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Escritor português fala do seu último livro 'O Último Avô' de Afonso Reis Cabral

20-10-2025

O lançamento do seu último romance é o pretexto para uma conversa com um dos mais aclamados e premiados escritores da nova geração.

Já reconheceu que o romance que acaba de lançar, «O Último Avô», é o livro mais complexo que escreveu até hoje. Qual é a explicação que encontra?

Todos os meus três romances são ficcionais, mas os dois primeiros partem de assuntos que, de uma maneira ou de outra, tive de estudar e também conhecer de perto. O meu romance de estreia fala de dois irmãos, inspirado no meu irmão mais novo, portador de Síndrome de Down. Por seu turno, o «Pão de Açúcar» parte do caso Gisberta, a transexual assassinada por um grupo de rapazes, nas ruas do Porto, em 2006. Embora o livro seja ficcional, tal como o primeiro livro, «O Meu Irmão», tem uma âncora com a realidade. Já este, «O Último Avô», continuando a ser literatura ficcional, não parte de uma pedra de toque ou de um edifício intelectual que já existisse, de alguma maneira. Esta é a história de um homem de 80 anos que queima, no jardim das traseiras de casa, um manuscrito que escreveu ao longo da vida. E associado a esta imagem existiam várias perguntas às quais eu precisava de dar resposta em forma de literatura. Este é porventura o meu livro mais imaginativo, mas ao mesmo tempo o que tem menos âncoras e menos proximidade. Em simultâneo, tem uma certa complexidade de temas e muitos riscos. Este livro apresenta tempos narrativos diferentes que se cruzam. Confesso que descobrir e montar isto foi, de facto, muito difícil.

A guerra colonial é um tema que não é abordado pelas novas gerações de romancistas. Tocou numa ferida ainda aberta da história recente do país?

Sim, a guerra colonial é, certamente, uma ferida aberta. E para tocar nela teria de ser uma perspetiva completamente diferente da tradição literária que existe, nomeadamente dos escritores que escreveram romances em torno dessa experiência pessoal e que foram combatentes e até do registo de partilhas em forma de diários e de memórias. Por isso, pareceu-me que a perspetiva que podia, numa penada, unir gerações diferentes (ou seja, a geração que participou na guerra colonial e a minha, que não faz ideia do que isso foi) numa problemática que é nossa, era converter o livro numa história familiar, em que a guerra colonial servia como pano de fundo. A história desta família tem, à semelhança de tantas outras famílias, a ferida da guerra colonial presente. Este livro é, portanto, um encontro de gerações e procura vencer o desafio de ultrapassar fronteiras que se colocam entre estas gerações, sendo a guerra colonial uma delas.

Revelou que falou muito com o seu pai que foi capitão miliciano em angola, em N’dalatando e Cabinda, os cenários principais do livro. Qual foi a importância destes relatos para a construção e investigação da obra?

As memórias do meu pai estiveram sempre presentes, aliás, como acontece em muitas famílias. Muitas vezes a gestão dos silêncios e os tabus significam até mais do que as histórias relatadas. Na escrita do romance propriamente dita o meu pai foi uma espécie de assessor, até do ponto de vista factual, no sentido de me orientar sobre a descrição da minha escrita, enquadrando-a no tempo e no espaço que ele viveu. Isto sem esquecer a literatura de guerra colonial que, paralelamente, consultei. Em suma, deixei que a literatura e a ficção crescessem neste ambiente.

Disse que no processo de escrita e criação, «cada frase é um embate». É um escritor que lança obras com um certo espaçamento no tempo – esta surge sete anos depois de «Pão de Açúcar». Isto deve-se ao facto de necessitar de consolidar a amadurecer ideias e narrativas?

O ponto essencial é que, por temperamento, desconfio permanentemente do que faço. É isso que explica o tal embate com cada frase e com cada parágrafo escrito. Essa luta não se faz todos os anos ou de um dia para o outro. Ao mesmo tempo, o compromisso que tenho com a literatura é escrever algo que seja suficientemente bom e que mereça ser publicado. E não acho que isso se consiga ao escrever um romance todos os anos. E como perguntou, de facto, acho que é preciso amadurecimento, estudo e tempo, para que cada livro seja um mundo em si mesmo. Finalmente, os temas que trato não podem, de maneira nenhuma, ser abordados de forma leviana. A literatura é, por isso mesmo, uma forma oposta de olhar o mundo de forma leviana.  E depois a vida também acontece – casei, tive uma filha, etc.

Escreve desde os nove anos de idade. Ter sido escritor dependeu de influências familiares (no seu caso é conhecida sua relação familiar com Eça de Queiroz) ou considera que é uma vocação? Nasce-se escritor?

Não sei se alguém nasce alguma coisa. Sinceramente acho que, desde muito pequeno, que tenho essa vocação. Para além disso, foi essencial ter a ilusão dessa vocação desde muito cedo e o ambiente familiar em que cresci contribuiu para essa realidade. Comecei a escrever desde muito novo e ao fim de alguns anos tornou-se numa espécie de traço de personalidade, uma condição “sine qua non” – não consigo existir sem que a escrita exista. Quando estou a escrever mal ou com dificuldade, costumo associar isso a uma dificuldade de temperamento. Se quiser, é como se a escrita se tivesse entrosado com o meu carácter.

«É muito difícil chamar a atenção das pessoas para um livro», disse numa entrevista. Apesar de as nossas feiras do livro, em Lisboa e Porto, serem sempre grandes momentos literários, o tempo que se dedica à leitura no nosso país é ainda residual?

