Conselheiro de estratégia internacional e antigo secretário-geral adjunto das Nações Unidas, Victor Ângelo defende que a União Europeia deve distanciar-se dos EUA em matéria política, económica e de defesa. «A atual dependência não é saudável e constitui um risco para a estabilidade europeia», acrescenta. Sobre o conflito na Ucrânia, afirma que deve ser resolvido «o mais depressa possível.»
Foram vários os líderes que se deslocaram a Kiev e a Moscovo. Como explica que a diplomacia não tenha conseguido dissuadir ou travar a invasão russa da Ucrânia? A nostalgia do império perdido e a ânsia da sua recuperação por parte de Putin tornaram este conflito inevitável?
É difícil colocar-nos na cabeça de um líder que é muito diferente do ponto de vista político e cultural. As suposições que se fazem apontam que ele procura reconstituir aquilo que seria a grande Rússia, muito mais vasta e poderosa do que a Rússia de hoje. Admito que o presidente russo queira ficar na história como o político que conseguiu recuperar o império russo nos tempos modernos. Com 22 anos de poder e com a idade que tem, é provável que pense, sobretudo, como a história o vai tratar.
Pode dizer-se, com alguma segurança, que esta guerra não está a correr como Putin tinha previsto?
Putin cometeu dois grandes erros que, na verdade, são muito frequentes nos regimes autocráticos. Primeiro, pensou que a derrota do regime ucraniano seria relativamente rápida e fácil, tendo em conta a grande mobilização de militares russos e meios materiais. O outro erro foi nunca ter imaginado que o ocidente, e em particular os países da União Europeia, se mantivessem unidos na resposta a esta agressão contra a Ucrânia. Refiro-me, em particular, à dimensão do pacote de sanções aplicadas e o seu impacto na economia e nas relações internacionais da Rússia.
Pode explicar melhor o motivo, pelo qual, estes erros são habituais nos regimes autocráticos?
O líder decide um determinado tipo de ação e todos os que o rodeiam, nomeadamente os seus ministros, os conselheiros políticos e as forças de espionagem e inteligência, limitam-se a encontrar argumentos para apoiar e justificar a posição já tomada. São elementos fiéis, que estão apenas interessados em repetir o que o líder diz e faz. Não há margem para qualquer contrapoder.
Sem o apoio militar e estratégico do ocidente, a Ucrânia já teria capitulado?
Nos primeiros dias, altura em que Putin tentou conquistar Kiev, e não existia apoio do ocidente, a coragem, a determinação e a capacidade estratégica dos ucranianos permitaram responder a essa invasão, neutralizando a ameaça. A capacidade de resposta ucraniana surpreendeu.
Se este conflito se eternizar acredita que possa ser mais devastador em destruição e em vítimas do que a guerra dos Balcãs, na década de 90?
Estamos a falar de conflitos diferentes e dificilmente comparáveis. Nos Balcãs tínhamos um fator étnico muito forte e que aqui não tem o mesmo tipo de peso. Na caso do conflito na Ucrânia são mais os fatores de soberania e imperialismo que importam. Contudo, o atual conflito é extremamente perigoso, na medida em que o causador da guerra, em simultâneo, possui armamentos nucleares e é membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Para além de ser visto como uma potência rival, tanto dos Estados Unidos, como da União Europeia. É esta visão competitiva das relações internacionais que torna este conflito extremamente perigoso, sendo por isso fundamental que seja resolvido o mais depressa possível. O seu prolongamento tem sempre o risco de ultrapassar as fronteiras da Ucrânia, alargando-se a países ocidentais que integram a NATO, já para não falar dos Estados Unidos.
A possibilidade de o conflito se alargar para os países bálticos e para a Moldóvia é agora mais ténue?
A Moldávia, por ter no seu território a região da Transnístria (uma região separatista apoiada por Moscovo), pode ser implicada se houver um alargamento do conflito. A propaganda russa tem alimentado uma grande inimizade face à Polónia e também em relação aos países bálticos. Existe, em ambos os casos, alguns riscos, mesmo sabendo que um conflito com esses países significaria um conflito da Rússia com a NATO.
Foi um dos mais de 200 antigos quadros da ONU que pediram, no início da guerra, mais proatividade a António Guterres. O secretário-geral fez tudo o que podia para aproximar as partes ou foi excessivamente prudente?
Este é um conflito muito complicado para o secretário-geral da ONU, porque o seu principal causador é um membro permanente do Conselho de Segurança, com direito de veto e extremamente influente nesta organização. Por isso, é fácil de perceber que António Guterres teria de adotar alguma prudência. O que não o impediu, contudo, de ter condenado no início esta ação por «violar a lei internacional».Penso que devia ter continuado a insistir em afirmações desta natureza, propondo uma modalidade de conciliação ou mediação para que houvesse um acordo entre os países beligerantes para, chegar primeiro a um cessar fogo, depois entrar num processo de negociações e aferir quais as condições que cada parte estaria disposta a aceitar para terminar o conflito. Faltou uma proposta política que permitisse criar uma plataforma de negociação entre os dois estados, a Ucrânia e a Russia, envolvendo outros paises.
