A literacia financeira deve ser levada a toda a sociedade, desde os mais novos, até aos seniores. É o que defende a jurista da DECO (Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor) Natália Nunes, que afirma ainda que apenas quando a inflação for controlada poderá haver um «alívio na vida das famílias».
A DECO considera que o diploma do governo que obriga a banca a renegociar os créditos com os seus clientes é uma medida «insuficiente». Porquê?
Em rigor as medidas agora anunciadas já estão previstas na lei desde 2012. O que o governo faz agora é identificar e colocar requisitos para os indícios da degradação financeira das famílias que revelam, claramente, um indicador das dificuldades sentidas. Por isso, sempre que uma família tiver uma taxa de esforço superior a 36 por cento está em risco de não conseguir pagar as prestações de crédito. O que a legislação diz é que os bancos vão ter de fazer a avaliação financeira das famílias e se forem confirmadas as dificuldades, as instituições bancárias terão de propor cenários para renegociar o crédito.
Então, em resumo, qual é a grande novidade deste pacote de medidas?
A novidade é transmitir de forma objetiva a todos bancos que desde que as famílias estejam nesta situação de dificuldade deve ser feita a avaliação da sua situação financeira. Com a experiência de 22 anos a acompanharmos as famílias portuguesas neste campo, a DECO entende que estas medidas não são suficientes para dar resposta às necessidades das famílias. A situação de sufoco financeiro, nomeadamente fruto do aumento do custo de vida (faturas de supermercado, eletricidade, água, gás e combustível) condiciona muito os orçamentos familiares, e se a isto se juntar o aumento da prestação do crédito à habitação, torna o momento muito delicado. Os dados que temos é que existem 1 milhão e 400 mil contratos de crédito à habitação em Portugal, sendo mais de 90 por cento com taxa variável, indexada à Euribor, a maior parte a seis meses. Significa que de seis em seis meses a prestação é alvo de revisão.
Neste contexto, tem havido um crescente número de pedidos de ajuda à DECO?
A partir de setembro/outubro aumentou o número de famílias que nos contactaram alertando-nos que, para já, ainda conseguem suportar o aumento de 60/70/80 euros da última atualização da prestação, mas admitem que dentro de seis meses não conseguirão honrar este compromisso. E o que se perspetiva é que as Taxas Euribor continuem a sua escalada. Isto após quase uma década em que estiveram em valores muito baixos ou mesmo negativos, fazendo com que as prestações se situassem em patamares relativamente baixos. Mas desde fevereiro deste ano que começaram a subir de forma galopante.
Que cenário perspetiva se as taxas de juro não começarem a inverter o rumo?
Se as taxas de juro passarem os 3 por cento, no próximo ano, como se antevê, isso vai refletir-se nas prestações. Por isso, insistimos que as medidas não são suficientes.
Em que consiste a linha de financiamento que a DECO propôs ao governo?
Esta linha de financiamento também não é nada de novo, porque já foi adotada em 2009, quando existiu um pico das taxas de juro. No fundo, seria um crédito concedido pelo Estado às famílias confrontadas com a subida da Taxa Euribor e serviria para financiar parte do pagamento da prestação. Decorrido o período de tempo acordado entre o banco, a família teria de devolver o dinheiro que lhe havia sido emprestado, com juros bonificados. Isto aconteceria durante a vigência do crédito. Esta medida permitiria evitar a solução de alterar as condições dos empréstimos que, muitas vezes, vão agravar o próprio empréstimo e também – não menos importante – os clientes não ficariam com informação negativa na Central de Responsabilidades de Crédito, dificultando acesso futuro ao crédito e podendo aumentar o seu custo. A linha de financiamento evitaria tudo isto.
Quem optar por renegociar agora o seu crédito corre o risco de ir parar à “lista negra” da banca?
Qualquer pessoa que tenha um crédito tem a informação do seu processo registado na Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal e que deriva de dados veiculados pelas instituições bancárias. E é possível consultar online se o crédito está a ser ou não cumprido ou se foi ou não renegociado – numa situação de regularidade ou já em fase de incumprimento. O que não sabemos é se agora, no caso de contratos reestruturados, a banca irá informar o Banco de Portugal da renegociação do crédito das famílias ou se por considerar que foi apenas uma alteração das condições do contrato opta por não notificar a entidade reguladora. Essa situação ficará ao critério dos bancos, se as famílias não estiverem em situação de incumprimento. Mas caso ela exista, os bancos não terão alternativa do que fazer a notificação oficial.
Mas defende que caso as famílias não estejam em incumprimento declarado, devem evitar ao máximo renegociar as condições com os bancos?
