Este website utiliza cookies que facilitam a navegação, o registo e a recolha de dados estatísticos.
A informação armazenada nos cookies é utilizada exclusivamente pelo nosso website. Ao navegar com os cookies ativos consente a sua utilização.

Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Cartoonista O traço inconfundível de António

11-07-2022

O seu olhar artístico é, há quase meio século, parte indissociável das páginas do mais importante semanário nacional, o “Expresso”. António Antunes ou, simplesmente António, passa em revista a sua longa carreira e afirma não vislumbrar condições para que exista uma renovação geracional nos cartoonistas portugueses.

O seu primeiro trabalho é publicado no dia do golpe falhado das Caldas, a 16 de março de 1974, no jornal “República”. Que memórias guarda?
Diria que esse trabalho é premonitório do que viria a acontecer um mês e uns dias depois. O desenho tinha uma sequência de uma tirinha de três quadrados. No primeiro havia um personagem que estava preso a uma corrente e a uma bola de ferro. No segundo quadrado, ele está mais velho e a bola de ferro está maior. Finalmente, no terceiro o personagem continua a envelhecer, enquanto a bola de ferro cresceu de tal modo, que partiu a cerca do desenho.

O seu nome é António Antunes, mas quase todos o conhecem por António. Também há uma história que explica isso?
Fui convidado para apresentar uns desenhos no “República” e deixei uma coleção de trabalhos que estava a preparar para a Bélgica, adaptando-os a uma temática mais portuguesa. A minha assinatura nessa altura era praticamente indecifrável. Um arabesco. Como não deixei indicação nenhuma, esses desenhos saíram «desenho de…» e ficou um espaço em branco. O meu conterrâneo, Álvaro Guerra, decidiu que, em próxima oportunidade, não haveria novo espaço em branco no jornal. Na altura não havia telemóveis e como não tinha sido possível localizarem-me, o Álvaro Guerra de uma coisa tinha a certeza: que eu me chamava António. E assim ficou.

Em dezembro de 1974, entrou no “Expresso”. Nunca mais de lá saiu, exceto quando esteve, temporariamente, corria o ano de 1979, no “Jornal”. Contabilizou quantos trabalhos fez para o semanário fundado por Pinto Balsemão?
Nunca fiz essa contabilidade. Ao longo destes anos, houve alturas em que publicava dois trabalhos, outras em que fazia três. Mas estimo que possa ter feito entre dois a três mil trabalhos nestes quase 50 anos que levo de colaboração com o “Expresso”.

Qual foi o político português que mais foi “alvo” do seu pincel implacável?
Mário Soares, sem dúvida. O ex-Presidente da República era, para um caricaturista, uma figura muito apetecível. A sua forma de estar e de se relacionar ajudava e potenciava novas criações.
Ao longo da sua carreira, os trabalhos mais polémicos foram, porventura, o do preservativo do Papa João Papa II, em 1993, e mais recentemente, em 2019, o de Trump com Netanyahu, em que foi acusado de antissemitismo. Pensa que as reações adversas se deveram a pura intolerância ou por incompreensão da mensagem que o António, enquanto criador, procurou passar?
Em ambos os casos creio que são manifestações de intolerância. O desenho do João Paulo II com o preservativo no nariz é uma resposta às declarações do Papa que em pleno pico da SIDA, nomeadamente em África, criticou o uso do preservativo. Achei algo criminoso. Ainda para mais, proferiu estas palavras para todo o mundo e não para a intimidade religiosa do seu rebanho de fiéis. Como cidadão, achei que devia responder e fi-lo através do desenho.

Em 2019, o desenho com Trump e Netanyahu escalou fronteiras e chegou ao “The New York Times”, com o jornal a deixar de publicar cartoons políticos na edição internacional...
Isso deve-se a uma política que vem desde a fundação do Estado de Israel, que passa pela ocupação do território palestiniano, nomeadamente a ocupação de colonatos. E essa lógica ganha uma nova dinâmica durante a administração de Donald Trump. É isso que o desenho mostra.

Nos tempos modernos que vivemos a pressão das redes sociais e a emergência do politicamente correto são a receita para que exista essa contestação?
É uma parte importante da receita. Mas se a isto juntarmos o fundamentalismo judaico, em que qualquer crítica à política ao Estado de Israel é considerada antissemita, então passamos a ter a tempestade perfeita.

O politicamente correto está a ameaçar a liberdade de expressão dos cartoonistas um pouco por todo o mundo?
Depende dos enquadramentos e do peso das redes sociais. Nos Estados Unidos isso é evidente. Felizmente, em Portugal, ainda é pouco evidente.

