Susana Feitor afirma que «a forma como está organizado o dia dos jovens e das crianças e a falta de complementaridade entre as escolas e as atividades desportivas são grandes obstáculos» à prática desportiva. A ex-atleta e recentemente nomeada presidente da Fundação do Desporto pretende fomentar uma relação de proximidade com o tecido empresarial de cada região do país, tendo em vista a promoção do desporto.
Sempre disse que mesmo após abandonar a alta competição, gostaria de continuar ligada ao desporto. Depois de uma longa e bem-sucedida carreira na marcha atlética, foi nomeada, em abril, para presidente da Fundação do Desporto. Como estão a ser estes primeiros meses?
Para começar, está a ser um desafio muito exigente para me integrar numa organização que desconhecia como funcionava. Eu própria, à semelhança de outras pessoas, inclusive, da esfera do desporto, tinha um conhecimento superficial da Fundação do Desporto. É preciso admitir que esta não é uma organização que as pessoas tenham no “top of the mind”. É muito fácil perceber que existe um Comité Olímpico, um Comité Paralímpico e as federações de cada modalidade, mas a Fundação do Desporto ainda não é um “player” neste patamar. Quando cheguei, defini como um dos meus objetivos colocar a Fundação numa perspetiva mais elevada, nomeadamente no âmbito do reconhecimento imediato por parte da opinião pública. Mesmo estando na esfera público-privada, esta é uma entidade disponível para que as empresas ou outras entidades queiram apoiar o desporto. Canalizamos o financiamento para atividades, projetos, atletas ou clubes que não tenham retorno, para além da imagem. E essa prática concede benefícios fiscais em sede de IRC a quem quer apoiar o desporto, seja com que montante for. É uma estratégia de benefícios fiscais através da Lei do Mecenato. Esta é, precisamente, a maior ferramenta de que a Fundação dispõe. Mas para que consiga desenvolver na plenitude a sua missão precisa, naturalmente, de ser mais reconhecida.
Pretende dar à Fundação a notoriedade pública que ela ainda não tem. O facto de ser um rosto conhecido, há várias décadas, do desporto nacional pode facilitar o seu esfoço de “diplomacia” junto de empresas, dos particulares e de forças vivas dos distritos do país?
Descreveu na perfeição o que se pretende. O programa que queremos levar a cabo tem de ser de proximidade com o tecido empresarial de cada região. Mas para começar, como referi anteriormente, é necessário dar notoriedade à instituição, de forma que as pessoas não questionem a sua função, ou a razão da sua existência. Depois, no âmbito da atuação da Fundação, é preciso aprimorar e potenciar a comunicação com o exterior, nomeadamente nos meios digitais (redes sociais, por exemplo), para conseguir passar a informação de forma eficaz sobre os projetos que estão em curso e que carecem de apoios para se desenvolverem. Os apoios podem ser, por exemplo, ao nível dos centros de alto de rendimento, da investigação ou de atletas que queiram participar em competições internacionais e que estão à margem do apoio do alto rendimento. Entendo também ser da maior relevância desenvolver atividades que aportem valor acrescentado ao trabalho da Fundação do Desporto. Se esse objetivo for alcançado, conseguiremos chegar até aos empresários, apresentando-lhes propostas de valor interessantes para que eles sintam que estão a contribuir para o desenvolvimento do desporto, tanto da sua região, como também do próprio país, como um todo.
A Fundação coordena os 13 espaços que constituem a Rede Nacional de Centros de Alto Rendimento – o Jamor fica de fora, porque está na dependência do IPDJ. Qual o papel da Fundação para angariar apoios e recursos para estas infraestruturas de elite?
