É um dos principais rostos da nova geração de escritores nacionais e defende que se deve «normalizar a leitura como parte do quotidiano». Para Madalena Sá Fernandes «o mundo está cheio de histórias que ainda não foram contadas» e a escola tem um papel essencial na democratização do acesso aos livros.
Apesar da sua ainda curta carreira, obteve um grande sucesso e atenção, primeiro com «Leme» e a seguir com «Deriva». O primeiro em forma de catarse sobre uma infância difícil, em que foi vítima de violência por parte do seu padrasto e o segundo uma compilação de crónicas sobre «coisas irrelevantes», com um toque de humor. O escritor, para si, é ele e a sua circunstância? Usar a sua vida como material de escrita é, preferencialmente, o fio condutor do seu trabalho?
Acredito que todo o escritor, de alguma forma, é ele e a sua circunstância. A escrita permite transformar, deslocar, expandir a experiência pessoal para que ela ressoe além do eu. «Leme» nasceu de uma necessidade de dar forma a algo que estava em estado bruto dentro de mim, uma espécie de arqueologia da memória, enquanto que «Deriva», sendo uma compilação de crónicas, seguiu um caminho mais leve, quase como um desvio consciente dessa intensidade inicial. Mas, mesmo quando escrevo sobre outros temas, ou sobre o que parece irrelevante, há sempre um fundo pessoal que atravessa o texto.
Usar a minha vida como material de escrita não é exactamente um objetivo, mas um impulso. Escrevo a partir daquilo que se impõe com uma força que não consigo ignorar. E isso, muitas vezes, vem da experiência vivida, da observação do que me cerca. Mas acredito que a literatura exige um jogo entre o vivido e o reinventado. É um movimento de afastamento e de aproximação: ao mesmo tempo que escrevo sobre mim, já não sou eu. O que interessa não é tanto a exposição da experiência, mas o que pode ser feito com ela.
Revelou que o seu psicanalista, entretanto falecido, a incentivou a escrever, também como forma de exteriorizar medos e traumas. Inicialmente, resistiu a esse conselho, mas acabou por concretizá-lo, após a sua morte. Escrever pode ser também uma forma de terapia?
A escrita pode ter um efeito terapêutico, mas não a vejo exatamente como uma terapia. A psicanálise foi um espaço de elaboração, de escavação interna, enquanto que a escrita se tornou uma maneira de dar forma a esse processo, mas sem a ilusão de que escrever, por si só, cura. Se há algo que a escrita permite, é a transformação: o medo pode ser deslocado para uma personagem, a dor pode ser traduzida noutra voz, o trauma pode encontrar uma estrutura onde se desdobra e se ressignifica. Mas isso não significa que desaparece. Apenas que se move.
Quando o meu psicanalista me sugeriu que escrevesse, resisti, sobretudo por me sentir incapaz de expor um assunto tão íntimo e sobre o qual não falava com quase ninguém. Não queria que a escrita fosse um lugar de catarse, nem que se reduzisse a um relato confessional. Só após a sua morte, quando já não havia ninguém para ouvir, é que percebi que escrever não era apenas um exercício de exposição, mas de construção. Não se trata de aliviar, mas de entender, ainda que essa compreensão nunca seja definitiva.
A escrita pode ser um modo de organizar o caos interno, mas não resolve aquilo que está na origem desse caos. E talvez nem seja essa a sua função. O que ela faz é permitir que nos aproximemos daquilo que, de outra forma, permaneceria sem contorno. E ao nomear alguma coisa, ainda que de maneira oblíqua, tornamo-nos menos reféns disso.
Diz que foi uma criança «desobediente», no sentido saudável do termo. Um escritor deve ser inconformado e interventivo face ao mundo que o rodeia?
A desobediência sempre me pareceu uma forma de curiosidade – um modo de testar os limites do que é dado como certo, de questionar, de não aceitar as coisas apenas porque sim. Se fui uma criança desobediente, talvez tenha sido porque desde cedo senti a necessidade de observar o mundo por ângulos menos óbvios, de desconfiar das respostas fáceis.