O que pretende transmitir é que Guterres devia ter procurado o apoio de outros países?
O secretário-geral da ONU não pode ser visto isoladamente. As suas iniciativas devem ser apoiadas e suportadas por outros atores internacionais. Como fez mais tarde com o presidente turco.
O funcionamento da ONU, em que o centro de poder não está no secretário-geral e na assembleia, mas sim no Conselho de Segurança deixam Guterres ou outro qualquer líder das Nações Unidas de pés e mãos atados?
O secretário-geral tem de trabalhar de perto com o Conselho de Segurança, mas não consegue tomar iniciativas caso não tenha o apoio e a aprovação deste organismo. Trabalhei muitos anos com o Conselho de Segurança e procurei ter os cinco membros permanentes sempre informados de tudo aquilo que tinha em mente para propor. Isto para evitar surpresas. Hoje pode ser a Rússia a vetar, mas amanhã pode ser a China e no dia seguinte os Estados Unidos. Por isso, entendo que o secretário-geral devia ter encetado um diálogo permanente com os países com assento no Conselho de Segurança, logo desde o início do conflito.
Mas o poder de veto dos cinco membros do Conselho de Segurança pode inviabilizar a paz em conflitos armados. Para evitar isto, devia haver uma reforma da ONU?
Esta problemática sobre a eventual reforma do Conselho de Segurança tem sido debatida ao longo de décadas, sobretudo desde o fim da «guerra fria». Nomeadamente, o motivo pelo qual certos países da América Latina ou da Ásia não estão lá representados. Sinceramente, nos tempos mais próximos, não vejo viabilidade para a transformação do Conselho Segurança.
O que impede uma reforma deste organismo é o bloqueio dos cinco membros que o integram?
A reforma tem de ser aprovada pelo Conselho de Segurança e deveria ser, fundamentalmente, uma proposta conjunta do secretário-geral e dos membros do Conselho de Segurança. Sem o apoio dos cinco países o secretário-geral nao consegue avançar com a reforma. A falta de acordo não acaba aqui, visto que em vários continentes há países que não se entendem sobre quem deve estar representado no Conselho de Segurança. Na América Latina o Brasil diz que por ser o maior país deve lá estar e aparece logo o México a reclamar para si esse lugar. Na Europa, a Alemanha afirmou o seu interesse em estar presente e logo a Itália apareceu a ambicionar o lugar.
Esta guerra criou uma nova ordem mundial. Como fica a reconfiguração geopolítica do mundo? A Rússia passará a ser um Estado ostracizado?
A primeira grande questão é como vai evoluir o conflito, que ainda não terminou. Mas vamos certamente caminhar para um mundo multipolar e não apenas centrado nos Estados Unidos e na China. Creio, por exemplo, que a Índia será um ator extremamente importante. A própria Europa, se conseguir avançar em matéria de política de defesa comum, também poderá ser um protagonista extremamente importante. Aliás, a Europa mostrou durante o atual conflito, que apesar das divergências, tem sabido manter uma grande unidade política. A juntar ao seu poderio económico e tecnológico, a Europa pode ser um polo importante nas relações internacionais.
Estima que em 2049 a China será o maior poder económico do mundo. A questão de Taiwan, pode fazer aumentar a tensão no relacionamento entre Washington e Pequim?
Trata-se de um relacionamento que atualmente já é bastante dificil, de competição e rivalidade. A sofisticação da China enquanto potência económica é uma realidade, mas este país também apresenta fragilidades internas. A mais visivel é a propria juventude chinesa que demonstra ter dificuldade em aceitar o regime que lidera o seu país. Os diplomados que saem das universidades chinesas encontram cada vez mais obstáculos em ter emprego compatível com as suas habilitações. Um regime autocrático e que tenta impor uma verdade única a toda a população - e sobretudo a uma população tão numerosa - acaba por criar grandes tensões politicas que acabarão por gerar problemas internos. Podem ser controláveis, até certo ponto, mas não para sempre.
O que pode representar um eventual regresso de Donald Trump nas eleições de 2024, nomeadamente no relacionamento com a Europa?
