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Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Anselmo Borges, padre da Sociedade Missionária Portuguesa ‘O abuso sexual de menores é uma tragédia’

16-02-2022

«O abuso sexual de menores é uma tragédia», defende Anselmo Borges, que considera a criação da comissão independente para a investigação destes casos «um ato corajoso e que se impunha.» No domínio da educação, o padre da Sociedade Missionária Portuguesa acredita que o poder político tem de colocar a profissão de professor num «lugar cimeiro.» Uma entrevista com reflexões oportunas e filosóficas sobre a Igreja e o mundo.

No seu mais recente livro “O Mundo e a Igreja – Que futuro?” fala muito da necessidade de mudar o paradigma. Teve ilusões que a pandemia transformasse alguma coisa no comportamento da nossa civilização?
Sim, até certo ponto. Tinha a esperança, o desejo forte de uma mudança, no sentido de nos tornarmos mais solidários - afinal, uma das coisas fortes que esta pandemia revela é que somos interdependentes: podemos contagiar-nos uns aos outros e, ou nos salvamos todos ou nos perdemos todos...-, tomarmos consciência da nossa fragilidade, de sermos capazes de viver mais moderadamente, de irmos ao essencial. E houve quem tivesse tido um comportamento admirável: os médicos, enfermeiros, bombeiros, cuidadores, etc., que foram, na expressão do Papa Francisco, verdadeiros «santos da porta ao lado»...
Mas realmente, lá no fundo, as pessoas apenas queriam que a pandemia fosse um pesadelo passageiro, para, depois desse parêntesis, voltarmos à lógica anterior do progresso sem fim, do consumismo, do ter, do domínio, da correria...
A constituição do ser humano é complexíssima, porque, como disse Pascal, ele mora algures entre “o nada e o infinito”. Por isso, somos carentes e queremos mais, sempre mais, nomeadamente mais poder, sempre mais poder, pois, no limite, se fôssemos omnipotentes, mataríamos a morte. Não é por acaso que a nossa sociedade é a primeira a fazer da morte um tabu: disso não se fala. Assim, só Deus, como disse Santo Agostinho, pode preencher e aquietar o coração humano. Mas hoje vivemos na indiferença face à transcendência.

Em que demonstrações práticas se traduz o que diz ser «a civilização do muito ter e pouco ser»?
Já viu o que aí vai de corrupção, de ladrões - e já Lutero chamava a atenção para a distinção entre os pequenos e os grandes ladrões: estes defendem-se e vão em paz, enquanto os outros são espezinhados e condenados... -, as fortunas que se fazem com o armamento, a droga, a prostituição, a pornografia? Segundo o mais recente relatório da Oxfam, durante a pandemia, os 10 mais ricos do mundo duplicaram as fortunas, mas a cada 4 segundos morre alguém de fome e devido ao fosso cada vez mais fundo entre os ricos e os pobres. Esqueceu-se que o melhor - a honra, a amizade, a salvação - não se compra.

O nacionalismo vacinal mostrou que pouco ou nada mudou e que imperaram, como sempre, os egoísmos nacionais?
Quem estiver minimamente atento sabe que prevaleceu o nacionalismo na aplicação das vacinas. Ora, esta questão é uma daquelas questões que exigem uma solução universal. De facto, enquanto não estivermos todos vacinados encontramo-nos todos em perigo, tanto mais quando podem, entretanto, surgir novas variantes. Repito: a pandemia veio mostrar claramente que somos e estamos interdependentes; contagiamo-nos uns aos outros e/ou nos salvamos todos ou nos perdemos todos. Por isso, impõe-se a conclusão: se não for por generosidade e solidariedade humanas, ao menos por egoísmo esclarecido devemos ser solidários também na distribuição das vacinas.