Não sei se um escritor deve ser, por princípio, inconformado e interventivo, mas acredito que a literatura, quando é genuína, carrega sempre algum tipo de deslocamento em relação à ordem estabelecida. Mesmo quando não se propõe a ser política ou combativa, escrever é um ato de resistência: contra o esquecimento, contra as narrativas dominantes, contra a superficialidade. Há escritores que intervêm diretamente no debate público, outros que preferem agir na sombra. Ambas as formas são válidas.
Para mim, a escrita é menos uma denúncia explícita e mais um gesto de desvio – uma forma de iluminar os cantos que costumam ficar na penumbra, de interrogar o que parece sólido e de dar voz ao que, muitas vezes, não se ouve. Ser inconformado, nesse sentido, não é apenas gritar contra o mundo, mas aprender a escutá-lo de outra forma.
Sobre o potencial de evasão, projeção e de sonhar que um livro pode provocar aos seus leitores, já muito foi dito. Qual é a sua definição de livro?
Para mim, um livro é um espaço habitável. Um lugar onde a linguagem constrói paredes, abre janelas, desenha corredores de fuga e recantos de silêncio. Não o vejo apenas como um objeto, mas como um território onde se pode entrar e permanecer, onde se pode perder ou reencontrar algo.
Os livros são, ao mesmo tempo, mapas e labirintos. Guiam-nos, mas também nos desorientam. Para alguns, são evasão; para outros, confronto. O que me interessa neles é esse duplo movimento: o de nos arrancar de nós mesmos e, ao mesmo tempo, devolver-nos ao que há de mais profundo em nós.
No seu caso particular, sei que recebeu recentemente uma bolsa literária. A pergunta que faço é: consegue-se viver da escrita em Portugal?
Viver exclusivamente da escrita em Portugal é um exercício de resistência — para não dizer uma ilusão para a grande maioria dos escritores. A literatura não é, aqui, uma profissão no sentido tradicional, com um retorno financeiro estável ou previsível. O mercado é pequeno, os leitores são poucos em comparação com outros países, e as condições para a publicação e divulgação de livros nem sempre favorecem a sustentabilidade de uma carreira literária.
A bolsa literária que recebi é, sem dúvida, um apoio valioso, um reconhecimento que oferece tempo e espaço para continuar a escrever sem a pressão imediata da sobrevivência. Mas viver da escrita significa, quase sempre, somar outras atividades: projectos paralelos que orbitam em torno da literatura, mas que nem sempre são literatura.
Dito isto, talvez a pergunta não seja apenas se se consegue viver da escrita, mas de que forma cada escritor encontra um equilíbrio para continuar a escrever sem que a necessidade de sustento o silencie. Há quem escreva por encomenda, quem publique com regularidade para manter uma presença ativa no mercado, quem prefira a lentidão e se apoie noutros trabalhos para manter a liberdade criativa. Não há um caminho único.
Escrever em Portugal — e em quase toda a parte — é menos uma profissão e mais um compromisso. Com a linguagem, com a memória, com a imaginação. E com a teimosia de continuar.
As feiras do livro de Lisboa e Porto costumam ser o ponto forte do ano para escritores, editores e livreiros, mas os dados não mentem: os portugueses têm baixos níveis de leitura. Como é que se atrai, mais novos e mais velhos, para os livros?
A questão da leitura em Portugal é complexa e não pode ser reduzida apenas a hábitos ou preferências individuais. Ler exige tempo, disponibilidade mental e um ambiente que favoreça essa prática, e nem sempre esses fatores estão presentes na vida dos portugueses. Os dados sobre baixos níveis de leitura refletem não apenas escolhas culturais, mas também condições socioeconómicas, modelos de ensino e a forma como a literatura é apresentada — ou imposta — ao longo da vida. Acredito que a atração pelos livros não deve passar por um discurso moralista ou pela ideia de que “é preciso ler mais”, como se fosse um dever ou uma obrigação. O prazer da leitura nasce do encontro certo entre um leitor e um livro. E esse encontro pode acontecer de muitas formas: através da escola, mas também através do cinema, do teatro, das redes sociais, das livrarias e feiras que estimulam a curiosidade.