Os índices de leitura têm sido mais favoráveis e otimistas nos últimos tempos. Lembro-me do falecido Pedro Sobral e de como ele era um entusiasta de um crescimento, cada vez maior, dos índices de leitura. Eu tenho essa perspetiva otimista. Os recentes dados sobre o crescimento do mercado livreiro assim o demonstram, seguindo a mesma tendência desde a pandemia. O que não quer dizer que, comparativamente com outros países, não haja um contraste grande. Em Portugal é muito grande o número de pessoas que só lê um livro por ano ou não lê nenhum livro. E nem sempre as leituras são ficção ou propriamente literatura.

E qual é a resposta da faixa etária mais jovem?

Também se regista um crescimento entre os jovens, muito fruto do “TikTok” ou de outras redes sociais, o que é muito interessante. Encarar com desconfiança os novos leitores que nascem nesses ambientes é também um pouco “snob”. Deve ser dado espaço e tempo às novas tendências, sem desconfianças, que se pode traduzir na leitura de ficção comercial, “thrillers” e por aí fora. Esse pode ser um começo para, mais tarde, se progredir para obras com outra densidade. Acho que é importante não privar uma planta de oxigénio quando ela está a crescer.

A atenção humana é um recurso escasso, valioso e muito disputado. Há condições de ler e absorver a essência de um livro perante tantos estímulos e distrações, nomeadamente os provenientes das redes sociais?

Os nossos cérebros estão viciados no imediatismo. E digo viciados no sentido clínico do termo – muitos estudos indicam que a nossa química cerebral se altera perante os estímulos rápidos e também do próprio empolgamento que as redes sociais geram e dos temas que impactam, e que são as polémicas, os escândalos e a indignação. É isso que é devorado pelo algoritmo, que nos capta a atenção e nos mantém agarrados. A literatura é o contrário. É um silêncio cheio de vozes e de outro tipo de estímulos intelectuais, incomparavelmente mais recompensadores do que o imediatismo.

Falando sobre os novos autores. Como escritor da nova geração, deviam existir mais incentivos para a atribuição de bolsas literárias?

As bolsas de criação literária foram reformuladas recentemente e, para ser franco, não estou propriamente a par da atual situação em termos de apoios públicos. Mas tenho alguns amigos que se estão a candidatar e procurarei informar-me. Independentemente disso, são precisos mais apoios e, sobretudo, um ambiente cultural que acolha melhor os novos autores. É evidente o défice enorme que existe em termos de crítica literária, o que acarreta falta de projeção e até encontro com os leitores através dos jornais. Muitos livros acabam perdidos no meio das livrarias e rodeados de silêncios. E não estou a dizer isto em causa própria, até porque o percurso tem-me corrido bem e sou um privilegiado.

A Inteligência Artificial (IA) é um dos desafios que, a pouco e pouco, vai chegando a todas as áreas da sociedade. Acredita que o livro vai resistir e afirmar-se como o último reduto cultural?

Antes de mais, devo dizer que a IA é uma ferramenta extraordinária. A partir do momento em que está inventada, não a podemos negar. É incontornável. O que temos de fazer é controlá-la. Prever os seus riscos e legislá-la, nomeadamente no que diz respeito aos direitos de autor.  Na dimensão literária defendo que é preciso controlá-la e limitar eventuais perigos. Dito isto, não podemos prescindir da IA, ao nível da medicina, da farmacologia e outras áreas relacionadas. A IA tem potencial para ser a salvação, mas também pode ser a perdição. Apesar de tudo, a inteligência biológica é muito maior do que a IA. Somos animais emocionais que raciocinam. A IA tenta simular a emoção e nunca conseguirá reproduzir isso em termos de literatura. Veremos como será a sua evolução nos próximos anos.  Também me apercebo de um certo cansaço e desconfiança das pessoas em relação ao que é produzido digitalmente. Nesse sentido, o livro pode ser, de facto, um reduto extraordinário para encontrarmos a nossa humanidade.

A autora japonesa Rie Qudan reconheceu ter usado a IA no processo de escrita. É uma séria ameaça aos autores?

Certamente. Será a desconfiança relativamente à própria voz autoral.  É um assunto muito delicado. Se noutras áreas pode ser uma ajuda técnica, a intromissão da IA na literatura é uma forma de imiscuir-se na nossa alma. E isso é perigosíssimo.

É frequente ser convidado para conversas literárias e palestras com estudantes um pouco por todo o país. Nos minutos de proximidade com os mais jovens, o que é que tem retido dessas interações?

Há um certo fascínio sobre a criação literária. Como é que se escreve um livro, por exemplo. Tenho-me cruzado com adolescentes interessados em escrever e alguns já em processo de escrita. E sugestões de novas leituras. Aproveito nestas sessões para perguntar aos alunos sobre o que andam a ler. Claro que também existe muita indiferença. Mas acho que o facto de existir interação e interesse por estas sessões tem muita a ver com os professores. A carreira de professor está cheia de dificuldades, mas o melhor que um professor pode fazer é que os seus alunos descubram o que há de melhor em si mesmos.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Distinguido com os prémios LeYa e José Saramago

Afonso Reis Cabral nasceu a 31 de março de 1990, no Porto. Escritor e editor, formou-se em Estudos Portugueses pela Universidade de Lisboa e tem desenvolvido uma carreira tanto na escrita como noutras áreas culturais, incluindo a edição e participação em projetos de inclusão social.  O primeiro romance, "O Meu Irmão", venceu o Prémio LeYa e o segundo, “Pão de Açúcar”, foi distinguido com o Prémio Literário José Saramago.  Acaba de lançar “O Último Avô», com a chancela da LeYa.  Desde 2022, desempenha também a função de presidente da Fundação Eça de Queiroz.

Nuno Dias da Silva
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