Com o desassombro que o caracteriza, o Papa Francisco disse que esta «economia mata», numa clara referência às políticas neoliberais. São estas práticas predadoras, com o único fito no lucro, e que acentuam as desigualdades, as responsáveis pelo clima de crispação à escala planetária?
O Papa Francisco clama que somos todos irmãos. Leia-se a encíclica “Fratelli tutti” precisamente sobre o tema. Ele sabe que a economia tem de funcionar, mas declara de modo lúcido, e esperamos que não seja em vão, que o neoliberalismo, que só pensa no lucro, mata. Ele fala várias vezes na necessidade de uma economia social e ecológica de mercado.

São diversas as ameaças à Humanidade: as alterações climáticas, as desigualdades, a pobreza, o populismo, a corrupção e a degradação dos sistemas democráticos. Qual é a que mais o atemoriza?
Não tenho dúvidas em afirmar que são as alterações climáticas. Segundo os especialistas, a situação é dramática e pode mesmo estar a caminho da tragédia e do point of no return. O aquecimento não deixa de aumentar e isso vai fazer com que cidades inteiras desapareçam... E hoje já não há dúvidas de que essas alterações têm na sua base a intervenção humana. Até no imediato, podem constatar que, por causa dos confinamentos, houve menos poluição e até houve peixes que reapareceram...
É a que mais me atemoriza, até porque a questão do clima está em conexão com todas as outras que indicou. Para dar um exemplo, as consequências das alterações podem ser tais que levarão a migrações incontroláveis, que, por sua vez, acentuarão ainda mais os desequilíbrios, a pobreza, as desigualdades, corrupção, populismos, degradação dos sistemas democráticos. Por outro lado, estas ameaças são causa e acentuam as alterações climáticas. Por isso, de modo lúcido o Papa Francisco fala na sua encíclica, que fica para a História, “Laudato Sí”, da “ecologia integral”. A palavra ecologia tem na sua origem o grego (oikos, casa e logos, tratado): está, portanto, em causa o tratado da casa, da casa comum, que é a Terra, que é preciso cuidar, mas de modo integral, pois o seu grito é também o grito dos pobres e oprimidos.

Afirma que se pensa pouco ou nada. É possível fazê-lo numa sociedade em que vivemos rodeados por milhares de estímulos, muito ruído e um vertiginoso imediatismo e mediatismo?
Apresentou claramente algumas das razões fundamentais por que não se pensa ou se pensa pouco: sim, o imediatismo, o ruído das informações e estímulos, a banalidade e superficialidade rasantes. Ora, o pensamento exige concentração, profundidade, distanciamento. Para pensar, é preciso recuar. Nós, para refletirmos, precisamos de nos colocar à distância de nós próprios, para podermos ver-nos: a autorreflexão é isso: de alguma maneira, cindimo-nos, de tal modo que como sujeitos nos colocamos diante de nós como objeto, tentando ir ao fundo de nós. O mesmo se diga de todo o pensamento e reflexão.
Como disse, o imediatismo e o ruído do mediatismo, saltitando constantemente, impedem a serenidade e o distanciamento necessários em ordem à reflexão. No entanto, o pensar é característica decisiva do ser humano. Para podermos orientar a nossa vida pessoal e coletiva. Significativamente, pensar vem do latim pensare, que significa pesar razões e que dá origem também ao penso sanitário curativo: pensar cura.

