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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Susana Peralta, economista e investigadora da Nova SBE «Portugal é um país que dá pouca importância à escola»

20-01-2022

Falta consciência social para os problemas que afetam o sistema de ensino. Segundo Susana Peralta, a pandemia vai deixar «cicatrizes» nos alunos, nomeadamente ao nível de competências irremediavelmente perdidas. A economista defende ainda ser urgente atrair e reter professores, por esta ser «a mais importante profissão para o futuro do país.»

O Orçamento do Estado 2022 foi chumbado, o país vai a eleições a 30 de janeiro e teremos novo Orçamento, na melhor das hipóteses, em maio/junho. Como é que vamos viver em regime de duodécimos?
A nossa despesa pública é constituída, entre 85 a 90 por cento, por despesa corrente, nomeadamente com pessoal. O que significa que uma parte da nossa despesa pública é fixa e não discricionária. Ou seja, não depende das políticas implementadas num determinado ano. A título de exemplo, não vamos ter os aumentos salariais da função pública, mas fica assegurado o regular funcionamento de toda a máquina do Estado, tanto ao nível dos salários, como dos consumos intermédios. Em suma, e na minha perspetiva, não é o fim do mundo, como se possa fazer crer. Mas é evidente que estavam previstas medidas de combate à pobreza infantil e, com o chumbo do Orçamento, essas transferências ficam congeladas. Da mesma forma que a alteração dos escalões do IRS também não vai para a frente.

Tem defendido que «tínhamos de saber mais sobre o Orçamento». Pensa que é falta de interesse dos cidadãos ou os governantes agem de forma intencional para que o documento pareça cifrado e a sua leitura possa estar só ao alcance de alguns?
Não sou só eu a dizer. A Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) e o Conselho das Finanças Públicas também se queixam de falta de informação e transparência para que os seus especialistas percebam de que forma o Orçamento – por ser uma parte fundamental da política económica – é executado. Por norma, aos orçamentos do Estado faltam muitas dimensões de transparência.

A que dimensões de transparência se refere?
Olhe, por exemplo, no que diz respeito ao impacto das políticas de apoio à pandemia ou nas despesas das parcerias público-privadas. Mas para além da falta de informação, falta ainda uma lógica de perspetiva e continuidade ao longo do tempo. Tudo o que são decisões com impacto plurianual refletem-se de maneira muito pouco sólida no documento do relatório do Orçamento do Estado.

Mas insisto: admite que há intencionalidade?
Não acredito que o ministro das Finanças e os seus secretários de Estado nos queiram esconder informação. Aliás, acho que estes governantes fazem o que podem, com os recursos técnicos e humanos que dispõem. Agora, considero que não tem havido vontade política para investir em recursos para aplicar a Lei de Enquadramento Orçamental, que foi criada em 2015. Para que as pessoas percebam, com a adoção de um sistema de contabilidade pública seria possível estimar com muita precisão quanto é que nos custou a pandemia. E para já, não conseguimos.

O disparar da inflação, os custos da energia e dos combustíveis e os constrangimentos nas cadeias de distribuição já estão a contribuir para o aumento do custo de vida. Esta bola de neve pode complicar seriamente a retoma, que se previa fulgurante?
Sim, é uma evidência. Vários especialistas, inclusive o Ricardo Reis, que é professor de macroeconomia na London School of Economics, previram um aumento considerável da inflação nesta fase pós-pandémica. As pressões inflacionistas estão a ensombrar a retoma. Muitas empresas querem produzir e não conseguem. Temos de aguardar para saber a duração e a dimensão deste processo, mas a inflação, e o seu controlo, tem sempre custos grandes para as economias. Por outro lado, há uma pressão, do lado do consumo, por parte de uma parcela da população que não perdeu rendimentos e até poupou. Mas a inflação está a retrair muitas pessoas de consumir, o que é uma ameaça à retoma. Vamos ver como os bancos centrais «descalçam esta bota».

Apelidou de «burguesia do teletrabalho» os portugueses que trabalharam a partir de casa, mantiveram o seu emprego e reforçaram as suas poupanças, tendo mesmo defendido um imposto extraordinário. Esta dita classe média, já sufocada por impostos, aguenta mais um garrote?
Não defendi um imposto específico para essas pessoas, mas sim um Imposto progressivo sobre o rendimento, porque creio que era uma forma de corrigir esta enorme desigualdade gerada pela crise. Seria um imposto para os salários mais elevados, que iria «acertar» nos que menos perderam com a crise. Considero que foi injusto, apesar de ter sido em prol do bem comum, terem sido suspensas atividades como a restauração ou a diversão noturna e a solução encontrada foi desenhar políticas de compensação e de apoios muito incompletas. Excetuando, talvez, o apoio do “layoff” e mesmo esse não repõe o rendimento total das pessoas, como por exemplo, subsídios ou comissões. Acho que o Estado devia ter sido mais generoso com as pessoas. Por isso, um imposto sobre os escalões mais elevados de IRS seria um bom instrumento para compensar quem mais sofreu com a crise.

