Acumula 35 anos a investigar o complexo universo dos adolescentes. Margarida Gaspar de Matos, psicóloga clínica e da saúde e psicoterapeuta, especializada em adolescentes, revela o que pensam, o que desejam e o que sentem os jovens sobre a sociedade onde se inserem, a escola onde estudam e a família e os amigos com quem se relacionam, num mundo onde a internet está sempre presente.
Os adolescentes vivem, desde 2008 até à atualidade, num contexto de incerteza e volatilidade. Primeiro foi uma duradoura crise económica, depois a Covid-19 e, já este ano, eclodiu um conflito bélico, com repercussões mundiais. De que forma é que este contexto adverso e negativo condiciona e molda a personalidade de um adolescente?
Creio que, por vezes, centramo-nos muito num determinado período do tempo e perdemos a verdadeira espessura histórica. Certamente, os seus avós, também sofreram bastante com o período da II Guerra Mundial e com outros momentos críticos em meados do século passado. É verdade que esta geração e também a minha, e a sua, não tem parado de acumular dissabores desde 2008, mas defendo que devemos começar a ter um discurso mais positivo. A vida tem dificuldades, e não é só para os adolescentes. O que penso que devemos todos fazer é vislumbrar oportunidades na sucessão de circunstâncias da nossa vida. E perante um contexto adverso, como o que temos vivido, a flexibilidade é uma capacidade psicológica que os mais jovens têm de saber cultivar. Os adultos devem ajudar os adolescentes a ter competências para viver na incerteza, com o máximo bem-estar. Não podemos deixar que caiam no conformismo.
A amplificação dos acontecimentos por parte dos órgãos de comunicação social e mais, recentemente, por intermédio da internet, também influencia a forma como os acontecimentos são percecionados?
Penso que sim. Voltando à II Guerra Mundial, se o peso mediático já se fizesse sentir nessa primeira metade do século passado estou em crer que as pessoas que viveram nesse período teriam ficado muito mais afetadas do ponto de vista societal, como civilização.
Perante um contexto que gera apreensão e angústia, acredita que os jovens ainda mantêm intacta a sua capacidade de sonhar?
Esta geração é muito pragmática e pouco romântica. Sonhar é algo associado a um certo romantismo e não estou a ver que seja muito «a praia» desta geração. Eles tentam viver o dia a dia e usufruir das pequenas coisas. Estão muito ligados e conetados à internet, que está disponível 24 horas por dia, em qualquer local do mundo.
Esta geração é mais racional do que as anteriores?
Não diria isso. A dimensão de sonhar é que não está, de facto, a ser muito vivida. Do ponto de vista do bem-estar psicológico, a maioria está algo perturbada, na sua generalidade. Mais irritadiços, mais ansiosos, mais tristes, menos persistentes e menos combativos a acharem que vale a pena lutar por um futuro.
Considera a internet o principal fator diferenciador dos 35 anos que leva a estudar os adolescentes. No prefácio do seu livro, Daniel Sampaio repesca o termo «adolecrã» (junção de adolescente e de ecrã), da autoria de Jacques Attali, para caraterizar a relação dos jovens com os telemóveis. Qual é a extensão do impacto das tecnologias da informação e da comunicação na vida social e escolar do adolescente?
O acesso às tecnologias da informação e da comunicação é um ponto civilizacional sem retorno. Antes de mais, gostaria de deixar um conselho aos pais: não diabolizem o uso dos telemóveis e outros aparelhos tecnológicos usados pelos seus filhos, mas procurem que eles diversifiquem as suas atividades e encontrem pontos alternativos de prazer. A internet não deve ser a única ocupação dos adolescentes, de manhã à noite. O uso da net tem muitas vantagens, mas o problema é quando se torna uma dependência para os seus utilizadores. E o pior nem é o número de horas que passamos «agarrados» a isto, mas sim o que isto nos limita a vida, à margem desta atividade. Se deixar de praticar um desporto, se deixar de tomar um banho de mar ou se deixar de estar com os amigos por estar dependente das tecnologias, isso deve ser motivo de preocupação.
O sucesso escolar é mais prejudicado ou beneficiado com as novas tecnologias?
A pandemia demonstrou o enorme potencial das novas tecnologias. Um professor que, hoje em dia, consiga usar bem as tecnologias tem um manancial imenso de instrumentos de ensino. Numa conferência promovida pela OCDE, sobre a «Geração Z», os miúdos defenderam que os professores fizessem pequenos vídeos com os tópicos principais das matérias e, posteriormente, nas aulas, o tempo seria aproveitado para discutir as dúvidas que surgissem do visionamento do filme. Acho uma sugestão fantástica, tanto para o Ensino Superior, como para o ensino pré-universitário.