O caso tragicamente famoso do ataque à redação do “Charlie Hebdo”, em Paris, foi um ponto de viragem na consciência da importância do trabalho dos cartoonistas, com as manifestações de solidariedade provenientes de todo o mundo?
Muitas vezes a solidariedade acontece em cima do acontecimento e com o tempo vai-se desvanecendo. Mas permita-me que recue um pouco no tempo, para falar dos cartoons da Dinamarca. Por causa disto, acabaram por ser mortas mais de cem pessoas. Cheguei a participar num debate na televisão, sobre este tema, em que estiveram presentes o atual cardeal patriarca de Lisboa, que na altura era Bispo do Porto, D. Manuel Clemente, e o representante da comunidade islâmica em Portugal, o Sheik Munir. É compreensível e de saudar a solidariedade entre as igrejas. Mas foi, ao mesmo tempo, curioso que a Igreja Católica tenha apanhado a “boleia” defendida pelo representante da comunidade islâmica O então bispo do Porto fez suas as dores do Sheik Munir. Em resumo, a tese defendida era que os responsáveis pelas 100 mortes não tinham sido os energúmenos que os tinham assassinado, mas sim os desenhos que uns cartoonistas na Dinamarca fizeram. O que é, no mínimo, absurdo. Uns anos depois, volto a estar num debate em que volta a estar presente o Sheik Munir, na sequência dos atentados do “Charlie Hebdo”. A tese já era outra: os desenhadores estavam no seu local de trabalho e foram vítimas de um atentado terrorista. Era, por isso, necessário encontrar outro responsável.

E quem foi esse responsável?
O fundamentalismo islâmico, com a sua intransigência em relação a tudo o que é crítica e diferente do seu ponto de vista. Os criadores dos desenhos passaram a ser considerados inocentes. Essa foi uma grande mudança que se operou.

Quais são as suas “linhas vermelhas” que estão subjacentes a cada trabalho que faz?
Confesso que não sei a cor das minhas linhas, só sei que apenas me baseio em acontecimentos e afirmações relativas à atualidade. Não critico porque me apetece criticar algo subjetivo. Agarro-me à realidade e aos comentários à própria atualidade.


O cartoon deve refletir as preocupações da população? A política está muito presente, especialmente nos seus trabalhos, ainda mais num jornal como o “Expresso”…
Sim, mas não considero isso um defeito. Longe disso. Pela natureza do jornal, o cartoon é eminentemente político.

Os temas relacionados com o ambiente estão a ganhar novo protagonismo?
Eu próprio já fiz alguns trabalhos de natureza ambiental, da mesma forma que já fiz sobre direitos humanos, o direito das mulheres e também sobre futebol. No meu caso concreto, procuro retratar o assunto da semana – exceto quando vou de férias, em que opto por um desenho intemporal, que pode ser publicado em qualquer altura.

Com a pandemia, o “Expresso” passou a ser publicado à sexta-feira. Como organiza o seu processo criativo?
Para começar, temos o tempo de decisão sobre o tema, que agora não pode passar de terça-feira. Após esta decisão estar tomada, é preciso decidir como trabalhar o tema, ou seja, escolher o caminho a seguir e a forma como se vai contar a história. A partir daí, passamos à fase da execução. Até quinta-feira de cada semana, após ter sido digitalizado, envio o trabalho para a redação.

Tem absoluta liberdade para escolher qualquer tema?
Tenho. É um privilégio ter uma relação muito antiga e de confiança com o jornal e com os seus responsáveis. Nestes anos que levo no jornal já passaram muitos diretores e todos eles vão herdando essa relação de confiança que existe comigo. Estou certo de que caso alguma coisa esteja menos bem, rapidamente essa informação chegaria até ao meu conhecimento.

Como é que analisa a nova geração de cartoonistas portugueses? O futuro está assegurado?
Não se pode dizer que haja uma nova geração. O Carrilho é jovem, mas está nisto há, pelo menos, 20 anos. A Cristina Sampaio não é propriamente idosa, mas está há uns bons 30 anos em França. O João Fazenda apenas esporadicamente trabalha na imprensa. O Vasco Gargalo já anda nisto talvez há uns 15 anos. Isto para lhe dizer o seguinte: os jornais entenderam, até pelo contexto de crise, que podiam economizar dinheiro não contratando cartoonistas. Em síntese, por aquilo que referi, não vejo uma renovação na área e não vislumbro condições para que ela aconteça. Hoje em dia, é praticamente impossível a um cartoonista viver do cartoon nas condições existentes na imprensa portuguesa.