O teletrabalho acentua as desigualdades, por ser uma alternativa válida para as pessoas mais letradas, prejudicando os que têm menos qualificações e que não podem trabalhar a partir de casa?
Num determinado período da pandemia, 37 a 42 por cento dos trabalhadores com o ensino superior estavam em teletrabalho. E os que tinham o ensino básico, não chegavam a 5 por cento. Daqui se pode concluir que o teletrabalho é um privilégio das pessoas educadas e que, por isso, agrava, necessariamente as assimetrias sociais.

Referiu anteriormente que o Estado devia ter sido mais generoso. Apesar disso, o Estado social cumpriu o seu papel e amorteceu efeitos ainda mais dramáticos?
É evidente que sim. Também mal seria. Mas quero sublinhar que, ainda assim, e comparativamente com os países da União Europeia e da OCDE, Portugal foi dos que menos gastou, em percentagem do PIB, em apoios e noutras ajudas às pessoas castigadas pela pandemia.

Pensa que essa parcimónia nos apoios se deveu a algum receio que quando regressarem as regras orçamentais do Pacto de Estabilidade, o país possa não estar em condições de cumprir?
O ministro das Finanças tem razão para estar cauteloso. Contudo, encontra-se ainda em discussão nas instâncias europeias de que forma serão reativadas as regras de Maastricht e não é certo que seja em 2023. Mas depois há sempre o temor dos mercados, porque é preciso não esquecer que pagamos sempre juros pela nossa elevadíssima dívida pública. E um aumento dos juros pode ser muito problemático.

Foi uma das autoras do relatório «Portugal, Balanço social 2020», em que concluiu que a pandemia deixou e vai deixar cicatrizes profundas e, como alertou, em especial nos jovens. De que forma essas cicatrizes se podem ou já se estão a manifestar?
No âmbito da saúde mental, nomeadamente nos jovens adultos. Mas também ao nível da aquisição de conhecimentos. Basta comparar as elevadas discrepâncias nos resultados das provas de aferição de junho de 2021 e as mesmas provas antes da pandemia. Creio que devemos concluir que estes quase dois anos corresponderam a perdas de competências na escolaridade das crianças e dos adolescentes. Nos jovens adultos o que se nota é que têm engrossado os centros de emprego e formação profissional, por estarem presentes nas margens mais desprotegidas e fragilizadas do mercado de trabalho, com contratos precários.

Escreveu na sua coluna habitual no jornal “Público” que «a geração mais qualificada de sempre só é aproveitada em discursos». Este país não é para novos?
Claro que não é para novos. Portugal é um país capturado pelas gerações mais velhas. Os jovens têm uma enorme dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e ao mercado habitacional, que são condições fundamentais para o bem-estar físico e mental de qualquer cidadão. Sentem-se excluídos. Participam menos, votam menos. As suas preocupações não estão expressas nas escolhas democráticas, o que é mau. Com a agravante de estarmos a deixar-lhes várias heranças pesadas, como é o caso do endividamento do país, um Planeta estragado e abrirmos a porta a que futuros eventos disruptivos, como é o caso da atual pandemia, se repitam num futuro próximo. Lamentavelmente há uma grande resistência, no presente, em incorporar nas decisões a perspetiva das gerações mais jovens.

Defendeu a introdução de um plano de recuperação de aprendizagens para as crianças que perderam quase dois anos letivos. Como funcionaria este regime de tutorias?
No fundo, seria trazer as explicações para dentro das escolas e, deste modo, ajudar os alunos que estão em maiores dificuldades a recuperar aprendizagens. Fala-se muito da necessidade de termos turmas mais pequenas, mas é sabido que isso iria encarecer os custos. Mas o que me parece da maior importância passa por intervir no sistema com eficácia e isso faz-se de forma cirúrgica, tratando e corrigindo as dificuldades pontuais em grupos pequenos de alunos. Seria um esforço o mais personalizado possível, em grupos de três ou quatro alunos, no máximo. Ou seja, tratar em grupos específicos as dificuldades sentidas, em particular nestes dois anos de pandemia. E existe evidência científica que comprova que este método funciona. Infelizmente, no plano de recuperação das aprendizagens o governo mobilizou uma dotação manifestamente insuficiente para a contratação de recursos humanos para levar a cabo este esforço de recuperação.

Há conhecimentos que, apesar deste esforço, vão estar irremediavelmente perdidos?
Vão existir competências perdidas. Isso é evidente. Como já mencionei, as provas de aferição de junho de 2021 mostraram grandes diferenças na aquisição de conhecimentos relativamente aos jovens que estavam no mesmo nível de ensino em 2019. Os processos de aprendizagem são cumulativos e se as pessoas estão «coxas» e não se colocam os recursos necessários para colmatar essas lacunas, está bom de ver qual é o resultado. Isto já para não falar da falta de professores. Mas o que lhe falo não é uma realidade generalizada. Por exemplo, os meus filhos sofreram muito pouco neste contexto de ensino em casa no que diz respeito à aquisição de conhecimentos, devido aos meios intelectuais e materiais da família. Por terem os recursos à disposição, os meus filhos acabaram por ganhar competências ao nível da gestão e organização do trabalho, especialmente o remoto. Agora quem não tem os meios, acaba por sofrer e ficar para trás. O ensino já era desigual, se o ensino remoto aumentou essa desigualdade e se estão à vista perdas de competências nos estudantes, não há milagre que evite que a perda de qualificações se concentre nas pessoas mais desfavorecidas, que já eram as que menos competências tinham quando o ensino se realizava em sala de aula. Isto é um problema grave que estamos a empurrar com a barriga e quem paga é esta geração que não vota e não faz barulho.