Parte do financiamento que o Estado concede para estas infraestruturas é canalizado através da Fundação do Desporto. A coordenação desta rede, com centros um pouco por todo o país, de Viana do Castelo a Vila Real de Santo António, é o maior propósito da Fundação do Desporto. As valências que existem estão disponíveis para os atletas de alto rendimento e para as federações. O Comité Olímpico de Portugal (COP) e o Comité Paralímpico de Portugal (CPP) também podem usar estas infraestruturas. É preciso referir, contudo, que estes centros de alto rendimento não são de utilização grátis, nem exclusiva das organizações que referi. Os gestores dos centros são os municípios e que, por terem encargos vários para a manutenção destas valências, precisam trabalhar para a sustentabilidade financeira, para fornecerem os serviços que têm aos nossos atletas nacionais de modo o menos oneroso possível, têm de receber apoios.
Esteve presente em cinco Jogos Olímpicos, sendo mesmo a recordista nacional em participações. Dentro de poucos meses teremos as olimpíadas, em Paris. Qual é o papel que desempenha a Fundação do Desporto? Existe alguma articulação com o COP?
O COP é a entidade que gere o projeto olímpico e, como tal, vai levar os nossos atletas até Paris. Por sua vez, o Comité Paralímpico gere o projeto paralímpico e também vai levar os seus atletas até à capital francesa. A contribuição das outras entidades poderá ser na ótica de ajudar naquilo que o seu âmbito permite. As federações têm a seu cargo a preparação pura e dura dos atletas e da gestão ao nível do financiamento que é atribuído via projeto. A Fundação do Desporto tenta ajudar no que é possível, visto que os recursos também são escassos, mas obviamente que a prioridade passa pela manutenção dos centros de alto rendimento, de forma que a gestão local destas infraestruturas esteja sempre preparada para receber os atletas.
Há sempre uma grande expetativa na obtenção de medalhas por parte dos atletas portugueses. Com os apoios que existem, pensa que devíamos valorizar mais, nestas provas, a obtenção do chamado diplomada olímpico (classificação até ao oitavo lugar) ou até de novos recordes nacionais?
O problema é que depois de passar a febre olímpica, parece que tudo acaba por cair um pouco no esquecimento. O papel da Fundação nessa matéria não é grande, mas dentro das suas competências passa por contribuir na promoção. Sabemos que não é suficiente. Pessoalmente, penso que há um grande papel que cabe à comunicação social, que se acompanhasse outras modalidades – que não apenas o futebol – de forma mais próxima e dedicada, acredito que os portugueses não se focariam, em exclusivo, na obtenção de medalhas.
Mas o que é que explica o magnetismo pelo futebol?
As pessoas interessam-se por futebol porque seguem muito os detalhes que a comunicação social lhes proporciona. E depois acaba por ser acompanhada como uma série da Netflix ou uma novela na televisão, na medida em que se cria um enredo, uma história. As outras modalidades acabam por sofrer pelo facto de não serem acompanhadas com este detalhe. Ou seja, o interesse não é alimentado.
O que é que sugere para mudar este estado de coisas?
Considero que todas as entidades desportivas têm muito trabalho pela frente de modo a cativar os órgãos de comunicação social, em especial os próprios jornalistas, para cada uma das modalidades. Quem se interessa pelos assuntos do futebol são os jornalistas e são estes que ao escreverem ou ao filmarem disseminam aquela mensagem. As várias organizações desportivas têm de trabalhar para ajudar e cativar os jornalistas, estes profissionais têm de ser considerados parceiros e sentirem-se mais envolvidos, mais conhecedores das realidades. Acredito que desta forma noticiariam de uma maneira mais regular os resultados e as conquistas, mesmo que não fosse uma medalha de um atleta português, as histórias que todos têm para contar, de qualquer outra modalidade à margem do futebol.
Compreendo o que quer dizer. Mas se os jornais e alguns programas televisivos que continuam a alimentar o «enredo», como diz, não tivessem leitores ou audiências, não acha que os profissionais da comunicação social já tinham virado a sua atenção para outros conteúdos?
