Defensora da introdução de uma disciplina de cozinha nas escolas portuguesas, Marlene Vieira refere que a gastronomia de qualidade faz parte da nossa identidade. A chef partilha ainda o que não pode faltar à mesa na noite da Consoada.
Estamos quase no Natal, um período de celebração familiar, por excelência. Mesmo sabendo que as tradições variam de região para região, o que é que não pode faltar na noite da Consoada?
A celebração do Natal é, sem dúvida, muito importante no seio das famílias portuguesas e no caso da minha já existem algumas tradições misturadas. Com isto quero dizer que fomos criando uma família maior ao longo do tempo e com esse crescimento vieram também diferentes tradições. Hoje, lá em casa, fazemos desde o famoso bacalhau com todos e o bolo rei, já não pode faltar a baba de camelo, que vem da família do meu marido ou os sonhos de polvo frito, mas as rabanadas e a aletria é o que levam a sonhar com o Natal!
Nasceu na Maia, nos arredores da cidade do Porto. É um mito urbano dizer que se come melhor no norte do país ou há um fundo de verdade nesta afirmação?
É, sem dúvida, um mito! Eu já comi muito bem em quase todas a regiões do país. Existem bons e maus cozinheiros em todo lado.
No seu livro «Cozinha de Chef 2», baseado no programa do canal «Casa e Cozinha», faz uma viagem gastronómica pelo continente, regiões autónomas e ainda alguns países onde os portugueses têm raízes. Quais são os traços distintivos que fazem a gastronomia nacional ser tão elogiada pelos nossos compatriotas e também internacionalmente?
Portugal tem à sua disposição produtos fantásticos durante quase todo o ano, devido ao clima e localização. E desde sempre esta variedade e facilidade de acesso faz toda a diferença na cultura gastronómica. E somos um povo que gosta de cozinhar e faz desta uma prática habitual na sua rotina familiar e social, o que faz dos portugueses um povo que se habituou a dar o que de melhor tem. E temos mais, não só comida, mas sem dúvida a gastronomia de qualidade faz parte da nossa identidade.
O livro apresenta 47 receitas. É uma referência para ter sempre à mão na cozinha lá de casa? Qual foi o objetivo quando o idealizou?
É um livro para quem gosta de fugir da rotina, mas que ainda assim está ligado aos sabores de Portugal. É um livro para quem gosta de surpreender e evoluir. É um livro para quem gosta e aprecia a qualidade dos produtos e a importância das texturas certas. É um livro carregado de história e identidade. É um fruto do meu trabalho e que espero que gostem.
Para além de sermos um país exportador de futebolistas, treinadores, enfermeiros e engenheiros, o mesmo também já começa a acontecer com alguns dos nossos chefs. Já nos podemos considerar uma potência gastronómica?
Acho que não, nem é preciso comparar com o futebol ou tantas outras profissões! Ainda estamos a caminhar a passos estreitos. Temos uma gastronomia muito boa, sem dúvida, mas a forma como a temos “vendido” tem nos deixado para trás. Provavelmente será mesmo isso que queremos, estar aqui sossegados no nosso canto! É preciso muita estratégia e vontade de fazer mais. Olhemos para a América do Sul: o ceviche já se faz em todo o mundo. Já nós podemos dizer que talvez o pastel de nata já se faz em muitos países do mundo, mas muito mal feito. Por que será!?
As 7 maravilhas da gastronomia portuguesa são as seguintes: Alheiras de Mirandela; Queijo Serra da Estrela; Caldo verde; Sardinha assada; Arroz de marisco; Leitão da Bairrada e o Pastel de Belém. Alguma destas é a receita/prato perfeito ou acha que ainda está para ser feito?