A Europa tem o máximo de interesse em ganhar, nos próximos anos, a maior autonomia possível em relação aos Estados Unidos. A sociedade americana está cada vez mais dividida e o peso das forças mais retrógradas é crescente, sendo a possibilidade de controlarem as principais alavancas do poder - nomeadamente, a Casa Branca, o Congresso, etc. - enorme. Isto vai criar um tipo de filosofia e atitude política que é muito diferente da que vivemos na Europa. Acredito que essa realidade vai criar um choque entre os valores dos EUA e da Europa, com o consequente distanciamento. É por isso que defendo que a União Europeia deve estar preparada para esse cenário, ganhando autonomia política, económica e de defesa face aos Estados Unidos. A atual dependência não é saudável e constitui um risco para a estabilidade europeia.
Nas mais de três décadas em missões ao serviço da ONU esteve presente em todos os países africanos. Como perspetiva os conflitos que vão ser gerados pelas alterações climáticas, nomeadamente nesse continente?
As alterações climáticas são uma questão essencial nas relações internacionais e um desafio global, especialmente para os países mais pobres. Registam-se enormes problemas na região do Sahel, que separa o norte de África, o Deserto do Sara, da restante África subsariana, onde tem havido um progressivo aumento das zonas desertificadas, provocando inúmeros conflitos internos nesta zona do continente africano, entre os que vivem da pastorícia e os que subsistem da agricultura. Noutras zonas do globo, pelo contrário, assistimos há dias a uma situação dramática de inundações no Paquistão, que afeta cerca de um terço da população. É de prever, por isso, em diferentes zonas do mundo, mais pobreza e grandes movimentos migratórios. Sendo que as migrações em massa são sempre um fator gerador de conflitos e, como se sabe, são uma bandeira muito explorada pela extrema-direita europeia. Podem, por isso, estar criadas as condições para a eleição, na Europa, de governos extremistas de direita. As questões do clima e das migrações devem ser recolocadas no centro da agenda internacional.
Das centenas de missões que fez por todo o mundo, gostaria de partilhar uma que lhe tenha ficado na memória?
Gostaria de destacar a missão na Tanzânia, em que a minha função, como representante da ONU, era receber os refugiados do Ruanda, na sequência do massacre dos Tutsi, em 1994. Assisti ao resultado do ódio étnico e racial, à pobreza extrema e a movimentos de massas enormes. Mas o mais emotivo foi mesmo o acompanhar do trabalho de recolha dos corpos de pessoas mortas no Ruanda e que vinham a flutuar no leito do rio que corria em direção à Tanzânia. Após serem retirados, aos cadáveres era dada uma sepultura condigna. Como imaginará, foi algo muito marcante. E neste anos de missões aprendi a diferença que faz entre ser um bom e um mau líder, a diferença que faz entre ser um líder esclarecido e preocupado com o bem estar e o progresso do seu povo e ser um líder apenas focado em manter-se no poder e em enriquecer.
É um estrangeirado que esteve 42 anos fora de Portugal. Que país é que deixou e que país é que encontrou no seu regresso?
Abandonei o país em 1978. Portugal ainda era muito pobre, relativamente fechado sobre si próprio e com alguma ebulição política. Os portugueses saíam em busca de melhores condições no estrangeiro. O país a que regressei, em 2020, é completamente diferente. Muito aberto ao mundo e comprometido com a construção europeia, possuindo uma elite académica e profisisonal bastante moderna e preparada. Sou um observador muito distante da política nacional, mas noto que os partidos têm lideranças e militantes muito mal preparados. Para além disso, é evidente a grande fidelidade que existe dos militantes face aos líderes partidários. Dito de outra forma: o líder do partido é, de facto, a pessoa determinante. Quem quer fazer carreira tem de ter uma lealdade total ao dirigente máximo. A lealdade e o seguidismo político são mais importantes do que a própria competência ou a capacidade dos militantes escolhidos. O que acaba por ter consequências em termos do que se decide e nas pessoas que são escolhidas para determinadas funções. Por seu turno, a sociedade civil está muito dependente dos poderes públicos e das subvenções provenientes da administração pública e do poder político. O país só será forte se tiver uma sociedade civil forte.
A CARA DA NOTÍCIA
Braço direito de dois secretários-gerais
Victor Ângelo nasceu em Évora e tem 72 anos. Conselheiro de estratégia internacional, foi secretário-geral adjunto da ONU durante os mandatos de Kofi Annan e de Ban Ki-moon. Nos 32 anos ao serviço das Nações Unidas chefiou missões de segurança e manutenção da paz, sob a autoridade direta do Conselho de Segurança. Exerceu funções no Chade, Serra Leoa, Zimbabué, Timor, Filipinas, Tanzânia, Gâmbia, República Centro-Africana, Moçambique, Angola, Guiné Equatorial e São Tomé e Príncipe, bem como na sede da organização, em Nova Iorque, onde foi diretor regional para a África Ocidental e Central. É colunista semanal do «Diário de Notícias».