Este website utiliza cookies que facilitam a navegação, o registo e a recolha de dados estatísticos.
A informação armazenada nos cookies é utilizada exclusivamente pelo nosso website. Ao navegar com os cookies ativos consente a sua utilização.

Diretor Fundador: João Ruivo Diretor: João Carrega Ano: XXVII

Galopim de Carvalho, geólogo E PROFESSOR ‘A educação e a ciência deviam ser prioridades nacionais’

25-01-2021

Exemplo de como saber envelhecer, quase a completar 90 primaveras, Galopim de Carvalho defende que um país que não cuida suficientemente da educação e formação deve temer pelo seu futuro. Conhecido por muitos como «o avô dos dinossauros», o professor acrescenta que é preciso rever toda a política dos manuais de ensino.

Cumpre 90 anos no próximo mês de agosto. Apesar da sua proveta idade, mantém atividade regular nas redes sociais, escreve livros, etc. É o espírito de cidadania que o move?
Isso mesmo, sem tirar nem pôr.

Portugal, enquanto sociedade, tem esse espírito de cidadania ou devia ser mais forte?
Enquanto sociedade, estou em crer que não.

Como tem lidado com estes longos meses de pandemia?
Passo muito bem o tempo em casa, escrevendo, lendo e cozinhando. Presentemente, não sinto o apelo da rua. A internet permite-me estar constantemente em contacto com colegas de profissão e amigos, cá dentro e lá fora.

A pandemia, os incêndios e as alterações climáticas são manifestações que resultam da «vingança» da mãe natureza?
No que se refere à pandemia, não me sei pronunciar, mas no que diz respeito às alterações climáticas, penso que o papel da sociedade é inferior ao da evolução natural do planeta em termos de aquecimento global.

Quer dizer que na sua perspetiva a mão do homem tem sido menos destruidora do que se diz?
A minha anterior resposta não isenta o homem da sua ação destruidora sobre o planeta. É um facto que a chamada sociedade de consumo, para bem de muito poucos e para mal de muitos, tem sido e continua a ser muito destruidora. Mas estou convencido que o planeta, com ou sem homem, se encontra numa fase de aquecimento na continuidade de um ciclo, de milhares de anos, de “idades do gelo” alternantes com períodos de degelo.

Contudo, admite que as alterações climáticas e a pandemia são consequências das orelhas moucas que os líderes têm feito dos alertas dos cientistas?
Nestes dois domínios e em muitos outros, líderes políticos e cientistas nem sempre seguem pelos mesmos caminhos.

Prevalecem os interesses particulares em detrimento dos interesses globais?
Está mais que provado que sim. Basta olhar para a poluição do ar, dos solos, das águas dos rios, dos lagos, dos mares. Basta olhar para a sobre-exploração dos recursos naturais, associada ao convite e encorajamento do consumo.

Foi aprendiz de carpinteiro, de sapateiro e muitas coisas mais. Como trabalhador-estudante foi delegado de informação médica e vendedor de máquinas registadoras e de escritório. É escritor, e gastrónomo, para além de geólogo e professor. Considera-se um homem dos sete instrumentos?
Desde criança, numa época ainda dominada por profissões artesanais, sempre gostei de ver fazer, o que me motivava a aprender a fazer e, mesmo, a procurar fazer, desde pôr uns tacões numas botas a levantar uma parede de tijolos. Tudo me seduzia menos a escola. Mesmo em rapaz de liceu só fui bom aluno nas disciplinas com cujos professores estabeleci laços de simpatia e o de Ciências Naturais foi um deles.

