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Zita Martins, astrobióloga Zita Martins: a astrobióloga que estuda a existência de vida noutras partes do sistema solar e do universo

21-04-2023

Os resultados do investimento em ciência podem tardar, mas chegam, sempre. A ideia é defendida por Zita Martins, uma cientista portuguesa reconhecida internacionalmente e que está envolvida em missões espaciais que procuram saber se existe vida noutras partes do sistema solar e até do universo. Regressou a Portugal após 16 anos no estrangeiro com um objetivo: servir, retribuindo o que o país lhe deu.

Lamento não ser original, mas vou começar a nossa conversa com uma pergunta que admito seja recorrente nas entrevistas que concede: o que é uma astrobióloga?

É uma cientista, que trabalha na astrobiologia, que é uma ciência muito interdisciplinar, com a contribuição da física, da química, da biologia, da matemática, das ciências planetárias, etc. Esta ciência procura responder a duas grandes questões: como é que surgiu a vida na Terra? Será que existe vida noutras partes do sistema solar e até do universo? No meu trabalho tento desenvolver métodos de deteção para missões espaciais para dar resposta, em particular, à segunda questão que acabei de referir.

Uma licenciatura em Química no Instituto Superior Técnico (IST) prosseguiu com um estágio nos Países Baixos em que surgiu a astrobiologia. Mas recuando no tempo, revela que a atração pela área surgiu nas páginas dos livros de Carl Sagan e no filme «Contacto», com a atriz Jodie Foster. Foram estes os cliques que a fizeram enveredar por esta carreira?

Sim, sem dúvida. Gostava de Química, mas não queria fazer só isto para o resto da vida. Faltava algo. Depois de ler os livros do cientista Carl Sagan em casa dos meus pais e em particular depois de ter visto o filme “Contacto” foi mesmo isso, como disse, um clique: «Eu quero fazer Química aplicada ao espaço!»

Na pesquisa que fiz para esta entrevista, encontrei uma capa da revista “Exame Informática”, de 2022, em que junto à sua fotografia surge identificada como «a detetive do espaço». Revê-se nesta imagem?

Sim. Os cientistas, de uma forma geral, podem ser considerados «detetives» porque procuram resolver um mistério e responder a perguntas que surgem, para resolver problemas correntes da sociedade. É este o desafio diário da ciência. O meu trabalho é juntar pistas, aplico o método científico, faço experiências e verifico a hipótese que serviu de ponto de partida. Por exemplo, posso analisar moléculas orgânicas em meteoritos e nesta investigação procuro pistas que as amostras extraterrestres me dão. É algo muito exótico, até parece uma série de televisiva de ficção científica, a única diferença é que enquanto na TV os episódios duram entre meia a uma hora, a investigação em ciência pode demorar anos.

Diz que intercetar um cometa primitivo é como entrar na «máquina do tempo» para ter pistas mais concretas sobre a origem da vida na Terra.  Vai participar em 2029 com a Agência Espacial Europeia (ESA) nas missões “Ariel” e “Comet Interceptor”. Pode antecipar o que podemos esperar?

O objetivo da missão espacial “Ariel” é estudar a atmosfera de mais de mil planetas e dar resposta às seguintes perguntas: como se formaram os exoplanetas? Como evoluem? De que são feitos? Às cavalitas da missão “Ariel” teremos a “Comet Interceptor”. Os cometas são bolas sujas de gelo, para usar uma linguagem comum. E cada vez que essa bola de gelo passa perto da nossa estrela, e do interior do nosso sistema solar, o gelo sublima, é transformado. O objetivo da equipa que fará a missão é a aproximação e análise a um cometa que nunca se aproximou do Sol e que, por isso, estará muito preservado. O campo de investigação é enorme, por isso, antevejo que nos próximos anos a comunidade científica que discute e analisa estes assuntos estará muito ocupada. Aliás, presido a um comité na ESA em que já estamos a planear missões para 2040 para chegar ao alvo em 2050. O trabalho já é a muito longo prazo.

Sei que aprecia, particularmente, a frase de Carl Sagan: «se não existe vida fora da Terra, então o universo é um grande desperdício de espaço». Onde é que no sistema solar pode haver condições para a vida?