Em 2021 aposentaram-se cerca de dois mil professores e estima-se que será necessário contratar 34.500 docentes até 2030. Como está a acompanhar este processo de renovação geracional?
O Ministério da Educação anunciou um programa com metas de contratação e processos de formação, mas nestes últimos anos o que tenho visto é a tutela correr atrás do prejuízo. Nunca se antecipam os problemas. Os nossos congéneres europeus reabriram escolas a 11 de maio de 2020, enquanto nós só as abrimos em setembro. E no verão desse ano nada fizemos para recuperar as primeiras qualificações perdidas, encomendámos os computadores tarde e a más horas e medimos o impacto do primeiro confinamento em janeiro de… 2021, a uma semana de voltarmos a fechar escolas. Porquê? Que confiança é que posso ter neste Ministério para saber que está tudo dentro dos eixos? Por isso, tenho pouca confiança que se consigam contratar quatro mil professores extra por ano até 2030. Mas gostaria de ser convencida e os jovens deste país precisam de ter um futuro. É urgente atrair e reter professores, a mais importante profissão para o futuro do país.

Ouvimos muitos testemunhos de antigos alunos sobre o papel que o seu professor teve na vida e na sua aprendizagem. Sente, contudo, que os docentes estão a fazer cada vez menos a diferença, por falta de autoridade e de vocação?
Não tenho dados objetivos para responder com clareza a essa questão. Mas o que se nota é um cansaço muito grande nos professores, fruto da sobrecarga de horários, e também decorrente da crónica dificuldade sistémica de se contratarem recursos humanos. Para além disso, a classe professoral está envelhecida, o que leva a que tenha mais dificuldades em se atualizar e esteja menos recetiva a abordagens diferentes e inovadoras. A juntar a isto ainda persiste uma grande carga burocrática e não podemos esquecer o impacto do enquadramento do estabelecimento escolar em função de carências sócio-económicas e características específicas psicossociais dos bairros de onde proveem os alunos.

Qual é o maior obstáculo que impede uma evolução no sistema educativo: a falta de investimento, a falta de estratégia ou a falta de políticas consensualizadas e duradouras entre os maiores partidos?
O principal problema do sistema de ensino é o investimento – não necessariamente ao nível da construção de infraestruturas físicas – mas sim em termos de não ser prioridade política. Mas o dinheiro não é o único e exclusivo problema. Também podemos identificar a organização e a autonomia das escolas, que considero serem fatores fundamentais. Acredito que os estabelecimentos de ensino podem fazer mais com menos, se tiverem autonomia para gastar onde, ninguém melhor do que eles, sabem onde aplicar os recursos. Dou um exemplo: que bom seria se a escola tivesse autonomia para contratar, numa situação pontual, um psicoterapeuta para lidar com um problema emergente no estabelecimento de ensino, em vez de estar dependente de uma autorização por parte da administração central. Há claramente um problema de más políticas públicas, quando dois anos depois da pandemia ter sido declarada, ainda não conseguimos, por exemplo, preencher o horário escolar de 20 mil estudantes.

A sua descrição demonstra muita inércia. Quem perde é o futuro do país…
Portugal tem a mão de obra menos educada da União Europeia. São as gerações mais velhas, que não usufruíram dos benefícios do sistema de ensino e que, por isso, não dão muito atenção, no dia a dia, ao que se passa neste setor. Talvez isso explique, de uma forma genérica, a falta de consciência da sociedade para este problema. Não é de admirar, por isso, que Portugal seja um país que dá pouca importância à escola. Só assim se compreende que tenhamos tido as nossas escolas fechadas meses a fio, mesmo em pandemia, sem que isso tivesse provocado um levantamento coletivo.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Pobreza, desigualdades e ensino
Susana Peralta é economista e professora associada, com agregação, na Nova School of Business and Economics, onde está desde 2004. Doutorada em economia pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica, tem investigação publicada em temas de federalismo fiscal, economia política e concorrência fiscal, em revistas da especialidade, incluindo “The Economic Journal”, “Journal of Public Economics”, “Journal of Public Economic Theory”, “Journal of International Economics”, “Regional Science and Urban Economics”, e “Journal of Urban Economics”. Colabora regularmente com o jornal “Público”, onde assina uma coluna todas as sextas-feiras, e com a TSF. É presença assídua nos órgãos de comunicação social para falar sobre microeconomia e questões relacionadas com a pobreza, as desigualdades e o sistema de ensino. Em 2021 publicou o livro «Portugal e a crise do século».

Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados
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