Fala-se com demasiada timidez e vergonha dos problemas mentais, da solidão e do abandono dos nossos idosos. Há maior paradoxo do que uma imensa solidão na era da comunicação e da aldeia global?
Aí está uma manifestação clara e terrível da nossa falta de humanismo, quando se fala no abandono dos idosos, descartáveis...
Sempre houve receio de referir-se a doenças mentais. Por exemplo, tinha-se vergonha de dizer que se vai ao psiquiatra, quando afinal as doenças mentais são doenças como as outras. E estão em aumento, por causa da solidão, do medo difuso, por falta do contacto, do abraço, do desabafo, da presença de uns aos outros, de grupos de apoio. E a solidão mata. Não precisará Portugal de um Ministério da Solidão como noutros países?
Um paradoxo? Claro, mas com explicação. Quando, por um lado, o primado pertence ao ter, ao êxito, ao parecer, ao aparecer..., quando, por outro, estamos realmente na era da comunicação, da aldeia global, é preciso perguntar: que comunicação? Aí estão as redes sociais... a comunicar o quê e para quem? Não anda tanta gente à procura de “likes”? E vale tudo: o ridículo, “fake news”...e ai de quem nesse espaço virtual cair em desgraça... O filósofo Peter Sloterdijk, um dos pensadores vivos, juntamente com Jürgen Habermas, mais influentes, aludindo à arena romana, disse recentemente numa entrevista ao “El País” que voltou «uma nova arena geral e virtual da sociedade mediática de entretenimento. Uma metarena totalitária. Algo que vai muito mais além da sociedade do espetáculo de Guy Debord e que serve para dirigir o ressentimento das massas.»
Eu não estou bem a par, pois não tenho nem frequento. Mas sou tremendamente sensível ao que o neurocientista Michel Desmurget mostra no seu recente livro “A fábrica de cretinos digitais”: que, por causa da cultura do ecrã e do “dedar” constante, se está a registar uma diminuição do Quociente de Inteligência (QI), uma espécie de descerebração. É fundamental ler livros, tanto mais quanto a leitura estrutura a personalidade.
Continuando, acrescentaria que, no quadro do que se foi dizendo nesta entrevista, os velhos são descartados...Ah!, e quereria também chamar a atenção para um problema dramático, para não dizer trágico, que se refere ao facto de, concretamente no princípio da pandemia, ter havido pessoas que não puderam despedir-se minimamente dos seus entes queridos..., não puderam fazer um luto minimamente satisfatório, pois nem sequer tiveram a possibilidade de vê-los... Um problema imenso e fundo lá dentro, incalculável.
Permito-me acrescentar que julgo que é uma solidão incomensurável que explica em parte a importância por vezes desmesurada que se está a dar aos animais, a que se chega a tratar como filhos, caindo-se na tese animalista, que quer ignorar que a diferença entre a pessoa humana e os outros animais não é meramente de grau, mas qualitativa, essencial. Veja-se: só o ser humano é autoconsciente, consciente de que é consciente, só ele diz “eu”, um eu único, que interroga e se interroga, que é livre, capaz de dizer não aos instintos, e por isso é moral e responsável, que pergunta e, de pergunta em pergunta, chega à pergunta pelo Infinito. Isto é, por Deus, pelo fundamento último de tudo e pelo sentido último da existência... Devemos ter para com os animais o tratamento adequado, mas sem esquecer a diferença essencial. Aliás, só o Homem discute se a diferença com os outros animais é essencial ou meramente de grau...

A economista Noreena Hertz, autora do livro “O século da solidão”, escreveu: «temos a tendência para afirmar que os mais velhos são os mais solitários, mas a geração em que as pessoas se sentem mais sozinhas é a mais nova. Um em cada cinco “millennials” admite não ter um único amigo». Significa isto que estamos muito conectados, mas cada vez mais deslaçados?
Eu li esse livro e fiquei realmente perplexo: até já se aluga uma pessoa para poder ser tocado, falar... Não me custa admitir que os mais novos estejam tão afetados. Sobretudo por causa da pandemia, faltou-lhes o contacto. As crianças precisam de saltar, brincar, tocar, abraçar, ser abraçadas, rir. Ora, houve travões em relação a esse contacto. Ainda há dias lia que um professor perguntou numa aula com adolescentes o que é que mais os preocupava. Depois de algumas respostas parvas, houve uma jovem que disse: “Eu tenho medo, mas não sei de quê”, e foi acompanhada por muitos colegas nesta afirmação. Um medo difuso, que é o que também vende nas redes sociais, havendo quem faça disso também um negócio. Quem vai dar ânimo, esperança, boas notícias aos jovens, que também as há?