Uma das suas obras mais célebres não foi propriamente publicada na imprensa, mas está exposta, em permanência, na estação do Aeroporto do Metropolitano de Lisboa. Como é que surgiu a oportunidade para desenhar 53 portugueses ilustres, mostrando-os aos lisboetas e aos turistas que visitam a capital?
Para começar, eu conhecia de outras andanças o então presidente do Metropolitano de Lisboa e resolvi pedir-lhe uma reunião para lhe falar de um projeto que tinha em mente. Ele pediu-me para apresentar uma maquete, o que fiz num segundo encontro que tivemos. Ele entusiasmou-se pelo projeto e tenho de lhe prestar homenagem pelo mérito que tem por isto ter ido para a frente. Da minha parte, só posso agradecer a confiança. A aposta na caricatura para figurar na estação de Metro mais importante de Lisboa, porta de entrada e de saída do país para milhares de pessoas, todos os dias, é um ato de ousadia. Desde a inauguração, em 2012, que o “feedback” tem sido enorme, tanto de portugueses, como por parte de cidadãos estrangeiros. São muitos os que todos os dias se deixam fotografar ao lado das caricaturas de portugueses famosos. Para mim é um enorme prazer, tanto pelo reconhecimento do meu trabalho e também como forma de entender que a caricatura pode ser um veículo de animação dos espaços públicos.

É diretor do World Press Cartoon (WPC), um salão de referência nesta área, que já vai na 17.ª edição. Está em exibição no Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha, até 28 de agosto, sendo a entrada livre. O que é que os visitantes podem ver?
Temos expostos 300 cartoons, da autoria de 181 cartoonistas, representando 71 países. Quero recordar que o grande prémio do WPC foi atribuído ao argentino Matias Tolsá, com «Uma Ângela Merkel algo desanimada»

Este evento já esteve sediado em Sintra, depois passou para Cascais e desde 2017 está nas Caldas da Rainha, tendo a edição deste ano sofrido um corte de patrocínio por parte da edilidade da zona Oeste, o que impediu a realização da gala de entrega de prémios. É uma missão complicada convencer as autarquias a apoiar eventos desta natureza?
Não é nada fácil. Em Sintra, enquanto esteve como presidente, Fernando Seara, foi fácil o entendimento. Quando o PS ganhou as eleições as coisas complicaram-se e tivemos de sair de lá. Fomos acolhidos em Cascais, mas as instalações não tinham dimensão para albergar um salão já de grande alcance. Para ter uma ideia, dos 300 trabalhos que tínhamos, só cabiam – e muito apertadinhos – cerca de 50. Em 2016, pela primeira vez, a iniciativa não se realizou, por falta de patrocínios. Em 2017, já nas Caldas da Rainha, fomos bem recebidos, mas o ano passado houve eleições e uma nova força política chegou ao poder. Começámos por ter um corte no nosso orçamento, oficialmente devido à pandemia, por isso, ficamos a aguardar o que nos espera na edição de 2023.

O ano em que estamos está a ser dominado, de forma avassaladora, pela guerra na Ucrânia. É previsível que o próximo World Press Cartoon seja dominado pelas caricaturas de Putin e Zelensky?
Com toda a certeza. Não é preciso grandes dotes de adivinho para chegar a essa conclusão. Os presidentes russo e ucraniano são notícia em todo o lado, há vários meses. Vão ser eles a suceder a dois anos de Covid. E só faço votos que muito em breve não sejam acompanhados pelo regresso de um senhor chamado Donald Trump.

Ele que foi objeto de milhares de desenhos ao longo dos cinco anos que esteve na Casa Branca…
Não é fácil caricaturar uma caricatura…

 

Cara da Notícia

Simplesmente, António

António Moreira Antunes – ou apenas António – nasceu em Vila Franca de Xira a 12 de abril de 1953. Segundo as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, que coincidiu com o criador no “Expresso”, trata-se do «melhor caricaturista político da ainda jovem democracia portuguesa.» Colaborou com o “Diário de Notícias”, “A Capital”, “A Vida Mundial”, “O Jornal”, mas é no “Expresso” que acumula quase 50 anos de trabalhos nas páginas do semanário. Em 1983, arrecada uma das muitas distinções que iriam marcar a sua vida: o Grande Prémio no XX Salão Internacional de Cartoon em Montreal com um “pastiche” da invasão israelita do Líbano. A 9 de março de 2005, foi agraciado com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.

Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados
Voltar