacionais sobre a regulação e as políticas públicas de droga. Numa altura em que o consumo de droga está a recrudescer nesta fase menos aguda da pandemia, publica «Regular e proteger – por uma nova política de drogas», onde deixa uma dedicatória às vítimas do proibicionismo. Regulamentar e legislar é o caminho a seguir?
O caminho de proibir e encarcerar as pessoas não resultou. Falhou em todo o mundo. O que se constata é que as pessoas consomem cada vez mais drogas e mais perigosas. Deixámos toda esta área ser controlada pelo tráfico e pelos criminosos. Há 20 anos, e Portugal foi pioneiro, outros países começaram a olhar para outros domínios e outras maneiras de encarar a questão. Portugal liderou uma vaga de países que começou por descriminalizar o consumo, mas continuou-se a criminalizar-se tudo à volta disso. Ou seja, tudo o que é rentável continuou a ficar à mercê de redes criminosas. Mais recentemente, alguns países começaram a regulamentar e a regular toda a cadeia de produção e de distribuição de determinadas substâncias, em concreto e especial, nalguns países, a canábis.

E em sua opinião, deve prevalecer a regulação sobre a proibição?
Sim. É preciso abandonar a ilegalidade e trilhar um novo caminho que passa por regulamentar e criar regras que protejam as pessoas. Ironicamente, é “desliberalizar”. O comércio mais liberal que existe no mundo é precisamente o da droga não legalizada, que é totalmente selvagem.

O Estado deve assumir essa regulamentação, até para afastar os grupos criminosos do seu controlo?
Antes de mais deixe-me fazer um sublinhado, para que fique claro, não estou a dizer que o Estado fique com a produção, consumo e venda. O Estado deve é ficar com o poder regulador, como regula qualquer bem que tem e neste caso qualquer produto cujo consumo apresenta riscos. No fundo, assumir o controlo dessa atividade económica especial. Como é o caso do álcool, o tabaco, etc.

João Goulão, diretor do SICAD, diz que a canábis é de longe a droga mais consumida em Portugal. Se fosse regulamentado o seu uso, a canábis podia ser vista como o novo álcool?
Todos os estudos demonstram que a canábis é, atualmente, a droga ilícita mais consumida no mundo e cujo crescimento não para de aumentar. Estima-se que em Portugal exista meio milhão de consumidores anuais. É, pois, um consumo altamente massificado. Por isso, é que os países que estão a avançar nesta terceira vaga da regulação estão a fazê-lo na canábis, por ser a droga mais consumida. A sua regulação teria a vantagem de proteger os consumidores que já existem, pela fixação de uma potencia máxima da canábis que pode ser consumida e de regras para a sua produção. Vários investigadores acreditam que muitos dos malefícios da canábis resultam, não só, mas também, por ela ser produzida num contexto ilegal, com adulterantes, com potenciais totalmente descontrolados e sem qualquer controlo de qualidade…

Como é que neste processo são acautelados os riscos e equilíbrios para a saúde publica?
Em primeiro lugar, a regulação pretende que as pessoas que já consomem canábis deixem de fazê-lo no mercado negro e passem a fazê-lo no mercado regulado controlado. Por outro lado, é sabido que esta substância comporta os seus riscos e é preciso evitar que pessoas com maior suscetibilidade (jovens ou outros) não acedam, facilmente, a esse produto. Visto que em Portugal o consumo já é massificado, o que se pretende é que a canábis que as pessoas consomem seja feita, produzida e vendida de uma forma que seja menos prejudicial para elas. Com controlo de qualidade e limitação de THC. O equilíbrio consegue-se com um conjunto de variáveis, com particular impacto na questão fiscal. A adoção de um imposto pode fazer com que a canábis custe numa loja devidamente regulamentada e legalizada o mesmo caso fosse adquirida no mercado negro. Igualmente importante é a questão da informação a prestar às pessoas. Deve ser dito com transparência o que está a ser consumido, os riscos associados e eventuais sinais de alerta para algum problema. A canábis é menos perigosa do que o álcool, indicam sucessivos estudos que fazem um “ranking” de drogas pela sua nocividade. Ou seja, a canábis não é uma droga associada a violência e a overdoses, por exemplo. Ao contrário do álcool, por exemplo, que em Portugal sabemos estar historicamente associado à violência doméstica e à sinistralidade rodoviária.

 

Cara da Notícia

O direito das substâncias controladas

João Taborda da Gama nasceu, em Lisboa, a 18 de fevereiro de 1977. Intervém em questões e litígios complexos nas áreas do Direito Fiscal e do Direito Público como jurisconsulto, advogado ou árbitro e tem acompanhado setores e matérias altamente regulados como os da mobilidade, saúde e substâncias controladas, tecnologia e cidades. Tem-se dedicado, em especial, ao direito das substâncias controladas, assessorando pacientes, empresas, entidades públicas e organizações não governamentais sobre questões relacionadas com o cultivo, produção, venda e utilização de drogas em diversos contextos. É diretor-executivo da revista «Fiscalidade». Concilia a sua atividade profissional com a academia e a participação cívica, tendo sido secretário de Estado da Administração Local em 2015 e consultor político do Presidente da República entre 2011 e 2013. Em 2017, foi eleito pela Assembleia da República vogal do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais. É docente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, onde coordena a pós-graduação em Fiscalidade e leciona na pós-graduação em direito da saúde.

Nuno Dias da Silva
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