E, segundo sei, também, tem uma faceta, relativamente desconhecida, na área da escultura e pintura. Que partilhar connosco esse lado?
Sempre gostei de desenhar e fui bom aluno de liceu na respetiva disciplina. Na faculdade frequentei com gosto a cadeira de desenho biológico, reminiscência de um tempo em que a fotografia estava longe do uso que passou a ter nas publicações científicas.
Com base nesta curta experiência, senti-me motivado a experimentar a pintura, o que fiz com todo empenhamento, tendo reunido uma trintena de obras, entre desenho, aguarela e óleo que tive oportunidade de expor em Évora, Vendas Novas e Lisboa, na Casa do Alentejo.
Nos anos 80, na sequência de um conjunto de lições sobre minerais e rochas usadas como matérias-primas em diversas artes (pintura, escultura, cerâmica, vidro e joalharia) que ali ministrei, sempre pro bono, foi-me facultado fazer um estágio de escultura em pedra, sob a orientação da saudosa escultora Graça da Costa Cabral e do escultor Sérgio Taborda. O trabalho que, apaixonadamente, ali executei fez parte de uma exposição no Museu da Pedra, em Cantanhede.

Como reage quando é chamado, primeiro pai, depois «avô dos dinossauros», ou dinossáurios, como gosta de dizer.
Gosto, porque tenho uma belíssima relação com o envelhecimento e porque essa nova expressão está envolta numa afetividade que muito me apraz.

Mas é apenas no célebre episódio da «batalha de Carenque» que entra no tema dinossauros. Quer relembrar este episódio?
Quando, em 1990, tomei conhecimento de que a CREL (Circular Regional Exterior de Lisboa) ia passar por cima e destruir esta importante jazida com pegadas de dinossáurios de Pego Longo (Carenque), descoberta quatro anos antes por dois alunos do meu departamento de Geologia da Faculdade de Ciências de Lisboa, iniciei, na qualidade de diretor do Museu Nacional de História Natural, uma difícil luta com a administração central, no sentido de a proteger. Essa luta foi ganha e, em 1993, o governo autorizou a abertura dos dois túneis que lhe passam por baixo. A luta não parou e, em 2001 a Camara Municipal de Sintra aprovou o projeto de arquitetura do correspondente Museu e Centro de Interpretação. Acontece que esse projeto nunca foi levado à prática e, nos cerca de vinte anos que, entretanto, decorreram, não obstante as diversas diligências que empreendi, no sentido da sua salvaguarda, esta importante jazida, classificada como Monumento Natural, em 1997, pelo então Instituto de Conservação da Natureza, foi deixada ao mais lamentável abandono, estando hoje invadida por densa vegetação e convertida em vazadouro de entulhos e lixos. Como último recurso, juntamente com um grupo de colegas de profissão, interpusemos uma providência cautelar junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, aguardando, agora, o desfecho de mais esta diligência.

Partilhou connosco uma foto com o ex-Presidente da República Mário Soares, em Carenque. Como é que reagiu a essa manifestação de apoio coletivo da sociedade em prol da sua causa?
Evidentemente que reagi com imensa satisfação, tanto mais justificada quanto longa e difícil foi a luta travada em prol dessa causa que teve, como corolário, o livro que escrevi, “Dinossáurios e a Batalha de Carenque”, publicado pela Editorial Notícias, em 1994.

A sua vocação para os minerais, os fosseis e as rochas levou-o a desistir da Biologia e ir para Geologia em 1952, algo pouco conhecido à época. Foi paixão ao primeiro… toque?
A paixão pela Geologia deveu-se à influência do meu professor de Ciências Naturais no então 5.º ano do Liceu (hoje 9.º ano.). Só que, quando me quis matricular na Universidade, o meu pai insistiu que fizesse num curso de Biologia, porque, argumentava ele e muita gente nesse tempo, que Geologia ninguém sabia o que isso era e, como tal, era carreira sem futuro assegurado. Abandonei Biologia e só anos mais tarde, já casado e a trabalhar precariamente, concretizei a dita paixão, matriculando-me na licenciatura em Ciências Geológicas.

Como gostaria que o seu legado científico e académico ficasse conhecido?
Alguém que procurou caldear o elitismo académico com uma saudável componente de ruralidade adquirida nos campos do Alentejo.