A cultura desportiva do país é alimentada por aquilo que é oferecido ao grande publico. E o que é transmitido maioritariamente nos órgãos de comunicação social dominantes é o futebol. Mas é preciso reconhecer que o futebol, como indústria, fez o seu trabalho e posicionou-se. As outras federações e clubes, à margem do futebol, têm de fazer igualmente o seu papel, para serem tidos em consideração.
Recentemente, o râguebi, o andebol e o futebol feminino tiveram prestações muito interessantes para um país que está longe de estar nos lugares cimeiros destas modalidades…
As participações das seleções de râguebi e de futebol feminino, nos respetivos mundiais, mexeram com a emoção e a atenção das pessoas. O râguebi só ganhou um jogo e o futebol feminino não passou da fase de grupos. Mas ambos fizeram história. É isto que me leva a dizer que a desvalorização de certos resultados que tanto custam a obter não é por culpa do grande público. Insisto: é imperioso fazer um esforço conjunto para posicionar os outros desportos, enaltecendo o seu lado emotivo, o interesse, a alegria, como também os valores que partilham, de esforço, conquista e resiliência.
Representa também o sangue novo do dirigismo desportivo em Portugal. Por ser ex-atleta e formada em gestão das organizações desportivas, considera-se melhor preparada para ser dirigente de uma entidade como a Fundação do Desporto?
Ter ambas as competências e experiências é uma vantagem. Mas só ser ex-atleta não chega, também é preciso ter apetência pelas funções de dirigente ou algo semelhante que pode vir a desempenhar. E isso só se descobre durante a carreira ou quando esta se aproxima do fim. As vivências e competências desenvolvidas durante a carreira desportiva são muito ricas e valiosas e permitem um conhecimento do terreno que faz muito diferença. Até em comparação com os políticos e outros decisores, que nem sempre conhecem bem a realidade. Muitas das decisões que tomam resultam de pressões que nada têm que ver com a realidade concreta. Por outro lado, os ex-atletas que sintam ter apetência para seguir uma carreira de dirigente devem munir-se de competências técnicas para desempenhar as funções. No meu caso concreto, não consigo dissociar o lado do treino e da performance, do lado da gestão, que se relaciona com o domínio dos apoios.
O caso do polémico beijo do ex-presidente da Federação Espanhola de Futebol, Luís Rubiales, à capitã da seleção campeã do mundo, Jenni Hermoso, catapultou para o debate a questão do assédio moral e sexual no desporto. Ainda há muros e estigmas por derrubar no papel que as mulheres desempenham no desporto?
Ainda existem. A nossa matriz cultural ainda vem do tempo em que as mulheres não tinham posições de relevo. É uma conquista que é lenta, mas que se tem de verificar pelo mérito e pelas capacidades no desempenho da função que ocupa. A capacidade das mulheres não está em questão. Mas da mesma forma que na esfera masculina há pessoas incompetentes, do lado feminino também há pessoas sem competência para o exercício de determinada função. Pessoas com mais sensibilidade e outras com menos, para determinados assuntos. O grande problema das mulheres continua a ser o chegar a lugares de topo, por falta de oportunidades. E isso não acontece só no desporto. Ainda está muito presente em toda a sociedade. Se se analisar o contexto dos clubes e das associações, há mais homens do que mulheres em cargos dirigentes, e isso explica-se porque o contexto familiar ainda é maioritariamente gerido pelo género feminino, o que deixa os homens mais disponíveis para outras atividades.
Adotaria alguma medida com impacto no curto prazo para alterar esta situação?