É preciso normalizar a leitura como parte do quotidiano, e não como um evento raro ou excepcional. Tornar os livros visíveis, acessíveis, integrados na cultura. Não se trata apenas de criar incentivos à leitura, mas de construir uma relação mais natural e menos intimidatória com os livros.
Para atrair leitores mais jovens, talvez o caminho passe por deixar de tratar a literatura como algo distante e sagrado. Mostrar que há livros para todos os ritmos, gostos e estados de espírito. Para os leitores mais velhos, talvez a questão seja resgatar esse prazer inicial.
Não há uma única estratégia. Mas há um princípio essencial: para que as pessoas leiam, os livros precisam de estar vivos no seu dia a dia, nas conversas, nos espaços públicos, na forma como pensamos e falamos sobre o mundo.
O contexto familiar levou-a a ler desde muito cedo. Deve ser em casa ou na escola que devem ser incutidos hábitos de leitura aos mais novos?
Acredito que a leitura não deve ser vista como uma responsabilidade exclusiva da escola ou da família, mas sim como um ecossistema em que ambas têm um papel fundamental. A casa pode ser o primeiro contacto com os livros, o lugar onde a leitura se torna natural, associada ao prazer e não à obrigação. Se uma criança cresce num ambiente onde os livros estão presentes, onde os adultos lêem e partilham histórias, é mais provável que desenvolva uma relação afectiva com a leitura. Isso aconteceu comigo.
Por outro lado, a escola tem um papel essencial na democratização do acesso aos livros. Nem todas as crianças crescem em casas onde há estantes cheias ou adultos que lêem. Por isso, a escola pode ser um espaço onde se descobre o poder das palavras, onde o livro se apresenta como uma coisa próxima. Mas, para isso, é essencial que a leitura na escola não seja apenas um exercício de análise e decifração, mas também um convite ao prazer, à descoberta que um livro pode proporcionar.
O erro, muitas vezes, está em transformar a leitura num dever rígido, sem espaço para a curiosidade. A leitura imposta pode gerar resistência, enquanto a leitura estimulada, partilhada, pode abrir portas.
Talvez a melhor resposta seja que os hábitos de leitura devem nascer de todos os lados. Em casa, na escola, nas ruas, nas bibliotecas, nas conversas. O importante não é apenas onde se aprende a ler, mas como se aprende a gostar de ler.
Os telemóveis, de uma forma geral, e as redes sociais, em particular, estão a roubar tempo à leitura. E o que se lê através destes meios acontece de forma fragmentada. Que consequências, especialmente nos mais jovens, é que esta realidade pode ter no vocabulário, compreensão de textos e aprendizagem do que se ouve e lê?
O impacto das redes sociais e dos telemóveis na forma como lemos e absorvemos informação é inegável. A leitura tornou-se mais fragmentada, mais acelerada, frequentemente interrompida por notificações e estímulos constantes. O tempo de atenção encolheu, e a paciência para textos longos, densos, que exigem imersão e reflexão, parece cada vez mais rara.
Nos mais jovens, isso pode ter consequências diretas na capacidade de interpretar textos complexos, na riqueza do vocabulário e até na forma como organizam o pensamento. Se tudo é consumido em fragmentos rápidos, a própria estrutura do raciocínio pode ser afectada, tornando-se mais superficial, menos treinada para a construção de relações profundas entre ideias. A leitura de um livro exige um tipo de atenção que as redes sociais não estimulam — um mergulho prolongado num universo que se constrói aos poucos, sem recompensas imediatas, sem a lógica do «scroll».