Disse que «se não houvesse pedras, não havia nada neste mundo». Essa afirmação é uma resposta a algum desprezo pela história e pelas origens que existe no nosso país?
Podemos dizer de uma forma ligeira que, se não houvesse rochas, não havia solos; sem solos não havia plantas, sem plantas não existiriam herbívoros e, sem estes, os carnívoros não tinham de comer. E nós, nem sequer tínhamos aparecido.
De há muito que venho alertando, em textos escritos e em conversas públicas, para a pouca importância dada ao ensino da Geologia nas nossas escolas dos ensinos básico e secundário. Isto porque, em minha opinião, quem decide sobre o maior ou menor interesse das matérias curriculares, parece desconhecer que a Geologia e as tecnologias com ela relacionadas estão entre os principais pilares sobre os quais assentam a sociedade moderna, o progresso social e o bem-estar da humanidade.

Disse em entrevista que as escolas estão a amestrar crianças para passarem nos exames. O sistema educativo está obcecado pela estatística em vez de apostar na aprendizagem e na formação cívica dos cidadãos?
Reafirmo ser minha convicção que a nossa escola está mais interessada em amestrar os alunos para passarem nos exames do que em formar cidadãos abertos ao conhecimento e conscientes dos seus direitos e, sobretudo, dos seus deveres cívicos.

Considera fundamental o afeto entre aluno e professor. Essa relação tem-se vindo a perder?
Absolutamente. Confirmo-o enquanto aluno e professor que depois fui.

A perda de autoridade da classe docente tem contribuído para essa quebra de relação?
A perda de autoridade da classe docente é um facto lamentável, fruto de uma deficiente política de educação dos sucessivos governos do pós-25 de abril de 1974. É necessário e urgente fomentar, como inerência de cargo, a dignificação e o respeito pelo professor, duas condições que lhes foram retiradas com o advento da liberdade que os militares de abril nos ofereceram e que a democracia não soube aproveitar, e é igualmente necessário e urgente que a Escola recupere todas as competências fundamentais à disciplina, em democracia.
Impõe-se rever a remuneração dos professores que, como tenho defendido, tem de ser compatível com a sua real importância na sociedade. Um professor universitário (que é avaliado, pelo menos três vezes ao longo da carreira) não é nem mais nem menos importante do que uma educadora de infância ou de um professor do ensino secundário ou do básico.

A escola pública tem cumprido sua função? O desinvestimento tem pesado no seu desempenho?
Está muito longe disso. É preciso e urgente que o Ministério da Educação se torne numa das principais preocupações dos governos, não só na cuidada escolha dos titulares, como nas dotações orçamentais que permitam dar às escolas as necessárias condições de trabalho.
É necessário e urgente rever toda a política dos manuais de ensino, em especial no que diz respeito à creditação científica e pedagógica dos autores e à correspondente supervisão. A par de excelentes professores, os que mais sofrem com a situação vigente, há outros, sem preparação suficiente, que fazem do ensino um emprego, não uma profissão e, muito menos, uma missão, e outros, ainda, francamente maus, pelo que se impõe uma política de verdadeiras avaliações. A deficiente preparação científica e pedagógica de muitos professores é um facto conhecido. Sempre defendi que o professor deve saber muito mais do que o estipulado no programa da disciplina que tem por missão ensinar, não se podendo limitar a mero transmissor dos manuais de ensino. Para tal, necessita de tempo, e tempo é coisa que, no presente, não tem. Há, pois, que libertá-lo das tarefas que não sejam as de ensinar.
E, a terminar, é urgente olhar para esta realidade e haver vontade política (despida de constrangimentos partidários) para promover uma profunda avaliação e consequente reformulação de uma “máquina ministerial” poderosa e nebulosa, de há muito instalada.

