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Raquel Duarte, médica pneumologista Fadiga pandémica e confiança levam a comportamentos de risco

22-06-2021

Raquel Duarte, ex-secretária de Estado da Saúde, considera que o aumento dos contactos sociais contribuirá, inevitavelmente, para fazer disparar o número de casos da pandemia e admite que a emergência das novas variantes representa uma ameaça à eficácia das vacinas.

Foi o epidemiologista Manuel do Carmo Gomes que declarou que o vírus é como uma mola: se tivermos o pé na mola, a transmissão desce, se levantarmos o pé, a transmissão cresce. Estamos neste segundo cenário, fruto também do processo de desconfinamento em curso?
A evolução da pandemia depende de três vetores fundamentais: a vacinação, a testagem, a par com uma rápida implementação das medidas de saúde perante um caso positivo e, finalmente, os comportamentos individuais. Estes três vetores são quase como os três pés de uma mesa. Se um ceder, a mesa cai.

Vamos por partes, a vacinação está em curso e aparentemente a bom ritmo…
O plano de vacinação está a caminhar bem, ao ritmo da chegada das vacinas a Portugal, e adotou-se a medida inteligente de começar pelos grupos etários mais vulneráveis e com comorbidades, visto que a vacina é especialmente eficaz nas formas graves da doença. Quanto à testagem, em função de pessoas que se queixam com sintomas ou por áreas geográficas ou em contexto sócio laboral, o processo também se está a desenvolver um pouco por todo o país. Finalmente, temos o comportamento individual que está muito dependente da literacia, mas também da fadiga pandémica Há ano e meio que é pedida contenção à população e é, por isso, natural que as pessoas se sintam cansadas. É destes três fatores que depende o equilíbrio da situação.

Mas após a terceira vaga, em janeiro/fevereiro, regredimos de números muito confortáveis e, em poucas semanas, tudo se alterou. Como explica?
Inevitavelmente, com um aumento das interações sociais há um aumento da incidência. Mas associado à fadiga pandémica, houve, claramente, um excesso de confiança da população e que se traduziu numa série de comportamentos potencialmente geradores de super transmissão na comunidade, em vários pontos do país, que geraram sementeiras de casos que, posteriormente, vão gerar outros casos em contextos sociais e laborais, fruto do tal aumento de contactos.

A dimensão familiar e social continua a ser o principal foco de contágio?
Para começar, é preciso aferir a proporção de casos de que conhecemos a cadeia de transmissão. O vírus não entra pela janela. Em contexto familiar, surge por contacto direto entre pessoas que são próximas devido a um maior relaxamento das medidas de distanciamento. E no contexto familiar é preciso distinguir duas realidades: o relacionamento entre familiares conviventes e entre não conviventes, sendo que neste último caso, o risco de propagação é necessariamente mais elevado. Imagine uma festa familiar, em que encontramos primos que só vemos, por exemplo, uma vez por ano. As pessoas precisam de perceber que a vacina confere mais proteção, sobretudo para as formas graves da doença, mas muitas questões se levantam: não sabemos, por exemplo, quanto tempo de imunidade confere. Ou seja, é importante que as pessoas tenham presente que mesmo vacinadas o risco não é zero.

Pensa que é importante reforçar esta mensagem: estar vacinado não é sinónimo de não contrair a doença e de não a transmitir?
A eficácia da vacina não é a 100 por cento. E com um fator adicional, que é a mensagem chave: estar vacinado significa ter as duas doses da vacina completa. E não apenas uma. Anteriormente, quando referia a eficácia da vacina falava da toma completa da vacina.

A situação da região de Lisboa e Vale do Tejo pode alastrar a todo o país?
Essa é uma situação que se destaca, com uma incidência nesta zona claramente superior ao resto do país. Quero recordar que tivemos dois fins de semana prolongados em junho e provavelmente no dia em que falamos – 17 de junho – estamos a começar a ver os dados reportados ao efeito da primeira “ponte”. E estou em crer que, mais tarde ou mais cedo, começaremos a ver o efeito das férias, com as pessoas a deslocarem-se geograficamente.