Eu, em determinadas circunstâncias, sou defensora das quotas em entidades públicas e nas entidades de gestão do desporto, nomeadamente federações, organizações com capacidade de decisão a nível governamental, etc. Mas as quotas devem ser preenchidas, naturalmente, com elementos do género feminino competentes e com mérito. Gostaria também de realçar o que está a acontecer na esfera pública, em particular nesta legislatura, em que primeiro-ministro deu um bom exemplo ao incluir no seu governo muitas mulheres, sendo este um dos executivos mais paritários da história do nosso país. Foi uma mensagem que passou e que deve ser replicada com outros exemplos. A minha indicação para as funções que desempenho também é para cimentar o exemplo a dar. Mas atenção, se não for competente, também lhe digo que pouco me serve, porque acaba por ter o efeito contrário. E só esta minha frase espelha a pressão que sentimos, em muitos casos colocada por nós, porque queremos dar resposta em conformidade, justificar, quando não devia ser necessário. Cada um tem o seu perfil, as suas competências e são essas as ferramentas-base necessárias. Só quando formos muitas é que haverá mais tolerância social para todo o tipo de mulheres, competentes, incompetentes, interessadas, desinteressadas.
Para terminar, gostaria de abordar a relação entre o desporto e a escola. Atrair crianças e jovens para o desporto é cada vez mais difícil devido ao aumento do sedentarismo, em boa parte provocado pela atração das novas tecnologias?
Não são as novas tecnologias que constituem um entrave para a prática desportiva. A forma como está organizado o dia dos jovens e das crianças e a falta de complementaridade entre as escolas e as atividades desportivas são grandes obstáculos. Em certos municípios – infelizmente, ainda em poucos – já se começa a assistir a um esforço de articulação. Os municípios são os grandes motores no desenvolvimento do desporto e também no apoio prestado aos pequenos clubes que abrem as portas aos praticantes e respetivas famílias para a prática desportiva.
A escola está de costas voltadas para a prática desportiva?
A escola tem um horário muito alargado e que deixa pouco tempo e espaço para encaixar uma atividade fundamental como é o desporto. Já para não falar do tempo de trabalho das famílias, que também se prolonga durante muitas horas. Em suma, os nossos alunos têm pouca disponibilidade para a prática de atividades extra. Seja a música, o teatro, o desporto, etc. Não existe uma solução chave na mão para este problema, mas defendo que deve existir uma combinação entre o desporto associativo e o modo como pode ser encaixado no horário escolar. Para evoluir, só será possível misturar o desporto escolar e associativo. Não podem continuar a ser dois mundos tão distantes e separados. Têm de estar mais unidos e articulados. É uma questão já referida por muitos e muito antiga, mas continua ainda por dar a volta. Existem algumas medidas muito interessantes que algumas federações desportivas têm nas escolas, as mais recentes são o ciclismo e o futebol, que darão os seus frutos. É um processo longo que requer planeamento a longo prazo e uma boa articulação. Se fosse fácil, já não era assunto.
Cara da Notícia
A recordista de participações nos Jogos Olímpicos
Susana Feitor nasceu em 28 de janeiro de 1975, em Alcobertas, Rio Maior. Foi nomeada pelo governo, em abril passado, presidente do conselho de administração da Fundação do Desporto, uma entidade sem fins lucrativos, dotada de órgãos e património próprios e de autonomia administrativa e financeira. É licenciada em Gestão das Organizações Desportivas pela Escola Superior do Desporto de Rio Maior. Tem um percurso reconhecido no desporto, nomeadamente no atletismo. Como marchadora, participou em cinco Jogos Olímpicos, entre Barcelona’92 e Pequim2008, destacando-se o seu 13.º lugar em Atlanta’96 nos 10 quilómetros marcha, numa carreira marcada pelo bronze nos Mundiais de 2005 nos 20 quilómetros, depois de ter sido campeã da Europa (1993) e do Mundo (1990) júnior, nos cinco quilómetros. Treinadora de marcha atlética (função interrompida desde que assumiu funções na Fundação do Desporto), é também membro do Conselho Nacional do Desporto. Anteriormente, foi vogal do Comité Olímpico de Portugal, entre 2005 e 2009. E formadora no programa “Athlete365 Career+” do Comité Olímpico Internacional. Chefiou a missão às “Universíadas” de Taipé, em 2017 e Nápoles, em 2019.