Portugal é uma permanente «fonte de inspiração» para o humor que usa como «arma para apontar as falhas do sistema». Controverso, polémico e com um forte pendor político, Diogo Faro não dá tréguas aos partidos, aos governos e aos poderosos.
A peça de teatro «Amor, quero beijar mais pessoas» já encheu 12 salas, em Lisboa, e tem mais sessões agendadas para o Porto, em maio. É um espetáculo «fora da caixa» que aborda o relacionamento não monogâmico que mantém com a sua namorada, Joana Brito Silva. Foi uma decisão corajosa e uma pedrada no charco abordar o tema das relações poliamorosas e desmistificar esta nova forma de estar nos relacionamentos?
De certa forma, sim. Eu e a Joana estamos juntos há cerca de dois anos e meio e desde o início foi uma relação não monogâmica, porque entendemos que era o melhor para nós, apesar de gostarmos muito um do outro, também queríamos estar com outras pessoas e envolver-nos sexual e romanticamente com essas mesmas pessoas. Esta peça gerou muita curiosidade à nossa volta, porque este é um tema ainda muito pouco falado em Portugal. E a partir dessa curiosidade surgiu a ideia de criarmos uma peça de teatro. A Joana é atriz e encenadora, enquanto eu sou comediante. E pretendemos com a peça fazer com que as pessoas reflitam sobre o tema. Não quero com isto dizer que queremos impingir a não monogamia ou o poliamor a alguém. O objetivo passa por questionar os modelos relacionais e partilhar a ideia de que pode haver várias formas de nos relacionarmos uns com os outros, sexual e romanticamente.
Depreendo das suas palavras e pelas salas cheias que alcançaram que a reação do público tem sido calorosa?
A reação tem sido muito boa e o feedback muito positivo, tanto de quem partilha a nossa visão, como de outras pessoas que preferem ser fiéis a uma lógica monogâmica. A perspetiva era abrir meia dúzia de espetáculos e acabámos por ir somando, consecutivamente, novas datas à medida que os bilhetes esgotavam. Ainda vamos fazer uma última data em Lisboa, a 19 de março, e depois faremos duas datas no Porto, em maio.
Em 2020 a revista «Máxima» apelidou-o de «pugilista digital» pelo fervor que coloca nos seus combates dialéticos nas redes sociais. Considera-se um humorista com uma veia de ativista?
Não me preocupo muito com o rótulo, mas admito que o meu humor é muito político em algumas matérias, como a habitação. Portugal não tem, de uma forma geral, humoristas com o meu estilo de intervenção. Sou, por assim dizer, um humorista com bastantes opiniões e que utiliza a comédia e o humor para veicular as suas ideias e convicções. De uma forma vincada. É este tipo de humor em que acredito e que me dá gosto fazer.
Considera-se polémico por natureza ou limita-se a proferir verdades incómodas?
Admito que o poliamor ou a masculinidade tóxica possam ter alguma carga polémica. Mas, de uma forma geral, não me considero polémico. É polémico dizer que os homens e as mulheres devem receber os mesmos salários? Que o racismo é horrível? E as pessoas LGBT devem ter os mesmos direitos que as pessoas heterossexuais? São coisas que deviam ser normalíssimas numa democracia. Mas é sabido que nas sociedades em que vivemos ainda está muito por fazer.
Fazer humor é mais fácil ou mais difícil em tempos de crise ou de «vacas gordas»?
Nunca vivi em tempos de «vacas gordas». Sou um artista normal que vive com as minhas dificuldades. Há anos piores e outros melhores. Há anos favoráveis e há outros que em certos meses não sei bem como vou pagar a renda. O meu humor é virado para “bater” nos partidos, nos governos, nos poderosos, nos CEO e acionistas das empresas. Dá sempre para fazer humor. Por outro lado, também é algo deprimente haver tantos motivos para fazer humor. Mas há o lado reconfortante de podermos aliviar um pouco e dispor bem as pessoas que estão a passar por mais dificuldades.
Tem a noção que Portugal está longe de ser um país aborrecido e cinzento para os humoristas…
Está constantemente a acontecer alguma coisa. Portugal é uma permanente fonte de inspiração. Não falta material, seja político ou de outra natureza. O importante é ser criativo e trabalhar arduamente o conteúdo e os assuntos que o que nos rodeia proporciona.
A habitação, o SNS e o combate à discriminação são algumas das suas principais bandeiras de intervenção. Mas é nas desigualdades e no fosso entre classes que mais se tem centrado ultimamente. O que é que o indigna mais?
Vivemos num país muito desigual. Cerca de 50 por cento da riqueza está concentrada em aproximadamente 5 por cento das famílias mais ricas. Os milionários estão a ficar cada vez mais ricos, enquanto uma parte importante da população perde, a cada dia que passa, poder de compra. Revolta-me que todos os dias existam mais pessoas a viver em tendas. A par com a gritante desigualdade económica temos um país super machista, racista e homofóbico. É igualmente revoltante, mas ao mesmo tempo dá-me inspiração para fazer humor. O humor é a «arma» que eu tenho para apontar as falhas do sistema.
É um dos rostos do movimento cívico «Casa é um direito» e dinamizou a manifestação ocorrida a 1 de abril do ano passado, após ter recebido centenas de relatos, alguns deles pungentes, através das redes sociais. Pode partilhar algum testemunho que mais o tenha tocado em termos de precariedade habitacional?