Na sua opinião, o problema da educação reside nos políticos ou nas políticas adotadas para o setor?
Certamente que reside, sobretudo, nas políticas. Evidentemente que se fizeram avanços importantes como seja o ensino obrigatório até ao 12.º ano e a melhoria considerável do parque escolar.

Um país que não cuida suficientemente da sua educação e da formação dos seus jovens pode temer pelo seu futuro?
Com certeza que sim. Não tenho disso a menor dúvida.

Costuma ser convidado com regularidade para visitar escolas. Com que impressão fica?
Escolas, bibliotecas municipais, sociedades recreativas e outras. Faço-o desde os anos em que comecei a docência na Universidade e mesmo depois da jubilação, já lá vão 20 anos. Presentemente, com as imposições decorrentes da pandemia estou a fazer videoconferências dirigidas às escolas, de todo país, que me solicitam, e são muitas.

Tem uma escola em Queluz, mais concretamente em Carenque, batizada com o seu nome. Foi a melhor homenagem que lhe podiam fazer?
Uma das.


E que outros reconhecimentos/homenagens é que lhe fizeram e que o deixaram particularmente tocado?

Foram tantas as homenagens e as distinções ao longo dos anos, que é difícil enumerá-las todas. Mas, por exemplo, honrou-me o convite para integrar a comitiva presidencial de Jorge Sampaio, enquanto membro da comunidade científica nacional, quando este fez, em 1997, uma visita de Estado ao Brasil. Da mesma forma que me encheu o coração o Museu do Quartzo em Viseu ter sido designado “Centro de Interpretação Galopim de Carvalho” ou o título de “doutor honoris” causa atribuído pela Universidade de Évora. E também não posso deixar de relevar a designação, em 2019, como diretor emérito do Museu Nacional de História Natural e da Ciência.

Portugal é um país que não trata como deve o seu património histórico e cultural?
Relativamente ao património histórico e cultural, não me sinto credenciado para responder. Mas, relativamente ao património geológico, não tenho dúvida em afirmar que a instituição nacional que tem por estatuto conservar a natureza, o Instituto de Conservação da Natureza, praticamente nada fez em prol do dito.

Para terminar, falemos sobre a ciência. Um setor onde faltam incentivos, investimentos e estabilidade. Até já tivemos um comissario europeu para a Ciência, Carlos Moedas. Este setor devia ser uma prioridade nacional?
Há duas décadas que me afastei da investigação científica que pratiquei empenhadamente nos quarenta anos ao serviço da Universidade, passando a ocupar-me a tempo inteiro e pro bono à divulgação científica e ao apoio aos professores que ensinam geologia nas nossas escolas. Os ecos que me chegam deste setor da vida nacional não são brilhantes e era fundamental que fossem, dado que, a par da educação, a ciência devia ser uma das prioridades nacionais.

Cara da notícia

O eterno «avô dos dinossauros»


António Galopim de Carvalho nasceu em Évora, a 11 de agosto de 1931. Conhecido em Portugal como «o avô dos dinossauros», licenciou-se em Ciências Geológicas pela Universidade de Lisboa (1959), doutorou-se em Geologia (1969) na mesma universidade e viria a ensinar na sua alma mater no Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências até 2001. Foi Diretor do Museu Nacional de História Natural durante vários anos e é professor catedrático jubilado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. É um símbolo nacional da defesa e preservação do património cultural e científico, nomeadamente de sinais marcantes e inestimáveis da evolução da história natural. Responsável pelo carinho do público pelos dinossauros, exerceu lóbi junto de várias entidades na defesa das pegadas da pedreira de Carenque, no concelho de Sintra, um dos trilhos mais longos do Cretáceo e cujo património conseguiu salvar. Tem centenas de prémios e distinções na sua longa carreira, sendo de assinalar a condecoração como Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada e o Prémio Bordalo na categoria “Ciências”.

Nuno Dias da Silva
Direitos Reservados | Arquivo de Galopim de Carvalho
Voltar