Se chegar ao banco o pedido de renegociação, mesmo estando as famílias em situação de cumprimento, isso é, desde logo, identificado como sinónimo de risco acrescido, o que vai aumentar o custo de um qualquer crédito que vier a ser solicitado. Ou seja, podem vir a ser penalizadas sem necessidade.
A transferência do crédito, em busca de melhores condições de uma instituição para outra, está isenta de penalizações?
Vai haver uma alteração na lei que indica que em 2023 se se tomar essa decisão não será preciso pagar a penalização pela amortização antecipada. Ou seja, os bancos deixam de poder cobrar a comissão de 0,5 por cento do capital a amortizar. Mas neste caso específico estamos apenas a falar de alterações e negociações das condições contratadas.
Qual é o perfil das pessoas que se dirigem à DECO com pedidos de ajuda?
Até final de agosto eram, sobretudo, as famílias de menores rendimentos as que tinham algumas dificuldades financeiras, confrontadas com o aumento do custo de vida. Com rendimentos a rondar os 1.000/1.100 euros. Depois do verão alterou-se o perfil. Já não são apenas os que têm menores rendimentos, mas também as famílias com taxas de esforço mais elevadas e que foram confrontadas com as primeiras revisões do crédito à habitação. Estas famílias já têm rendimentos médios de 1.400/1.500 euros. É o efeito do crédito à habitação a ter a maior influência.
Já passou por várias crises. Primeiro a crise financeira de 2008, mais recentemente a pandemia e agora a sucessão de factos decorrentes da guerra da Ucrânia. Este é o momento mais desafiante e complexo nos 22 anos que leva na DECO?
É um momento necessariamente desafiante e complexo, porque ele é diferente do que aconteceu no período compreendido entre 2008 e 2012. Há 15 anos existia uma taxa de desemprego relativamente elevada, ao contrário do que agora acontece. Agora, a subida simultânea das taxas de juro e do custo de vida, fruto da inflação, fazem deste um período muito particular e sem paralelo nos anos recentes. Creio mesmo que o grande desafio será o de controlar a inflação. Quando isto acontecer, poderá haver esperança de um alívio na vida das famílias. Por isso, o ano de 2023 terá ainda muitas dificuldades. Esperemos que o governo continue atento e adote as medidas necessárias para ajudar as famílias, nomeadamente as de menores recursos e com taxas de esforço mais elevadas.
A almofada de poupança da pandemia esgotou-se ou está em vias disso?
Foram muitas as famílias que amealharam poupanças durante dois anos, o que permitiu amortecer o aumento das taxas de juro e do custo vida. Mas essa almofada está em vias de esgotar-se. Os dados recentes do Banco de Portugal e do INE indicam que as famílias já não têm a capacidade de poupança dos últimos dois anos. Bem sei que esta não é a melhor altura para se falar de poupança, mas sempre que existir alguma folga deve amealhar-se algum dinheiro, por mais curto que seja o rendimento, até para acudir a situações imprevistas como as que agora vivemos.
As famílias portuguesas têm em média cinco créditos, sendo o da habituação o que representa um fardo maior. De que crédito estamos a falar?
Não nos deve surpreender esta média de créditos. A maior parte das famílias que recorre à DECO tem um crédito à habitação, dois créditos pessoais e dois cartões de crédito. Sendo que muitas vezes estes cartões de crédito e os créditos pessoais foram contraídos aquando da contratação do crédito à habitação. Muitas vezes, para reduzir o valor do “spread”, os bancos propõem às famílias a contratação destes créditos. Para além disso, é recorrente em situações de crise, quando os encargos aumentam, as famílias tendem a contratar até mais créditos, para fazer face ao aumento da despesa. Não é, por isso, de surpreender que o recurso a créditos pessoais e a cartões de crédito possa vir a aumentar nos próximos tempos. Isto é uma bola de neve. O problema é que a falta de competências de literacia financeira das famílias portuguesas leva a que se tomem decisões erradas.
Taxa de esforço, taxa fixa ou variável, Euribor são vocábulos no topo da atualidade. Estamos a ter lições e ensinamentos de literacia financeira à força e sob pressão?
Sem dúvida. Entre 2008 e 2012, num momento difícil, esses vocábulos de que falou estiveram muito em foco e voltaram agora de novo a ser tema de todas as conversas e muitas notícias nos órgãos de comunicação social. Hoje, as famílias já sabem o que é a Euribor e entendem as implicações do que é uma taxa variável, mas existe um longo caminho a percorrer. A própria escola começa a revelar preocupações com as matérias relacionadas com a literacia financeira. Na disciplina de Cidadania, que vai até ao 9.º ano, é trabalhada a questão da literacia financeira. O que se pretende é que outras disciplinas, de forma mais ou menos transversal ao sistema de ensino, continuem a apostar neste domínio. A literacia financeira aplicada à Matemática já é uma realidade em várias escolas, transmitindo conceitos úteis à vida prática dos alunos e capacitando-os para estas competências.