Algumas descrições são particularmente trágicas. Pessoas despejadas, outras ameaçadas pelos senhorios e até casais com relações terminadas mas que tinham de continuar a viver debaixo do mesmo teto, inclusive a dormir na mesma cama depois da separação. Ao mesmo tempo que milhares de portugueses se veem aflitos para pagar a renda de casa, os bancos portugueses tiveram quase 4 mil milhões de euros de lucro. E há quem ache isto normal.
O aumento do número de emigrantes no nosso país tem potenciado estas situações de precariedade habitacional e o recente incêndio mortal na Mouraria, em Lisboa, destapou o caso de dezenas de cidadãos estrangeiros que vivem em camaratas, em regime de cama quente…
Situações como essas são muito mais frequentes do que se pensa. O que é completamente desumano, ainda para mais exigindo-se preços de renda absolutamente surreais. Boa parte dos 600 ou 700 euros que conseguem ganhar vai para pagar essa renda e o pouco que sobra é canalizado para as famílias que ficaram nos seus países de origem.
Ainda sobre os emigrantes, defende que «há racismo sistémico em Portugal». Os emigrantes estão instalados em cada vez maior número desempenhando muitos dos trabalhos que os cidadãos portugueses rejeitam. Está a nascer uma cultura xenófoba e discriminatória, até com o argumento securitário como suporte?
Não está a nascer, sempre houve essa cultura xenófoba e discriminatória, desde o Estado Novo. Passos Coelho pegou agora, em plena campanha eleitoral, no argumento da segurança interna. E relembro que já tinha sido ele a dar a mão a André Ventura quando este dirigiu um discurso contra os ciganos. É um discurso recorrente e que tem-se avolumado com a onda de emigração indostânica, com origem na Índia, Paquistão, etc. Que no fundo são indivíduos que só querem trabalhar e fazer a sua vida. Do ponto de vista economicista é preciso não esquecer o seu contributo para a Segurança Social e a ajuda preciosa que dão no combate ao nosso acelerado declínio demográfico. Mas antes de tudo isto estamos a falar de seres humanos, com emoções e sonhos. E é preciso dizer que, ao contrário do que se pretende fazer crer, não aumentou a criminalidade praticada por emigrantes. Aliás, o maior crime em Portugal é a violência doméstica e nós não vemos os partidos da direita – nomeadamente o PSD e o Chega – a falarem sobre isto.
Há uma cultura crescente de ódio e crispação na sociedade, sendo as redes sociais o principal «campo de batalha» desta contenda onde é particularmente ativo. Recebe, por essa via, muitos insultos e ameaças?
Gosto muito de redes sociais. É um espaço muito interessante e que proporciona discussões muito ricas. E também é possível conhecer pessoas incríveis. Mas também é um antro de ódio. Recebo ameaças do género «vou-te matar» ou «vou-te espancar». Mas é preciso perceber que há um modelo de negócio das redes sociais que ganha com as emoções mais quentes, em que emerge a raiva, em que se responde por impulso, etc.
Estamos a poucas semanas dos 50 anos do 25 de abril. Temos motivos para celebrar ou para refletir?
O 25 de abril é para celebrar sempre e recordar a derrota do Estado Novo. Meio século depois está ainda muito por fazer e é preciso sublinhar que os direitos conquistados estão longe de estar garantidos. Veja-se o caso do direito ao aborto, que após ter sido conquistado, é agora posto em causa, quando já não seria de todo algo esperado. Temos de estar muito atentos aos que nos querem retirar direitos. Por isso, o 25 de abril deve fazer-nos lembrar que todos os dias são dias de luta.
Sou do tempo em que a geração foi chamada de «rasca». A atual geração, com a crise ambiental e habitacional, passou a estar permanentemente…à rasca?
Sem dúvida. Muitos médicos e professores jovens são obrigados a ir para longe de casa exercer a sua profissão, auferindo salários baixos para a importância do que fazem. Insisto: a questão da habitação é a mais estrutural das nossas vidas. Até para os estudantea. Muitos chegam mesmo a abandonar os estudos por não terem suporte económico e financeiro para deslocações, pagar alojamento e as propinas.
Chamar a atenção para as alterações climáticas atirando tinta verde para cima de um político é um ato legitimo ou censurável?
Não critico os jovens que enveredam por práticas de chamar a atenção de modo mais radical para uma causa justa e em que estão tão empenhados, bem como pela coragem revelada. Não os considero extremistas, mas talvez admita que nem todas as ações sejam eficazes. Para além disso não há como negar o efeito e impacto das alterações climáticas. É tão evidente que é ridículo e absurdo dizer o oposto.
Segundo um inquérito promovido pela Associação Académica de Coimbra perto de 70 por cento dos estudantes da Universidade de Coimbra pensa emigrar. Ver a chamada «geração mais bem preparada de sempre» fixar-se além-fronteiras deve ser assumido como uma derrota nacional?
Claro. Só com habitação acessível e salários maiores será possível inverter este ciclo. De uma vez por todas é preciso baixar os impostos. Um país que nivela tão por baixo não se pode surpreender que os “seus” procurem oportunidades e melhor qualidade de vida fora de portas.
Cara da Notícia
Humor e várias bandeiras
Deixou o emprego de publicitário para fazer “stand up comedy” e hoje é um caso de sucesso nas redes sociais e em podcasts, locais onde desfralda, entre outras, a bandeira pela igualdade de género e a defesa por uma habitação digna. Antes deste passo, protagonizou o projeto «Sensivelmente idiota», onde entrevistava desconhecidos na rua. Uma arrojada peça de teatro sobre o poliamor é a última descoberta deste comediante multifacetado, que muitos garantem ser um influencer político. O seu nome é Diogo Faro, 37 anos, natural de Lisboa.