O fim das aulas na próxima semana pode ser outro fator de risco?
Nem me refiro a isso. Estou a falar mesmo das pessoas que trabalham na Grande Lisboa e que são oriundas de outras áreas geográficas do país. Creio, por isso, que estamos a evoluir para uma disseminação da infeção para o resto do país. É praticamente inevitável. Para mitigar este crescimento, é preciso continuar a vacinação e a testagem em força, mas sobretudo adotar comportamentos individuais prudentes.

Foi uma das autoras do plano de desconfinamento, na companhia do professor Óscar Felgueiras, que também já entrevistámos. É um plano bem adaptado a estes avanços e recuos fruto da evolução da pandemia?
Em primeiro lugar, é preciso referir que a pandemia é dinâmica. Tendo em conta esse contexto, a nossa proposta foi um plano com passos pequenos e seguros, dados em segurança. Estamos a assistir à emergência de novas variantes – que podem ou não ser dominantes em determinado local – e que ameaçam a eficácia das vacinas. É o caso da variante Delta, que segundo os dados preliminares com origem no Reino Unido é mais transmissível e é responsável por mais hospitalizações, especialmente em pessoas com mais comorbidades. Posso parecer repetitiva, mas gostaria de insistir: é preciso continuar a adotar aquilo que sabemos que funciona. Ou seja, evitar aglomerações, manter o distanciamento e utilizar a máscara em ambientes públicos, em locais onde não é possível manter a distância mínima de segurança entre pessoas. A distância e a máscara são e continuarão a ser armas fundamentais.

Como acabou de referir, as variantes estão, por assim dizer, a baralhar o jogo. O número “mágico” dos 70 por cento para a imunidade de grupo também pode estar comprometido?
Ninguém sabe, exatamente, qual é o valor para atingir a imunidade de grupo. Há especialistas que chegam mesmo a falar em percentagens acima de 70 por cento, mas creio que, no presente momento, no que nos devemos focar é em vacinar toda a população. A mensagem que gostaria de passar é a seguinte: se recebeu uma mensagem para ser vacinado, vacine-se!

Há um enorme fosso no ritmo de vacinação entre a Europa e os Estados Unidos e, por exemplo, zonas do globo como África e América Latina. Isso pode ser uma forte ameaça nos próximos meses com a circulação de pessoas?
É importante que os países mais ricos e desenvolvidos se juntem e procurem mitigar esse fosso. O primeiro passo foi dado na última cimeira do G-7. A equidade da vacinação é fundamental. Há pouco tempo, tínhamos apenas cinco por cento da população mundial vacinada. Enquanto houver circulação do vírus, existe o risco de surgirem novas variantes e fruto da globalização chegarem a qualquer ponto do globo. Enquanto todo o mundo não estiver seguro, ninguém está completamente seguro.

Os especialistas têm alertado que o vírus da gripe pode ser mais forte este ano, após ter sido residual no último inverno. Partilha desta visão?
São estimativas. Em rigor, ninguém sabe. Se as medidas restritivas de saúde pública se prolongarem é natural que o impacto seja igualmente baixo. De qualquer forma, isso não invalida que considere que a vacinação da gripe este ano será de extrema importância. Até porque não podemos colocar de parte que no próximo inverno possamos, em simultâneo, ter dois vírus a circular: o da gripe e o Sars-coV-2.

Têm surgido notícias indicando que muitos jovens recusaram fazer o teste à Covid-19. Pensa que é necessário fazer campanhas de sensibilização, alertando para a importância da testagem em grupos ainda não vacinados?
Quando há recusa em algo, é preciso perceber porquê. Pode ser o medo pelas repercussões económicas e laborais, em caso de teste positivo. A pessoa pode temer ser penalizada económica e socialmente, caso tenha sido infetada. Ou pode não estar suficientemente informada ou motivada para o fazer. Outro aspeto pode ser a má perceção do risco e que passa pela comunicação. O que se constata é quando a incidência começa a aumentar numa determinada área geográfica, a procura sobre tudo o que se relaciona com a Covid-19, aumenta. E quando aumenta a perceção de risco, aumenta também a adesão das pessoas às medidas restritivas. O importante em termos de comunicação é falar de forma transparente e ajustada à ameaça real para que a perceção de risco chegue a determinado público. É preciso chamar a atenção que Portugal, a nível europeu, é dos países onde o vínculo intergeracional é mais forte, o que faz com que o aumento da incidência numa geração rapidamente seja transversal a outras gerações.