A economista Norena Heertz, autora do livro: “O século da solidão”, refere que «as empresas de redes sociais são as tabaqueiras do século XXI e têm de ser reguladas, por estarem a provocar danos à democracia e à saúde mental». Os jovens são dos que mais sofrem com a solidão?
Os jovens portugueses, em termos europeus, são dos que mais se ligam aos amigos e, em especial, à família. Eu não consigo ver a questão do impacto da internet de forma tão negativa. No passado, havia jovens que ficavam confinados ao seu quarto, sentados junto a uma parede, com pouco ou nada para se ocupar. Agora, pelo menos, com o recurso à internet, conseguem falar com amigos e fazer novas amizades, mesmo distantes. Volto a sublinhar que a ocupação permanente com a internet, e especialmente, com os jogos “online” pode ser perigosa e promover o isolamento do mundo exterior. Mas, se assim não for, e se o jovem fizer a sua vida normal, frequentando a escola, fazendo o seu desporto e mantendo algumas amizades, creio que não há motivo para qualquer apreensão.
Defende no seu livro o «diálogo intergeracional» entre pais, avós e professores. O conflito de gerações está mais acirrado do que noutros tempos?
Pelo contrário. O conflito geracional está muito mais apaziguado. Vejo uma geração de pais demasiado preocupados e envolvidos nos problemas dos filhos, alguns deles até se intrometem demais, por exemplo, no desempenho dos jovens na escola, quando os miúdos, reiteradamente, dizem que «a escola é o meu espaço de privacidade.» Às vezes, há pais que são demasiado eficientes no controlo da vida dos filhos. Estou em crer que existem condições para transformar uma eventual clivagem intergeracional e mutuamente acusatória num diálogo entre gerações. A partir de um estudo que a minha equipa desenvolveu para a Fundação Gulbenkian, constatou-se que sobre temas societais, como a Segurança Social, o Trabalho, a Família ou o Ambiente, os jovens, os pais e os avós envolvidos na investigação, esforçaram-se para trabalhar em prol de sinergias e não em prol de acusações mútuas.
Sei que está a desenvolver uma investigação, a convite do ex-secretário de Estado da Educação e atual ministro da Educação, João Costa, sobre o bem-estar psicológico nas escolas, durante o período da pandemia, nos alunos entre os 5 e os 18 anos. Já pode levantar a ponta do véu sobre o trabalho de campo?
Os dados já foram todos recolhidos e agora, depois da Páscoa, irei proceder à análise dos mesmos no mais curto espaço de tempo possível. Mas quero deixar claro que o foco da investigação está centrado em saber até que ponto os jovens conservaram, após estes dois anos de pandemia, competências como a curiosidade, a persistência e a colaboração. Posso revelar que numa amostra representativa das NUTS (Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos) III (NDR: constituído por 25 unidades, as sub-regiões, das quais 23 no continente e 2 nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, e correspondem às Entidades Intermunicipais), responderam ao inquérito 9 mil jovens e para cima de um milhar de professores. As conclusões do estudo serão apresentadas, em tempo oportuno, à comunicação social, pelo ministro da Educação, o professor João Costa. Aproveito para salientar a satisfação que tive ao saber da sua nomeação para titular da pasta, em razão da sua competência e por ser uma pessoa com muitas ideias para o setor. É uma pessoa por quem nutro uma genuína amizade e consideração.
O atraso nas aprendizagens, fruto do período de confinamento, é uma marca difícil de superar e que, sem aulas de recuperação ou explicações, será uma fatura que, tarde ou cedo, chegará?
Fiz parte de um grupo de trabalho de recuperação das aprendizagens, que se designou por «Plano 21/23 Escola+», e de que faziam parte professores de outras áreas, como o Português e a Matemática, que não escondiam a sua preocupação com os atrasos nas aprendizagens. Confesso que eu e a Dra. Sofia Ramalho, da Ordem dos Psicólogos, estávamos mais preocupados com a saúde psicológica dos estudantes, não desvalorizando, contudo, o impacto do atraso nas aprendizagens. A recuperação das aprendizagens é importante, mas de pouco vale se os jovens saírem da pandemia completamente destroçados do ponto de vista da saúde psicológica. Penso que se devia valorizar as aprendizagens alternativas que os alunos tiveram durante estes dois anos. Em diversos estudos os alunos confessam que estão muitas horas na escola e acabam o dia exaustos. Nos primeiros meses de ensino a distância chegaram testemunhos de miúdos que diziam estar mais motivados, mais autónomos e até mais próximos dos professores. A aprendizagem da autonomia é algo que devia ser reforçado. O período da pandemia e das aulas que tiveram não pode ser apagado da vida dos miúdos. Foi uma fase difícil e complexa, mas que deve ser valorizada e relembrada, para que não fique na cabeça deles que foram dois anos perdidos. Na verdade, não foram. Foram dois anos atípicos e agora temos de extrair o melhor desse período.