Mas é importante não demonizar a tecnologia. Os telemóveis e as redes sociais não são apenas inimigos da leitura; também podem ser aliados, dependendo da forma como são usados. Há cada vez mais comunidades de leitores, clubes de leitura digitais, partilhas de livros que despertam o interesse de quem, de outra forma, talvez não se aproximasse deles. A questão central é como equilibramos esses dois mundos: como ensinamos os mais jovens a desacelerar, a resistir à pressa da informação instantânea, a cultivar o prazer da leitura profunda num mundo que lhes oferece constantemente distrações.
Talvez o desafio não seja combater a tecnologia, mas criar formas de a tornar um portal para experiências mais ricas, mais duradouras. A capacidade de ler um texto longo, de compreender nuances, de absorver conhecimento de forma crítica e reflexiva não pode tornar-se um hábito do passado. E garantir que isso não aconteça é, sem dúvida, uma responsabilidade coletiva — da escola, da família, dos próprios escritores, que precisam de encontrar novas formas de dialogar com esse tempo veloz sem perder a profundidade.
Está apreensiva com a erosão que o mundo digital está a exercer sobre a comunidade literária e de leitores a nível global? Os escritores são, por assim dizer, o último reduto neste combate que se afigura desigual?
O mundo digital transformou radicalmente a forma como consumimos cultura, e a literatura não está imune a essa mudança. O tempo que antes era dedicado à leitura foi diluído entre múltiplos estímulos, e a paciência para narrativas longas tornou-se mais rara. Mas isso não significa que os livros tenham perdido o seu lugar ou que os leitores tenham desaparecido. Apenas que estão a mudar, como sempre mudaram ao longo da história.
Os escritores não são um “último reduto”, mas são, talvez, aqueles que continuam a insistir na importância da lentidão, da profundidade, da palavra pensada e trabalhada. Neste combate desigual contra a velocidade e a fragmentação, a literatura pode parecer um gesto de resistência — e, de certa forma, é. Mas não acredito que seja uma guerra perdida. Ainda há leitores que buscam o espaço de um livro como quem procura um refúgio. Ainda há quem deseje a experiência de uma história que exija tempo, que peça envolvimento, que não se possa consumir em minutos e descartar logo a seguir.
Talvez o desafio não seja lutar contra a era digital, mas encontrar formas de coexistência. Acredito que sobretudo por vivermos um mundo cada vez mais acelerado, a importância dos livros é ainda maior. O desafio é encontrar formas de a literatura poder dialogar com novas linguagens sem perder a sua essência. Se há coisa que os escritores sempre fizeram foi adaptar-se ao seu tempo sem abdicar da sua voz. E acredito que é isso que continuará a acontecer.
A literatura não vai desaparecer. Mas cabe-nos, a todos — leitores, escritores, editores, professores —, garantir que ela continua a ser um espaço onde o pensamento, a imaginação e a complexidade humana podem existir sem pressa.
Não sei se já teve oportunidade de ser convidada para uma palestra nalguma escola. Que mensagem forte já deixou ou gostaria de deixar à plateia de jovens estudantes que a ouvem?
Ainda não tive muitas oportunidades de falar em escolas, mas gostaria, e se tivesse de deixar uma mensagem a uma plateia de jovens, acho que começaria por dizer que a escrita – e a literatura – não são algo distante ou inalcançável. Não pertencem a um grupo seleto de pessoas iluminadas. Escrever, ler, pensar criticamente sobre o mundo são atos acessíveis a todos, independentemente de onde vieram ou do que lhes disseram que poderiam ser.
Gostaria de dizer que as palavras têm um poder enorme, mas que esse poder não está só nos livros. Está também na forma como cada um se apropria da própria voz. Escrever é, no fundo, reclamar um espaço no mundo, recusar a invisibilidade. E que a escrita não precisa de ser perfeita para ser legítima.
Muitas vezes, na escola, a literatura surge como um corpo fechado, um conjunto de regras e de análises distantes. Mas os livros são muito mais do que isso. São lugares habitáveis. São portas. E ninguém precisa de pedir permissão para entrar.
Talvez a mensagem mais forte que gostaria de deixar fosse esta: o mundo está cheio de histórias que ainda não foram contadas. E muitas delas são as vossas.