A DECO, através da DECOjovem, está muito ativa nesta área, tendo, o ano passado, envolvido 34.500 alunos e professores, nas iniciativas que dinamizou...
No final de outubro tivemos a Semana da Formação Financeira, promovida pelo “Todos Contam”, um programa de literacia financeira dinamizado pelos reguladores (Banco de Portugal, CMVM e Autoridade de Seguros), sendo que a DECO é um dos parceiros desta iniciativa. No caso da DECO promovemos uma aula digital que foi levada todos os dias da semana às escolas. Tivemos mais de 1.800 alunos a participar nesta iniciativa. Por seu turno, a DECOJovem tem como um dos seus principais eixos estratégicos a promoção da literacia financeira e de consumo na rede de estabelecimentos de ensino. Já agora, a 31 de outubro, Dia Mundial da Poupança, levámos a cabo uma conversa na internet, divulgada no Facebook, em que alertámos as famílias para a importância de uma gestão inteligente do seu dinheiro. Finalmente, no início deste ano letivo, produzimos um pequeno guia sobre os direitos dos consumidores dirigido aos jovens universitários que começam, com a saída de casa dos pais para irem estudar, a lidar com a gestão do dinheiro. A DECO entende que a literacia financeira deve ser levada a toda a sociedade, desde as crianças de tenra idade, até aos seniores. Infelizmente, os efeitos da formação e da educação não são imediatos. E é preciso porfiar e ter paciência.
Muitas situações de risco e de más decisões com que os portugueses são confrontados podiam ser acauteladas com educação?
Podiam. Pese embora a literacia financeira não resolver tudo, muitas situações de decisões erradas seriam substancialmente reduzidas. Continuamos a ter famílias que, independentemente do rendimento que dispõem, não fazem o seu orçamento familiar. E outras que não sabem qual é a sua taxa de esforço. Estou consciente que se formos para a rua perguntar aos portugueses se sabem o que é e qual é a sua taxa de esforço, a maior parte não saberá responder. A taxa de esforço define-se da seguinte forma: é o peso que as prestações com crédito têm no rendimento líquido mensal da família. Por exemplo, se a família tiver 1.000 euros de rendimento e a soma do crédito totalizar 350 euros, a taxa de esforço corresponde a 35 por cento. Ou seja, esta família ficaria no limite máximo recomendável em termos de despesas com crédito.
Felizmente, temos portugueses que estão numa situação financeiramente mais estável. Que produtos financeiros ou investimentos aconselharia: um PPR, um certificado de aforro, investir na bolsa ou em criptomoedas?
Mais do que lhe dizer qual o produto financeiro recomendado, o primeiro passo será saber as características do investidor. Nomeadamente, que risco ele quer correr. Os portugueses têm a maior parte das suas poupanças aplicadas em depósitos a prazo, quando é sabido que estes têm um rendimento praticamente nulo. Aplicar em PPR ou em certificados de aforro dependerá do perfil de quem investe. Julgo que o importante é diversificar as várias aplicações, para procurar obter, com o menor risco, a maior rentabilidade possível. Ter o dinheiro em casa, debaixo do colchão, não é a solução. Sobre as criptomoedas, alerto que as pessoas, antes de contraírem investimentos, devem estar muito bem informadas e conscientes dos riscos que vão correr. Por isso, o aconselhamento antes de uma tomada de decisão é muito importante.
A DECO existe desde 1974 e durante muitos anos ficou célebre o slogan «vou-me queixar à DECO». Com estes novos tempos, o mote está a mudar para «vou pedir ajuda à DECO»?
Na verdade, não muda. A DECO, atualmente, responde em duas vertentes muito importantes. Conseguimos encontrar uma outra área em que a associação se conseguiu destacar pela ajuda que dá aos consumidores, que está relacionada com as implicações com os gastos em consumo nos orçamentos das famílias. Em simultâneo, a DECO continua a dar uma forte resposta às solicitações das reclamações no âmbito do consumo. Não é por acaso que as queixas por telecomunicações continuam a estar no “top”.
Cara da notícia
Natália Nunes nasceu a 25 de dezembro de 1968, no distrito de Castelo Branco. Jurista de formação – licenciada em Direito pela Universidade Moderna e com pós-graduação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e uma pós-graduação em Direito do Consumo – coordena o Gabinete de Proteção Financeira da DECO, desde o ano em que foi criado, em 2000. Contudo, a sua relação como colaboradora da Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor remonta a 1991. É a porta-voz da DECO para assuntos relacionados com o sobreendividamento das famílias, surgindo com frequência na comunicação social como comentadora destas matérias. K