Muito se tem falado das sequelas da Covid-19, o chamado “Long Covid”. Que impacto pode ter a médio/longo prazo nas pessoas que contactaram com o vírus?
Há ainda muito para concluir sobre este assunto, mas sabemos que afeta os doentes infetados que tiveram sintomas ligeiros ou moderados. Estamos a falar de um quadro multissistémico e prolongado que, acreditamos, possa continuar a ser uma carga adicional nos próximos tempos para o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Há registo de pessoas que ainda hoje têm queixas e que foram infetadas em março de 2020. Se necessário fosse, este é mais um motivo para quem ainda não teve o vírus adote cuidados redobrados.

Nunca se falou tanto em saúde pública como no último ano e meio. Quando tudo passar, ficarão lições e aprendizagens ou tudo será obliterado?
Não concordo consigo. O SNS tem investido, nos últimos anos, em temáticas preventivas de forma importante. Por exemplo: a redução do sal, do açúcar, da gordura, ingestão de alimentos e bebidas, a redução tabágica, a saúde mental a promoção da atividade física, etc. Admito, contudo, que há um longo caminho a percorrer e que temos de ser mais eficazes na educação da população no âmbito da prevenção. Mas é evidente que o sucesso não depende só das pessoas. Às autoridades compete-lhes criar condições para que os cidadãos possam adotar as práticas que lhes são recomendadas. Esta tarefa é multidisciplinar. Estes conselhos para promover os valores de uma vida saudável têm ligação à pandemia, porque ambos dependem do papel fundamental que cada cidadão desempenhar.

A tuberculose é a sua principal área de investigação. Dados de 2018/2019 indicam que a taxa de notificação desta doença respiratória em Portugal manteve a tendência decrescente, mas a mediana de dias até ao diagnóstico permanece elevada, o que significa menor grau de suspeição da doença. Teme que, também fruto da pandemia, esta seja mais uma doença esquecida?
Ainda ontem, a Organização Mundial de Saúde (OMS), durante a conferência em que estive presente, em representação da European Respiratory Society, fez  uma call to action para a eliminação desta doença que, de facto, já deveria estar erradicada. Isto apesar de sabermos como a diagnosticar, como detetar e como prevenir. Em termos mundiais temos assistido a uma diminuição de casos, apesar de muito lentamente. Aquilo que tem faltado é a componente e o compromisso político, bem como uma estratégia a nível mundial, semelhante à que tem existido para a Covid-19.

Mas a Covid-19 pode ter posto em causa o desígnio da eliminação da tuberculose?
Acredito que sim, na medida em que se assistiu, em todo o mundo, à redução dos casos notificados, o que vai atrasar o diagnóstico e necessariamente terá consequências que se não forem tratadas poderão levar à morte.

 

Cara da Notícia

Tuberculose, a principal área de investigação

 

Raquel Duarte nasceu a 6 de outubro de 1967, no Porto. É licenciada em Medicina, mestre e doutorada em Saúde Pública pela Universidade do Porto. Médica pneumologista no Centro Hospitalar de Gaia/Espinho, é docente na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e investigadora do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto.
Ao longo dos últimos anos tem desempenhado vários cargos como dirigente na European Respiratory Society.
A sua principal área de interesse e investigação é a tuberculose, tendo dirigido o programa para esta doença da DGS.
Coordenou, juntamente com o matemático Óscar Felgueiras, o plano de desconfinamento solicitado pelo governo.
Desempenhou o cargo de Secretária de Estado da Saúde no XXI governo constitucional.

Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados
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