Talvez alguns destes, mas o que distingue os pratos que se tornam populares e que tornam o seu país também popular em todo o mundo tem a ver com a técnica utilizada poder ser replicada com diferentes produtos e em diferentes países e também com a facilidade de concretizar, minimamente. Se eu pudesse sugerir os que para mim seriam pratos portugueses que se pudessem replicar usando outros ingredientes, o bacalhau à brás poderia ser perfeitamente um prato popular no Mundo, na minha opinião! E que no caso aqui importa a técnica utilizada, não podemos ficar ofendidos se em Angola usarem mandioca em vez de batata, ou se em vez de bacalhau usarem cachucho seco.
Os programas de TV sobre cozinha têm, geralmente, boas audiências e contribuíram para fazer dos chefs autênticas pop star, isto para além da disputa pela conquista das cobiçadas estrelas Michelin, algo que pode ter paralelo com os Óscares do cinema. Este glamour é benéfico ou pensa que existe um reverso da medalha?
Acho que é benéfico, nem que seja para podermos fazer o nosso trabalho da forma como queremos e podermos ter clientes dispostos a sentarem-se nas nossas mesas todos os dias. Somos privilegiados, pois passamos de uma profissão precária para passar a ser vista como uma profissão admirável.
Uma combinação de inovação e tradição, o recurso a produtos de excelência e o toque pessoal são a chave para singrar num meio tão exigente e competitivo?
No meu caso, penso que sim, mas existem outros fatores. O respeito pelas equipas, por quem está ao nosso lado todos os dias a trabalhar, a valorização do trabalho de outros chefes e cozinheiros e, claro, a capacidade de adaptação. A restauração é muito frágil a fatores externos e se não fossemos capazes de nos adaptar seria muito mais difícil de nos afirmarmos.
O ato de cozinhar gera múltiplas e curiosas observações. Uns acham que pode ser relaxante e terapêutico, outros uma forma de transmitir amor. Como o definiria?
Para mim é trabalho e vontade de fazer os outros felizes. Acredito que a grande parte dos cozinheiros gosta essencialmente de dar, gosta de presentear.
O recurso ao take away, à comida já confecionada ou a congelados tem vindo a ganhar adeptos junto dos consumidores. A falta de tempo é a única explicação para se cozinhar cada vez menos?
Penso que sim, mas também acredito que a sociedade, em geral, não gosta de cozinhar, é mais uma obrigação doméstica e se não for feita minimamente com gosto vai correr mal! Admito que já existem opções muito atrativas ao nível do preço e da facilidade de rápido acesso. No que toca à qualidade já sabemos que não é para todos, mas isso reflete-se em outras áreas: ensino, saúde, etc. É uma pena, mas é assim!
Manifestou, recentemente, o seu desejo de existir uma disciplina de cozinha nas escolas portuguesas. Quais os ensinamentos que se podiam extrair?
Ui, tantos! A história da nossa gastronomia associada aos povos que por cá passaram, por exemplo, mas também a matemática se pode aplicar.
Uma derradeira questão: que dicas ou conselhos gostaria de partilhar com algum jovem que nos está a ler e que pretende seguir a carreira que abraçou?
Não sei se devo dar conselhos, mas penso que posso sugerir que façam trabalhos de Verão antes de decidirem tirar o curso.
Cara da Notícia
Tradição e criatividade
Marlene Vieira nasceu na Maia, em 1980. Ligada à cozinha desde os 12 anos, passou por hóteis de luxo em Portugal e em Nova Iorque, trabalhou com chefs renomados tais como Luís Baena, Jerónimo Ferreira e, mais tarde, em 2012, assumia os comandos de uma cozinha lançando-se como chef com a abertura do «Avenue», no centro de Lisboa e o food corner no Time Out Market. Atualmente, é chefe-executiva e proprietária de três restaurantes que divergem no conceito, mas que se encontram nos sabores portugueses. Tem igualmente participado em vários programas televisivos como «Chefs Academy», «Master Chef», «Cozinha de Chef», no canal «Casa e Cozinha». Lançou há poucas semanas o livro «Cozinha de Chef 2» , uma edição Casa das Letras, baseado no programa de TV. Em 2021 foi distinguida com o Prémio Ativa – Mulheres inspiradoras.