Não estamos a colocar as fichas todas apenas num local. Sabemos, obviamente, apenas que a Terra é o único local onde comprovadamente existe vida. A comunidade científica entende que há locais que têm condições de habitabilidade para a vida se ter desenvolvido. Incluímos Marte e algumas das luas geladas de Júpiter e Saturno.

Marte é onde a procura de vida fora da Terra tem sido mais exaustiva, com a colocação de robôs e satélites. Como vê a moda ou a tendência do turismo espacial, que teve o seu arranque em 2021, com Richard Branson e Jeff Bezos? O investimento de privados e bilionários pode contribuir para acelerar descobertas?

Os privados têm um papel fundamental para acelerar o processo de descoberta, a transferência de conhecimentos e o próprio desenvolvimento de tecnologias. É preciso não esquecer que várias agências espaciais estão dependentes do dinheiro dos contribuintes e dos vários governos. A NASA depende do governo norte-americano, enquanto no caso da ESA, na Europa, ainda se torna mais complexo, na medida em que depende dos fundos de cada país da União Europeia. Todo o processo de seleção de propostas é, por norma, muito demorado. O que não acontece se o processo for promovido e financiado por privados. Associado aos privados, há, como é evidente, muito “marketing”, porque interessa-lhes vender e rentabilizar o dinheiro que investem. Mas se me perguntar se concordo com a colonização de Marte ou algo do género, digo-lhe já que não. Antes da eventualidade de levamos humanos para Marte, temos de ter o foco e colocar a prioridade noutros estudos.

Em torno da astrobiologia e das ciências em geral há margem para o nascimento de novos negócios?

Se for entendido como uma espécie de “spin-off”, sim. Mas o verdadeiramente importante e fundamental é financiar a ciência básica. No imediato, pode não se ver aplicação, mas os resultados em ciência, tarde ou cedo, chegam sempre. Para além disso, a ciência tem de ser pensada a muito longo prazo e é preciso dar estabilidade à comunidade científica. Basta recordar que passámos por uma pandemia e as vacinas para combater a covid-19 parece que surgiram de um dia para o outro. Mas sabemos que não foi assim. Foi o corolário do trabalho de anos e anos. Esse é o exemplo acabado de que a ciência tem sempre aplicação. A ciência acaba sempre por ter “spin-off”, e na área do espaço estes são frequentes. Segundo um estudo da NASA, por cada dólar investido na área do espaço há um retorno entre 7 a 14 dólares para a economia. Seja em novos empregos, transferência de tecnologia, criação de novos produtos, etc. Outro exemplo prático: as câmaras que equipam os nossos telemóveis foram desenvolvidas durante as missões espaciais. Os fatos que usam os bombeiros americanos têm de ser ao mesmo tempo seguros para o combate aos incêndios, mas também frescos para suportarem as altas temperaturas. Este equipamento surgiu tendo por base a tecnologia dos fatos espaciais dos astronautas americanos. As panelas de teflon ou os filtros para purificar a água são outros exemplos. A lista é infindável…

Residiu 16 anos no estrangeiro. Como são vistos os investigadores portugueses além-fronteiras, muitos deles saídos do país devido ao período da “troika” em que se deu a «fuga de cérebros»?

Conheço não só na minha área, porque, quando estava no Reino Unido, fiz parte de uma associação para estudantes e investigadores portugueses no estrangeiro. Contudo, muitos de nós que saímos do país, não nos enquadramos na denominada «fuga de cérebros». Eu abandonei Portugal, em 2002, simplesmente porque quis. Pretendia ganhar conhecimento na área da astrobiologia e um dia regressar, como aconteceu, para colocar a bandeirinha da astrobiologia no nosso país e ter o laboratório com o meu grupo de astrobiologia. Este sempre foi o meu objetivo.

Portugal tem capacidade para formar, reter e atrair talentos?