Concorda com sociólogo polaco Zygmunt Bauman, que falava da sociedade líquida?
Tive o privilégio de cumprimentá-lo uma vez. Foi num congresso no qual falou sobre o amor, o amor líquido. O que queria dizer? Hoje, dada a instabilidade em que se vive, se há coisa que se procura é um amor estável, definitivo. Mas, uma vez que se vive numa “sociedade líquida”, sem estabilidade e solidez de valores, com capacidade de sacrificar-se por eles, entra-se nesta contradição: deseja-se um amor sólido e estável ao mesmo tempo que se quer estar aberto a outra possibilidade que apareça. E aí está outra razão funda para a instabilidade emocional. Já agora, permita que lhe diga que falo muitas vezes da “sida espiritual”: os filhos a quem tudo é dado, depois, porque não têm resistências, ao mínimo obstáculo, sucumbem...

Diz que vivemos numa «singularidade tecnológica». Como resolver os problemas éticos que surgem na relação conflituante entre máquinas, homens e algoritmos? São os seres humanos que saem a perder?
Aí está uma daquelas questões que me faz dizer no meu último livro que nunca a Humanidade enfrentou ameaças e perigos tão graves como atualmente e que exigem soluções globais. Já falámos de alguns desses problemas. Mas refiro-me às alterações climáticas, ao perigo da guerra nuclear, à ciberguerra, às migrações incontroláveis, às lutas entre as maiores potências mundiais pelo domínio geoeconómico-político global e precisamente às novas tecnologias na sua ambiguidade, pois há vantagens também. Aqui, refiro-me às NBIC, acrónimo de nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências do cérebro, neurociências, de tal modo que se fala em transhumanismo e pós-humanismo. Temos de perguntar o que queremos do ser humano, quando pensamos também em úteros artificiais, bebés transgénicos, híbridos, etc...
Estes problemas são globais e exigem soluções ético-jurídico-políticas globais. Não se impõe, neste contexto erguer uma governança global? Não digo um governo mundial, mas uma governança global. Este é o imperativo mais premente e urgente para a Humanidade, se quiser ter futuro. Estou com Peter Sloterdijk: precisamos de uma “declaração de dependência”, universal, subscrita por todos os governos do mundo, para que já ninguém tenha a ilusão da independência num mundo em que tudo e todos estão conectados.
Permita que acrescente que sendo a Igreja Católica a única instituição verdadeiramente global, não apenas do ponto de vista geográfico, mas também social, pois está presente em todo o mundo e em todas as camadas sociais, pode e deve, em união com as outras Igrejas cristãs e em diálogo com as grandes religiões mundiais, dar um contributo imprescindível e decisivo neste domínio.

Falemos agora de outra temática. Já está em exercício de funções a comissão independente que investiga os abusos sexuais na Igreja. Apesar de esta ter sido uma iniciativa que partiu do impulso da própria Igreja, teme que destape, ao mesmo tempo, uma caixa de Pandora e seja o tiro de partida para uma «caça às bruxas»?
Foi um ato corajoso, que se impunha. Se se pode caminhar para uma caça às bruxas, para vinganças, etc., não é de excluir. Mas permita que lhe diga: tenho confiança na Comissão independente e, conhecendo como conheço alguns dos seus membros, estou convicto de que se caminhará com a responsabilidade e a dignidade que se exigem.
O abuso sexual de menores é uma tragédia. A Igreja perdeu credibilidade e confiança. Trata-se de uma traição à confiança que as pessoas depunham na Igreja. Jesus disse: «Deixai vir a mim as criancinhas», mas acrescentou: «Ai de quem escandalizar uma criança. Era melhor atar-lhe uma mó de moinho ao pescoço e lançá-lo ao mar.» Como foi possível a cadeia de abusos com menores e que, em vez de atender ao grito das vítimas, se tenha preferido o encobrimento para impedir «o escândalo público», salvaguardar a instituição e a «dignidade sacerdotal»? É a pergunta que não pode deixar de ser colocada, e impõe-se que a Igreja assuma as suas responsabilidades, com todas as consequências, e repare o irreparável na medida do possível.
Perante os relatórios na Alemanha, o próprio ex-Papa Bento XVI viu-se forçado a pedir perdão: «Exprimo a todas as vítimas de abusos sexuais a minha profunda vergonha, a minha grande dor e o meu sincero pedido de perdão.» Face à catástrofe, impõe-se a conversão da Igreja. Como explico no meu livro, o cerne do clericalismo está na ordenação sacerdotal, quando nem Jesus nem os apóstolos ordenaram sacerdotes. Evidentemente, a Igreja como instituição precisa de ministérios, serviços, mas sem ordens sacras. E acabe-se com o celibato obrigatório, como estão a exigir vários bispos, concretamente alemães, bem como com a discriminação das mulheres na Igreja. No princípio, houve mulheres que presidiram à celebração da Eucaristia. Porque é que o que já foi possível se tornou impossível?