Em maio de 2020, demonstrou a sua esperança que a pandemia mudasse a escola. Perdeu-se uma oportunidade?
O problema das escolas é que há estabelecimentos de ensino no 8 e outros no 80. Há escolas em que tudo corre bem e há outras onde só há problemas e não se faz nada. O difícil é mesmo legislar, obrigando as escolas onde não se faz nada a fazer qualquer coisa, sem criar constrangimentos e limitações à criatividade dos estabelecimentos de ensino de excelência. Conheço três ou quatro escolas onde não há a palavra «impossível». E há outras onde pouco ou quase nada é possível. Dou-lhe um exemplo: sei de escolas em que há professores que se voltam para os alunos e dizem: «só entras para a faculdade se tiveres explicações!». Isto é um muito mau indicador e um mau princípio: recorrer a um sistema privado paralelo, para conseguir voltar a entrar no sistema público. Há algo que não está certo. É preciso melhorar e trabalhar mais em conjunto. Por exemplo, promover o trabalho das escolas em rede, e divulgar as experiências das escolas boas nas outras, menos competentes, seria uma aposta acertada.
Defende que há uma obsessão pelos resultados na escola, aquilo a que chama «garimpar a nota». Privilegia-se mais a nota e menos a aprendizagem?
Uma avaliação podia ser um gosto para os alunos se fosse uma ratificação da sua aprendizagem. Mas não é. Mais não é do que um stress. Muitas vezes, os piores e os melhores desempenhos nos exames devem-se ao fator ansiedade. Há muita coisa errada neste particular. Também há os professores que treinam, previamente, os testes diagnóstico com os alunos, antes de realizarem o exame a sério. Ensinar para o teste é a perversão da avaliação. Do ponto de visto do processo é uma aberração.
O sistema não está montado para estimular a aprendizagem?
Felizmente, Isso não acontece em todas as escolas. As escolas, os alunos, os professores e a dinâmicas criadas não são iguais em todos os estabelecimentos de ensino.
Estudos demonstram que os jovens, de uma forma geral, têm um sentimento crónico de aversão à escola, nomeadamente ao espaço da sala de aula. Como é que deve ser a escola para criar mais interesse e atração nos jovens?
A escola nem pode ser um centro recreativo, nem pode ser um sítio tão aborrecido que ninguém aguenta lá estar.
Já há pouco falou sobre a preferência dos alunos por vídeos tutoriais para explicar a matéria. As aulas expositivas parecem, por isso, ter os dias contados. Esta seria uma oportunidade de ouro para reinventar a relação aluno-professor-matéria?
Estudos realizados referem que os alunos revelam que as matérias da escola estão completamente desfasadas do que lhes interessa na vida. O que nem sempre é verdade, porque há assuntos que lhes serão úteis no futuro. Aos professores compete escrutinar os conteúdos das disciplinas e definirem o que é estruturante e o que serve para avançar no pensamento e na cultura, e também identificar o que são “gorduras” e pode ser eliminado. Recordo-me que no tempo dos meus pais dava-se os caminhos de ferro portugueses e até as estações e os apeadeiros. Na prática, para que é que isso servia? A explicação é que na altura havia um novo-riquismo cultural de exibir um saber enciclopédico.
A opinião dos alunos deve ser ouvida?
A decisão sobre os conteúdos é da exclusiva responsabilidade dos professores, mas entendo que deve ser escutada a voz dos alunos, sobre como é que eles aprendem melhor. Sempre que estou a dar aulas, o meu registo a dar a matéria passa por contar histórias e dar exemplos. Por vezes, basta um exemplo ou uma metáfora para que os alunos apreendam o conceito ou o tema que está a ser lecionado.
A CARA DA NOTÍCIA
Margarida Gaspar de Matos é psicóloga clínica e da saúde e psicoterapeuta, especializada em adolescentes. É professora catedrática da Universidade de Lisboa na Faculdade de Motricidade Humana (FMH), instituição onde se doutorou, em 1993, com uma tese intitulada «Perturbações do Comportamento Social». É membro da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É a coordenadora nacional do estudo da Organização Mundial da Saúde, “Health Behaviour in School Aged Children” (HBSC). Liderou, durante nove meses, a “task force” das Ciências Comportamentais, um grupo de trabalho criado pelo governo no âmbito do combate à Covid-19 e dirigido às questões comportamentais. «Adolescentes» é o seu último trabalho disponível nas livrarias, editado pela Oficina do Livro.