O estudante português, de uma forma geral, tem uma formação muito sólida, não apenas na área da astrobiologia. E isso deve-se à formação científica ministrada no ensino superior. E quando vamos para fora somos reconhecidos. Veja o exemplo flagrante dos enfermeiros portugueses que dão cartas em toda a Europa, especialmente no Reino Unido. Atrair e reter depende de vários fatores, entre os quais as opções pessoais e familiares de cada pessoa. Somos um país de pequena dimensão no quadro europeu e mundial, mas o facto de termos vários cientistas distinguidos ao mais alto nível, indicia que estamos no bom caminho. No meu caso em concreto, só posso agradecer ao IST porque me propiciou as condições para o meu regresso e para ter o laboratório e a equipa que sempre sonhei ter no meu país.

Depois de ter sido uma «estrangeirada», após tantos anos lá fora, regressou. Foi uma espécie de retribuir o que o país investiu na sua formação?

Quando saí não pensava logo no regresso. Aliás, não tinha um horizonte temporal para retornar, mas sabia que, após ter adquirido o máximo de conhecimentos, regressaria para poder fundar o primeiro laboratório de astrobiologia.  Respondendo, concretamente, à pergunta: sim, estou a retribuir, diariamente, o que o país fez por mim, não apenas no laboratório de astrobiologia, mas nos vários cargos que ocupo no país e além-fronteiras, bem como nas várias missões espaciais em que estive e estou envolvida.  Aliás, estive até ao mês passado como codiretora nacional do programa MIT Portugal, o que considero mais um serviço em prol da comunidade.

A Inteligência Artificial (IA) é um tema muito em voga. Vislumbra mais riscos ou mais oportunidades no domínio específico da ciência?

Não é uma pergunta linear. Penso que a juntar aos riscos e às oportunidades é preciso adicionar a questão ética, como em tudo na vida. Quem programa e alimenta as máquinas são os humanos e é preciso ter muito claro quais são os limites que não podem ser ultrapassados. Se a IA for usada para o bem da humanidade e para melhorar a qualidade de vida das pessoas, excelente.  No caso específico da investigação científica, é uma grande mais-valia, por exemplo, para tratar e compilar informação que, caso contrário, duraria anos a fazer. É um grande progresso. Quanto aos perigos, e diretamente relacionados com a comunidade científica, já surgiram casos de artigos científicos feitos com o recurso à IA, mas admitindo que somente uma ínfima parte comete práticas condenáveis, não é possível, nem se deve generalizar.

É desde 2021 consultora da Casa Civil do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa para as áreas de ciência, inovação e transição digital. Sem querer furar o dever de reserva a que tem de obedecer, como são as conversas de professora para professor?

Tem sido uma grande honra e um enorme privilégio servir o senhor Presidente da República, uma pessoa que tanto admiro. Mas, acima de tudo, um ponto fundamental, é relevar que o Chefe de Estado escolheu alguém, neste caso uma consultora, para tratar dos assuntos da ciência.  Isto é, confere à ciência um papel central e fundamental na sociedade, quando poderia não ter, dando voz aos cientistas e ao ensino superior. É mais uma oportunidade para servir o meu país, retribuindo o que Portugal me deu.

 

A CARA DA NOTÍCIA

Cientista convidada na NASA

 

Doutorada pela Universidade de Leiden, nos Países Baixos, em 2007, Zita Martins (44 anos) trabalhou no Imperial College, em Londres, entre 2007 e 2017, depois voltou a Portugal e ao Instituto Superior Técnico (IST), onde tem o seu grupo de investigação e leciona a cadeira de Astrobiologia. É professora associada no IST do departamento de engenharia química e investigadora do Centro de Química Estrutural. Nos 16 anos que esteve no estrangeiro, de destacar uma passagem como cientista convidada na NASA. Atualmente, colabora nas várias missões da Agência Espacial Europeia e integra a equipa científica nacional da missão espacial japonesa Hayabusa2. Recentemente, foi uma das autoras de um artigo na prestigiada revista “Science”. Foi codiretora nacional, nos últimos quatro anos, do programa MIT Portugal. Em março de 2021, foi nomeada consultora da Casa Civil do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Em 2015, tinha sido distinguida como Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada pelo então PR, Cavaco Silva.

Nuno Dias da Silva
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