«Gostaria que a Igreja em Portugal fosse mais iluminante para as grandes questões do país». A que questões se refere?
Ninguém duvida de que o Papa Francisco é hoje um dos líderes mundiais, dos mais amados, se não o mais amado e até o mais influente, uma voz político-moral global escutada. Quereria e espero que a Igreja em Portugal, libertando-se de privilégios ou pseudoprivilégios e tornando-se ela própria transparente na apresentação de contas, por exemplo, seja também uma voz político-moral. Não se trata de fazer política no sentido partidário, mas de iluminar as grandes questões que vão afligindo o país. Chamar a atenção para a corrupção, que está com dimensões intoleráveis; para a justiça no seu duplo sentido, nomeadamente a justiça social, e a Igreja conhece melhor do que ninguém as situações, pois está presente em todas as camadas sociais; para a importância da família estável, pensando também na catástrofe da quebra da natalidade; para a escola e uma educação sólida para todos, também nos domínios da dignidade da pessoa humana, dos direitos e dos deveres humanos e, em ordem a mais igualdade na escolha da escola, porque não apelar ao cheque-ensino?; Pensando também no interior, apelar a uma economia dinâmica e solidária...

Para concluir, gostaria de obter a sua visão sobre o sistema educativo e as novas gerações. Há já algum tempo que é professor jubilado, mas foi docente durante muitos anos, especialmente na Faculdade de Letras na Universidade de Coimbra e na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Como avalia, com o sucessivo passar dos anos, o grau de maturidade e de preparação dos alunos que lhe entraram nas suas aulas?
Já há algum tempo que estou jubilado. Nos últimos anos que dei aulas na Faculdade de Letras, do que mais me impressionou foi que os jovens chegavam à Faculdade muito carentes. Quanto à preparação, os colegas de várias universidades dizem-me que hoje de modo geral chegam mais imaturos e impreparados. Devo acrescentar que nos últimos anos, embora jubilado, continuei a fazer parte do corpo docente do programa doutoral em Neurociências Clínicas, Neuropsiquiatria e Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, ramo clínico do programa doutoral em Neurociências da mesma universidade, e tenho de confessar que ali chegavam candidatos muito bem preparados e interessados. Foi ali que tive a imensa satisfação de orientar a tese de uma jovem médica sobre a importância da espiritualidade e religião para a saúde e a cura.

A escola reflete a sociedade ou é a sociedade que é o espelho de uma escola que falha e de agregados familiares em rutura ou desavindos?
Uma coisa e outra: a escola reflete a sociedade e vice-versa. Não me canso de repetir que escola vem do grego scholê, que significa ócio, não o ócio da preguiça, mas tempo livre para pensar e governar a polis. Mas onde está hoje a escola nesse sentido? Hoje, dificilmente se pensa, está tudo muito voltado para o negócio, que é a negação do ócio (do latim nec-otium). Repare: eu não sou de modo nenhum contra os negócios, mas o filósofo Martin Heidegger preveniu que a técnica não pensa, apenas calcula. Ora, é isso que temos hoje, quando se dá o primado aos negócios e quando a própria política se tornou negócio. A nossa sociedade não tem dado a devida importância à escola e à educação. Repare: uns 30.000 alunos não terão ainda as aulas todas, devido à falta de professores, o que é revelador do desastre já presente, e muitos jovens continuam sem computadores. A educação é essencial. Voltemos ao étimo das palavras. Educação vem do latim educare, que quer dizer alimentar. Por causa da neotenia (nascemos prematuros, vimos ao mundo por fazer), o Homem tem de receber por cultura e criando cultura o que a natureza lhe não deu. Por isso, é o resultado de uma herança genética e de uma cultura em história e diálogo, inventando o novo. Isto significa que precisa de aprender, de ser alimentado culturalmente. Cá está a importância decisiva da escola. E dos professores. A palavra professor vem do latim (profiteri, ter uma mensagem para entregar). Que desenvolvimento, que educação no sentido holístico da palavra, se pode esperar numa sociedade onde a escola é fraca e com falta de professores? Como é tolerável que, como eles próprios me contam, antigos alunos meus da universidade andem há anos na instabilidade, saltando anos a fio de escola para escola? Quando vão, se quiserem, formar uma família? Uma sociedade que quer avançar em todas as frentes deve colocar a profissão de professor em lugar cimeiro... O poder político tem de valorizar a carreira docente.

Uma das críticas que a escola sofre com maior frequência é que está desfasada da realidade. Na escola, para além de aprender a ler, escrever e contar, seria básico aprender a ver televisão e a consultar, de forma responsável, a internet?
Quando se fala de escola é fundamental precisar de que grau de ensino se fala e a idade dos jovens. De qualquer forma, para toda a escola, há alguns princípios gerais a ter em conta. Sim, evidentemente, aprender a ler, a escrever, a contar. Havia métodos antigos que provaram e que poderiam e deveriam continuar, por exemplo, fazer a divisão de orações (aprender a lógica das frases, pois uma língua é um mundo — o mundo pensado e dito em alemão não é exatamente o mesmo que o mundo pensado e dito em português, por isso, quem sabe várias línguas tem mais mundo), redigir composições, com a mesma finalidade. Nota-se, por vezes que há dificuldade na matemática e nas ciências por falta de domínio da língua. A matemática e as ciências são fundamentais. Mas voltando ao étimo de escola, encontramos a necessidade também das humanidades, aprender a compreender-se a si mesmo é fundamental, — de facto as ciências são para quem senão para o ser humano? —, ler livros é essencial, refletir sobre a dignidade da pessoa humana, os direitos e os deveres humanos, o sentido da vida — o que é que verdadeiramente queremos, quando pensamos no futuro? Deste modo aprenderão a viver com a televisão e a internet de modo crítico. Evidentemente, também neste domínio, a família tem um papel imprescindível.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Regresso ao essencial do Evangelho
Tem-se destacado como uma voz incómoda de muitas das posições e orientações da Igreja Católica. O diálogo inter-religioso e o apelo ao regresso ao essencial do Evangelho constituem ideias-chave do seu percurso. Anselmo Borges nasceu em Paus, Resende, a 20 de julho de 1944. É padre da Sociedade Missionária Portuguesa. Doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra, de cuja Faculdade de Letras é professor jubilado. Licenciado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, tem o Diplôme d’Études Approfondies em Ciências Sociais pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Lecionou Filosofia e Teologia na Universidade Católica Portuguesa e no Seminário Maior de Maputo. Faz parte do corpo docente do programa doutoral em Neurociências Clínicas, Neuropsiquiatria e Saúde Mental da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, ramo clínico do programa doutoral em Neurociências da mesma universidade, e também do mestrado em Psiquiatria Social e Cultural da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Tem várias obras publicadas, a última das quais «O Mundo e a Igreja – Que Futuro?», com a chancela da Gradiva. É colunista do “Diário de Notícias”.

 

 

Nuno Dias da Silva
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